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terça-feira, 4 de julho de 2006

O amor é uma companhia

O objectivo com que se viaja para uma cidade determina em grande parte a percepção que se tem da mesma.
Munique tornou-se minha conhecida algures nos já longínquos anos oitenta e, sempre que lá regressei, levava comigo responsabilidades profissionais. Os alemães, passe o estereótipo, não são flexíveis em termos de trabalho e cumprimento de planos. Ordem e rigor. Está previsto, faça-se. Pouco importa que esteja tudo à beira do colapso, que a concentração se esgote num espaço de tempo muito inferior ao que é consagrado para as actividades. A verdade é que preferiria que em Portugal houvesse um sentido mínimo de profissionalismo, que se tivesse a ideia de que os dinheiros do erário público devem ser aplicados e geridos de forma adequada e para o bem da comunidade, tal como se faz na Alemanha. Em Munique vi, pois, um local de trabalho, mais do que um espaço de lazer. Pressentia, não obstante, que a cidade podia ser bem mais aprazível, assim lhe desse eu o tempo para me seduzir.
Os finais de dia eram pautados por uma fadiga que se entranha nos ossos, um cansaço fundo que parece não passar nunca. A minha parca paciência evidencia-se nestes momentos. Nesse ano, estava com grupo culturalmente heterogéneo: uma portuguesa, eu, uma mexicana, Sílvia, uma búlgara, Maya, uma lituana, Salvia, e por vezes uma indiana, Salvita. A comunicação permanente, exceptuando as horas abandonadas nos braços de Morfeu, numa língua que não a materna provoca um intenso desgaste intelectual. Não é só o falar que se altera, é o sentir que se transforma. Tal como quando nos encontramos privados de uma iguaria gastronómica, comecei a sentir falta de saborear a minha própria língua materna, tomar-lhe o paladar e sentir-lhe o perfume. Acredito que à búlgara também, pois a partir de certa altura largava amiúde pelos intervalos de trabalho ou mesmo pelas ruas da cidade Ich kann nicht mehr!* Certo dia, estando nós em pleno Marienplatz, bem no centro de Munique, a búlgara deu-me para a mão um saco enorme e pesado atafulhado de compras Toma! Olhei-a incrédula e, possuída pelo síndrome de abstinência da minha própria língua, embrulhada no cansaço acumulado, perguntei-lhe Mas porque é que não pões o saco no chão? Ela respondeu lesta Porque o chão está sujo e partiu fazendo pose junto ao monumento no centro da praça, aos sorrisos para a máquina fotográfica, enquanto eu aguentava estoicamente o carrego, maldizendo a minha vida em português vernáculo, inaudível aos demais.
Quando voltei a Munique sem qualquer intuito profissional, não sei se tal será possível para um professor de alemão, a cidade sorriu-me então, não obstante o frio cortante, e acima de tudo, porque comigo tinha o H. e a minha mãe, ambos viajantes intrépidos e ambos virgens no que respeitava à capital da Baviera. Na noite em que chegámos cumpri um desejo que me assalta com frequência: comer uma Brezel e beber um Weissbier. Desta feita, não havia constrangimentos, alguém à espera, tempo contado ou o cansaço das obrigações profissionais. Desta vez éramos nós, deambulando pela cidade, engalanada para o Natal e perfumada com o aroma do Glühwein. Desta vez, deixei-me seduzir pela alma da cidade, pela luz e pelo espírito do Natal. Diz-se que não se deve voltar ao lugar onde fomos felizes uma vez e, porque o regresso a Munique foi luminoso e acolhedor, acredito que só agora terei sido feliz na capital bávara. Não porque a cidade fosse outra, mas porque eu, sendo a mesma e sendo outra, tinha a meu lado o H. e a minha querida mãe. O amor é uma companhia. Já não sei andar só pelos caminhos.**

* Já não aguento mais/ Já não posso mais
** Alberto Caeiro, Poemas

8 comentários:

  1. Oh... Este texto fez-me sorrir...
    E sabes, essa frase final é a que está no meu convite de casamento... :) *

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  2. É tão bom, viajar na época do Natal. A decoração dá um brilho tão especial :)

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  3. Já tinha estado em Londres nesta altura, mas acho que Munique e a Alemanha têm uma outra maneira de viver o Natal.:)

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  4. Isso têm.

    Munique nunca me fascinou mto, como já disse, por ser o local de viagens frequentes (aeroporto, estação, Eichstätt e regresso), mas Nürnberg no Natal... lindo.
    Claro que ir ao mercado de Natal é suicício, mas antes ou depois, com a cidade iluminada pelas decorações de Natal... linda, linda linda.

    E tu a dares-lhe com a Weissbier. Nhac. Mil vezes um dönnr. Ou um Quarckstrüdel mit Vanillesausse... nham

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  5. aquilo era döner, obviamente, mas este pc n gosta de mim. :P

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  6. Nremberga tem garnde tradição no Natal. Vale mesmo a pena?
    E quanto ao döner, podes ficar com ele todinho, blergh, aquela carnuça toda empoleirada nunca me atraiu muito... e Strudel é óptimo, de Quark também há à vendano Lidl, na secção dos congelados.

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  7. Fui a Nürnberg três vezes, uma delas durante o Mercado de Natal, mas essa não é a melhor altura, porque é uma multidão tão grande que não dá pra ver nada.

    Mas como o Natal na Alemanha começa logo depois do Halloween (!), há mtas oportunidades de ver a cidade com as decorações, e sem os preços absurdos do mercado. (comprei lá umas decorações muito bonitas, mas o preço... ouch)

    Mas sim, é uma cidade que recomendo imenso.

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