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terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Leite-creme

Cruzo-me com a pá de queimar o leite-creme numa incursão fugaz à despensa. Conheço-a desde que me conheço a mim. Tem cabo de madeira carcomido pelas décadas e na ponta, a pá propriamente dita, a forma de paus do naipe de cartas em ferro também vetusto. Recolho-a e decido Vou fazer um leite-creme. Coloco-a ao lume no bico mais pequeno, a chama deve incidir cabalmente sobre a pá e a pá deve estar bem quente quando beijar o açúcar sobre o leite-creme. Desse beijo escaldante com o açúcar surgirá a camada torrada e crocante e desprender-se-á o aroma mais doce e perfumado que os beijos produzem. Recolho um tacho de ferro. Deito-lhe duas colheres de sopa de farinha de trigo, nunca farinha maizena, açúcar a gosto, umas seis ou oito colheres, oito desta vez, adiciono um pouco de leite apenas para ligar a farinha e o açúcar e, de seguida, junto cinco gemas de ovos, as claras reservadas para outras doçarias. Mexo com cuidado. Depois adiciono cuidadosamente o litro de leite condizente com as duas colheres de sopa de farinha. Levo a lume brando e deixo engrossar, mexendo sempre, com cuidado e enlevo. A textura espessando-se e a memória que embate com todos os leites-creme – estranho plural- da minha vida passada, mesmo antes de me ter sido dada a receita pela minha avó paterna, prolixa em manjares, contida em carinho, e neles estão anos e décadas, almoços de Natal e de Páscoa, dias comuns como o Domingo que se solta lá fora, momentos que não voltam, o meu pai que não volta. A pá aquece, entretanto. O açúcar granulado por cima do leite-creme, agora numa travessa, esperando o beijo ardente da pá, o aroma que se solta no primeiro contacto, o fumo perfumado que invade a cozinha. Hoje há leite-creme, Papá.

10 comentários:

  1. Deixaste-me com água na boca e nos olhos. Também adoro comer e fazer leite-creme, e traz-me sempre tantas e tão boas memórias. Tens razão: maizena... jamé!

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  2. Adoro! Sobertudo a parte do açucar queimado. Até me cheirou aqui...
    Beijos

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  3. Só como leite-creme uma vez por ano, no Natal, feito pela minha madrinha.
    No ano passado, contudo, ela optou por fazer arroz-doce (que eu também adoro!) em vez do leite-creme. Mas a falta ficou compensada pela leitura deste post. Até lambi a taça!
    :)

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  4. A ASAE qualquer dia lhe confiscará essa pá....

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  5. Pois é... já agora, parece-me que o litro de leite é condizente com as duas colheres de sopa de farinha e não com as de açúcar :-)

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  6. Gosto muito de leite-creme também, embora faça muito pouco, acho que esta foi a primeira vez que fiz depois da partida do meu pai.

    James, Se a Asae viesse cá a casa teria muito a confiscar :)

    Obrigada, Pedro, vou já emendar :-)

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  7. O leite-creme também tem o condão de trazer-me de volta muitas imagens de Natal, da minha avó, da cozinha da minha avó ... as tuas palavras, o teu texto ... deixaram-me entregue às tuas memórias tanto quanto às minhas, de água na boca e água nos olhos ... embalada pela tua escrita linda, Leonor!

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  8. Pode experimentá-la, Martha :-)

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