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quarta-feira, 29 de outubro de 2008

À porta da língua

Algures num livro estava escarrapachado que nada pior do que ser-se rejeitado por um livro. O leitor pode e deve decidir das suas leituras mas ser rejeitado por um livro por incapacidade de juntar letras e delas fazer sentido será um castigo inestimável, talvez das penas mais cruéis para os amantes da leitura. Provei desse veneno quando, no aeroporto de Madrid em trânsito para o norte da Europa, fiquei à porta do livro, trancada à porta da língua com um ferrolho inviolável.
A montra ostentava não um, dois ou três livros, a montra transbordava de exemplares lustrosos e brilhantes, cuidadosamente amontoados, criteriosamente dispostos, artisticamente expostos à mercê da cobiça bibliófila dos passageiros em trânsito. Conseguia através do vidro espesso da montra pressentir-lhes o aroma da impressão recente e ouvir-lhes em sussurro o toque dos livros virgens, um restolhar mansinho das páginas ainda imberbes de mãos alheias. Peguei na máquina fotográfica, o japonês cola-se-me assim que ouve o rodar das rodas das malas de viagem contra o chão do corredor e tirei uma fotografia. Esbocei um lamento, a voz ligeiramente esganiçada, dizem-me que assim acontece sempre que atingida na alma. Sentei-me no café de frente para a montra saboreando um café desenxabido, entregue à minha incapacidade de ler fluentemente na língua de Cervantes, em tortura à porta do livro, rejeitada pela minha própria incapacidade de ir além das convencionais expressões coloquiais de orientação mundana. Nada pior do que ser-se rejeitado por um livro.

10 comentários:

  1. uma verdadeira parede de betão o bloqueio linguistico Querida Leonor .. quanto ao seu texto, para lá de expressivo * :)

    Beijinho

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Como a compreendo, Leonor! Felizmente, há livros que nos abrem a janela da boa tradução. E o castelhano parece ser fácil de traduzir – ou as traduções que tenho lido dele parecem-me muito razoáveis. Mas há janelas traiçoeiras. Comecei, há pouco, a ler um húngaro, numa tradução inglesa – porque ouvi dizer que a portuguesa era muito má – e estou cheia de medo de que a janela, ainda apenas entreaberta, deite para alguma cave escura ou algum depósito de carvão. É péssimo quando, não se podendo entrar pela porta, também não se consegue entrar pela janela. ;-)

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  4. Leonor
    Olha que o castelhano se lê muito bem. Faz um esforço e verás que compensa! (O mesmo não posso dizer do alemão, quenem com esforço lá vai! Ai)
    Beijos

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  5. Por muito que me desesperasse a espera de o poder ler, digo-te uma coisa: só pela qualidade do café, antes castelhano-analfabeta!

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  6. Entendo-te perfeitamente, quantas vezes sinto eu essa rejeição... e tu ainda assim consegues ler em mais uma língua que eu :)
    O texto está fantástico, ainda bem que estas letras não me rejeitam!
    Beijos.

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  7. Acho mesmo que devias experimentar... já nem precisas de gastar dinheiro, eu empresto. Pessoalmente acho muito interessante ler em castelhano, e o bloqueio não é tão intrasponível como à partida pode parecer!

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  8. Como sabem, já tenho o livro em português e ainda nem tive tempo de o começar, estou a acabar um Pamuk, mas fiquei encanitada com aquela. O mesmo aconteceu com o Le Clezio. Não sei francês, não há traduções disponíveis e, mesmo sabendo que não ia ter tempo de o ler, irrita-me não ser capaz de ler um livro que quero.
    Beijinhos a todas e obrigada

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  9. tenho um (Le Clezio) traduzido e bem, Querida Leonor .. posso emprestar se quiser :)

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  10. Muito obrigada, Once, tenho O Jogo do Anjo em fila de espera :-)

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