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domingo, 19 de agosto de 2007

Umarmung

Cidades são como pessoas. Têm vida, carácter e personalidade, bons e maus humores. Acordares suaves e delicados, agitados e estremunhados. Têm sonhos e pesadelos. Cores e aromas e sabores vários. Cidades são mulheres e são homens. E se se fala do pulsar da cidade, do coração da cidade ou das artérias da cidade, é porque vida têm, como os homens que nela habitam.
Desta feita a cidade era Viena, cidade da cultura erudita, da valsa de Strauss, da música clássica, de grandes filósofos e pensadores que modelaram e transformaram o século XX, a cidade de Freud, de Canetti ou de Karl Kraus. E lá parti à descoberta da cidade, palco de inolvidáveis acontecimentos políticos, berço de uma gente delicada no trato mas distante nos afectos. Gente polida, proferindo constantes Grüss Gott, Danke schön!, Bitte schön!. Gente educada que por via da sua reconhecida deferência usa o conjuntivo com uma frequência surpreendente. Gente culta e letrada, permanentemente a braços com a sua orientação ideológica e cujos líderes, presentes e passados, partilham ironicamente a inicial de seus apelidos: o mesmo H, hediondo de Horror ou Holocausto. Gente preocupada em digerir o seu passado e gerir o seu presente.
Na centro da cidade sobressaía o odor forte a excrementos de cavalos das charretes perto do Stephansdom, incomparável no telhado reluzente com a águia bicéfala e os sons que pairavam nas ruas circundantes, ao lado da contrastante e moderna Haas Haus, espelho surpreendente do Stephansdom, distavam da valsa de Strauss ou da música clássica, banda sonora possível de uma cidade que se me afigurava pretérita. Indicavam a mudança e gente de outras paragens soltava música como gotículas de uma efémera alegria: música andina, tocada por peruanos de cabelos negros de noite e ponches coloridos e imigrantes do Leste cantando convictamente em trajes rubros e dourados.
E passear pela cidade pode ser também um trilho de volúpia materializado numa Sachertorte, deleite de qualquer fervoroso amante de chocolate, acompanhada por um café, em milhentas variedades apresentado, e saboreado em elegantes salões de chá ou cafés, tradição vienense por excelência, cultivada com carinho, tertúlias de outrora preservadas em memória do pulsar cultural duma cidade inexistente.
E a cidade era grande e monumental em oposição ao tempo de que dispunha. O Belvedere seria, portanto. Contemplar Klimt, sentar-me de frente para Schiele e, por instantes, sentir que também eu era beijada e abraçada por aquela belíssima cidade.

Egon Schiele, Umarmung, 1915.

Porque Viena é uma cidade que também não esquecerei.

10 comentários:

  1. Bela descrição de Viena. Como deve imaginar, pela distância, de vez em quando dou lá um saltinho. Felizmente não se recordou de descrever aqueles grupos de vadios que constantemente se encontram "acampados" nos jardins laterais do palácio real. Nunca entendi porque lhes é permitido, assim... dormem na relva, mijam nas árvores, abandonam garrafas...
    Por outro lado, compreendo o que quer dizer com "gente delicada no trato, mas distante nos afectos".
    Sinto o mesmo com os húngaros.
    Eu cá dou-lhe diferente interpretação: Chamo-lhe "falsa educação".
    É cumprimentarem-me porque "faz parte" essa obrigação, nao porque tenham prazer nisso.
    É oferecerem seus préstimos do tipo: "sempre que precise ajuda, ligue-me ou apareça"
    Na hora da verdade, se preciso da ajuda e ligo ou apareço, fazem aquela cara trombuda e feiosa de frete....

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  2. Dei conta (tentei copiar parte de uma frase sua para utilizar como citaçao no comentario anterior) de que tem activado um "sistema" que não permite "copiar-colar".
    Pode explicar-me (i.e. lá numa caixa de comentários do Szerinting) como se activa isso. Gostaria de proteger as minhas fotos... sao tantas e os meus leitores brasileiros não se comportam...

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  3. Bom dia, James!
    Estive duas semsnas na Áustria a fazer um curso, uma delas em Viena, e uma das vezes em que tivemos uma sessão em que se abordou o comportamento dos austríacos, jurei a mim mesma que nem saía de casa (o sítio onde estava), tantos salamaleques eram exigidos para cumprimentar, dizer adeus, pedir uma informação. Não que me considere uma rapariga com falta de deferência mas tive a sensação de que a menor distracção e ficaria muito mal vista. Este texto é muito antigo, foi repescado porque me lembrei dele a propósito do Corta-fitas. Foi escrito para um passatempo sobre cidades.
    Envio-lhe por mail o "segredo" para não permitir a cópia. Também só utilizo este sistema porque me aborrece e muito a utilização abusiva do que por aqui vou deixando, por uma questão de princípio. Mas tanto quanto me apercebo, isto não dá para as fotos.

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  4. já está, porém os códigos infelizmente nao protegem as fotos, tal como me informou....
    Kössönom

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  5. De nada, James, como gostaria de responder-lhe na única língua que o diabo respeita ;-)

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  6. A expressão "de nada" diz-se... "Szívesén" (na verdade significa "do coração")....

    .... sendo que a palavra Szív significa coração.

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  7. De Viena retive o esmero, o civismo irrepreensível (não dei pelos tais vadios), a cultura que se respira e a gelada cordialidade das pessoas perante nós, latinos. Única excepção: um café-tertúlia boémio, caótico e velhíssimo,com um ambiente que me lembrou os nossos melhores bares de Lisboa, onde me levou um amigo austríaco que adora Portugal.
    É uma cidade magnífica, sem dúvida, mas teve o condão de fazer-me sentir uma intrusa. E na Áustria, confesso, não consegui livrar-me da sensação de estar na tampa de uma caixa de bombons. Que são deliciosos, por sinal.

    Um beijo
    Ana

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  8. Também não me sinto em casa em Viena.

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