Pois exactamente ontem quando me preparava para deixar aqui não sei já que palavras, o servidor negou-se terminantemente a colaborar. O texto, o meu, varrreu-se-me e, em seu lugar, saltitava este excerto de uma crónica do António Lobo Antunes. Lembro-me de a ter lido ao meu pai e isto não porque não soubesse ler, mas porque a relação que travava com o escritor era pautada por uma certa apreensão. A ausência de algumas vírgulas, os períodos iniciados a seu bel-prazer sem terminarem no mais tradicional dos cânones do bem escrever, deixavam o meu pai irritado até, comentando frequentemente Querem ser excêntricos e dá-lhes para isto… Francamente onde já se viu… Claro que Saramago também se incluía nos excêntricos, o que não seria mau de todo, caso o meu pai não considerasse tal como uma manobra de diversão relativamente à boa escrita. Ouvindo apenas o texto, o meu pai deixava para trás os aspectos formais, os seus lápis e borrachas e deixava-se enlear pela ironia da crónica e a magia da escrita de António Lobo Antunes. Foram excepções esses momentos. Nunca se deixou convencer.
Curiosamente o meu pai e António Lobo Antunes partilhavam esta mesma relutância quanto a estes símbolos do progresso, ainda que o meu pai tenha revelado um amor incondicional e de exclusividade absoluta pelo o seu telemóvel, acima de tudo, porque lhe permitia comunicar com a minha mãe e manter-se mais perto de nós. Aqui fica o texto dedicado ao meu querido pai de quem tantas saudades tenho.
No que me diz respeito não sei mexer num único desses símbolos do progresso, do aspirador ao apara-lápis, do micro-ondas ao blequendéquer, do vídeo ao saca--rolhas que levanta a pouco e pouco duas pérfidas asinhas de metal. Afasto-me dos telemóveis como da peste, faço largos círculos para não passar perto de uma calculadora de bolso. O isqueiro do esquentador assusta-me com as suas rápidas, instantâneas chamazinhas azuis, o trepidar da máquina de lavar loiça provoca-me suores de vítima, de lenço amarrado na cara, de pelotão de execução. E tenho conseguido somar anos, apesar dos aparelhos, graças a uma prudência maníaca e a uma cautela de cego, até que surgiram os computadores.
Julgo não ter medo da morte, não ter medo do dentista, não ter medo da lepra, não ter medo dos políticos, mas tenho medo dos computadores. Tenho medo da sua falsa inocência, da sua submissão aparente, da sua eficácia tenebrosa, do seu ódio silencioso e vesgo. Já me engoliram um romance inteiro, já me transformaram capítulos em poesia experimental, já retiraram ossos aos meus parágrafos, reduzindo-os a um puré de adjectivos. Por isso escrevo à mão. Escrevo à mão para que os erros sejam meus e as personagens iguais às da minha cabeça e não resultado da imaginação delirante e asséptica de uma disquete esquizofrénica, inventando situações desconfortáveis e aberrantes como as dos sonhos das gripes. E os computadores imagino-os rugindo numa jaula de circo, sonolentos e de unhas de fora, só possíveis de enfrentar de botas altas, alamares e chicote na mão, obedecendo a contragosto às ordens de quem se aproxima deles, tocando-lhes com um pau para os obrigar à complicada proeza de uma frase escorreita.
António Lobo Antunes, Crónicas
Curiosamente o meu pai e António Lobo Antunes partilhavam esta mesma relutância quanto a estes símbolos do progresso, ainda que o meu pai tenha revelado um amor incondicional e de exclusividade absoluta pelo o seu telemóvel, acima de tudo, porque lhe permitia comunicar com a minha mãe e manter-se mais perto de nós. Aqui fica o texto dedicado ao meu querido pai de quem tantas saudades tenho.
No que me diz respeito não sei mexer num único desses símbolos do progresso, do aspirador ao apara-lápis, do micro-ondas ao blequendéquer, do vídeo ao saca--rolhas que levanta a pouco e pouco duas pérfidas asinhas de metal. Afasto-me dos telemóveis como da peste, faço largos círculos para não passar perto de uma calculadora de bolso. O isqueiro do esquentador assusta-me com as suas rápidas, instantâneas chamazinhas azuis, o trepidar da máquina de lavar loiça provoca-me suores de vítima, de lenço amarrado na cara, de pelotão de execução. E tenho conseguido somar anos, apesar dos aparelhos, graças a uma prudência maníaca e a uma cautela de cego, até que surgiram os computadores.
Julgo não ter medo da morte, não ter medo do dentista, não ter medo da lepra, não ter medo dos políticos, mas tenho medo dos computadores. Tenho medo da sua falsa inocência, da sua submissão aparente, da sua eficácia tenebrosa, do seu ódio silencioso e vesgo. Já me engoliram um romance inteiro, já me transformaram capítulos em poesia experimental, já retiraram ossos aos meus parágrafos, reduzindo-os a um puré de adjectivos. Por isso escrevo à mão. Escrevo à mão para que os erros sejam meus e as personagens iguais às da minha cabeça e não resultado da imaginação delirante e asséptica de uma disquete esquizofrénica, inventando situações desconfortáveis e aberrantes como as dos sonhos das gripes. E os computadores imagino-os rugindo numa jaula de circo, sonolentos e de unhas de fora, só possíveis de enfrentar de botas altas, alamares e chicote na mão, obedecendo a contragosto às ordens de quem se aproxima deles, tocando-lhes com um pau para os obrigar à complicada proeza de uma frase escorreita.
António Lobo Antunes, Crónicas
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comments are welcome :-)