Descobri que era do Sul quando me apaixonei pela luz de Lisboa, luz como não há outra e li nas palavras de José Cardoso Pires um bálsamo para a alma, o conforto para estados de alma sombrios não compatíveis com o fulgor da cidade branca.
Descobri que era do Norte quando me senti bem-vinda sem provas ou provações, apenas a porta escancarada, uma extensão evidente da alma calorosa que só a Norte se deixa sentir.
Descobri que era do Sul quando me arremessaram Vocês lá de Lisboa.Descobri que era do Norte quando a minha mãe me pediu um testo, afirmou que o gato manquejava, usa cruzetas e cozinha em sertãs.
Descobri que era do Sul quando na esplanada da Graça vi a cidade estender-se para o Tejo como um tapete debruado e me senti de Lisboa como de mais lado nenhum.
Descobri que era do Norte quando me faltaram os diospiros e os míscaros envoltos na frontalidade dos falares nortenhos.
Descobri que era do Sul quando me faltaram as filhós à mesa da Consoada.
Descobri que era do Norte quando na mesa da Consoada não havia mousse de chocolate ou troncos de natal comprados na pastelaria da esquina nem bolo de bolacha ou doces de colher presentes em outras ocasiões iguais se Natal, Páscoa, aniversários ou casamentos.
Descobri que era do Sul quando li num guia de viagem sobre Portugal o preconceito escarrapachado em alemão como se de lei se tratasse Braga reza, o Porto trabalha e Lisboa diverte-se.Descobri que era do Norte quando as portas a Sul se me fecharam e os olhares de soslaio se me cravaram nas costas que nem flechas de bisonhice.
Descobri que era do Sul quando chego a Portugal em dia de sol brilhante e vejo Lisboa a meus pés como nenhuma outra e o coração me cutuca na alma Chegámos.Descobri que era do Norte quando senti as portas entreabertas, uma frecha apenas, da qual se vislumbram olhos desconfiados, da alma nem sinal.
Descobri que era do Sul quando as palavras que ouço em surdina me trazem o escritor de volta Logo a abrir apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar.Descobri que era do Norte quando se me solta o vernáculo em momentos de fúria e intempestividade e mais não significa do que o alívio incomensurável da carga pesada dos sentimentos nefastos.
Descobri que era do Sul quando em trânsito no aeroporto de Madrid, encafuada nos autocarros apinhados de turistas, passageiros e viajantes, me esfregaram na cara que sendo de Lisboa não seria de esperar senão em voo directo.
Descobri que era do Norte quando filho da puta surge apenas o praguejar furioso não uma ofensa à progenitora do visado.
Descobri que era do Sul quando me questionaram E vocês, lá em Lisboa, o que é fazem no Natal?Descobri que era do Norte quando me assola a nostalgia da Páscoa, a saudade do Pão-de-Ló com queijo da Serra, os desejos de leite-creme queimado com a pá de ferro fundido aquecido em fogão de lenha, aromas que a memória agarra à alma com a recordação doce dos afectos.
Descobri que era do Sul quando perante a afirmação infantil Olha um abiãoe! pensei Tão pequeno e tão murcão.
Descobri que era do Sul quando descobri que era do Norte quando descobri que era do Sul.
Descobri que era do Sul quando descobri que era do Norte quando descobri que era do Sul.
Fui ao baú buscar este texto a propósito da conversa com a Helena nesta caixa de comentários.
Gostei muito! E até eu descobri que tb sou um bocadito do sul... :)
ResponderEliminarbeijocas
Que tu eras uma cidadã do mundo já eu sabia!
ResponderEliminarBelo texto, fraülein.
Olha e fez-me penar que não sou de parte alguma, tenho um velho problema de raízes.
Ainda bem que és do Sul, minha mãe. Estava difícil :))))
ResponderEliminarPois, Ivone, compreendo-te bem. Apesar de morar aqui desde sempre também não sinto de cá. Vou sendo um bocadinho de cada lado :))))
Belo, Leonor. Que engraçado - podíamos ser quase vizinhas:) Viseu é já aqui ao lado:)
ResponderEliminarSou do norte mas amo o sul. A m mãe é de Vendas Novas e tenho família aí, em Lisboa, Vila Franca, Santarém. Gosto da sensação anual de ir passar férias aí para baixo, o clima, o calor, a luz, a hospitalidade alentejana, adoro e revigora-me. É uma das minhas evasões preferidas. Mas, norte ou sul, é preciso é manter a abertura, a generosidade. E, claro, cá dentro e quando lá fora.
Sim, a generosidade e a abertura são mesmo o mais importante, Fátima. Não acho que as pessoas aqui nesta zona onde vivo sejam particularmente abertas e generosas. Apesar de ter vivido sempre aqui, os meus pais são de Viseu e têm uma maneira de ser muito diferente. Continuo-me a sentir de um outro lado que não este :)
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