O olhar do meu pai para a minha mãe manteve-se assim até ao último dos seus dias lúcidos. Um dia telefonei-lhe, não me lembro exactamente quando, sei que lhe perguntei Então, papá? respondeu-me apenas Olha filha, cá estou, para aqui sozinhito à espera da tua mãe. Retorqui-lhe algo de banal como acontece em conversas semelhantes, despedimo-nos, provavelmente ter-lhe-ei dito que a mamã devia estar a chegar, estando, no entanto, certa que o meu querido pai permaneceria ansioso como uma criança à espera da minha mãe mesmo que fossem uns meros dez minutos. Guardei sempre com carinho esta breve troca de palavras pela expressão cómica do meu pai, sozinhito, como se uma simples ida à escola, à mercearia ou ao supermercado fosse uma ausência prolongada, sentida e dolorosa. Na verdade, qualquer instante longe da minha mãe assim se revelava para o meu querido pai.
Um dos primeiros pensamentos que me atravessou a mente naquela terça-feira à porta do hospital, quando se confirmou que nada mais havia a fazer senão esperar que a senhora da gadanha desse a mão ao meu pai e o libertasse daquela cama a que estava aprisionado, foi que ele iria ficar sozinhito e as lágrimas soltaram-se também pela solidão do meu pai sem nós. Aninhei-me no H., as mãos a esconder os olhos, o corpo a corcovar-se pela dor, o peito tresloucado aos solavancos, as palavras perdidas nos soluços.
Estou certa, portanto, que o meu pai jamais seria capaz de escrever, pensar sequer, como Alberto Caeiro, Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia/ Não há nada mais simples/ Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte./ Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. Entre as duas datas, que detêm a simplicidade com que acredito que o meu pai gostaria de ser lembrado, todos os dias foram dele e da minha mãe; dele, da minha mãe e de mim; dele, da minha mãe, de mim e do H. Sozinhito teria desistido de existir.
Um dos primeiros pensamentos que me atravessou a mente naquela terça-feira à porta do hospital, quando se confirmou que nada mais havia a fazer senão esperar que a senhora da gadanha desse a mão ao meu pai e o libertasse daquela cama a que estava aprisionado, foi que ele iria ficar sozinhito e as lágrimas soltaram-se também pela solidão do meu pai sem nós. Aninhei-me no H., as mãos a esconder os olhos, o corpo a corcovar-se pela dor, o peito tresloucado aos solavancos, as palavras perdidas nos soluços.
Estou certa, portanto, que o meu pai jamais seria capaz de escrever, pensar sequer, como Alberto Caeiro, Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia/ Não há nada mais simples/ Tem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte./ Entre uma e outra cousa todos os dias são meus. Entre as duas datas, que detêm a simplicidade com que acredito que o meu pai gostaria de ser lembrado, todos os dias foram dele e da minha mãe; dele, da minha mãe e de mim; dele, da minha mãe, de mim e do H. Sozinhito teria desistido de existir.
Muito bonito, este teu post. Fez-me lembrar uma situação parecida. Hà 3 anos, a minha mãe teve de ser operada para colocar uma prótese do joelho. Acompanhei o meu pai durante esses longos dias e noites e só então me dei conta da sua tremenda dependência, sobretudo emocional, da presença da minha mãe. É profundamente comovente.
ResponderEliminarlágrima ao canto do olho...
ResponderEliminarAcho que devemos ficar orgulhosas de nascer de um amor assim :)
ResponderEliminarCompletamente!!
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ResponderEliminarMeu pai também amava minha mãe assim, com esses olhos que encontram o infinito no rosto da amada. É mesmo lindo lembrar...Teu texto está comovente.
ResponderEliminarTens textos tão bonitos!
ResponderEliminarObrigada, super-mãe :))
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