Eu sou muitas e, nas muitas que sou, tenho sido assaltada amiúde pela viajante turista inquieta que em mim habita e que não me deixa descansada a menos que o meu outro eu que alberga estas almas múltiplas esteja doente, o que felizmente é ocorrência bianual. Tendo em conta que já esgotei a minha quota para o ano que corre lesto a caminho do fim e que o sol me tem iluminado a alma, dou por mim em viagens sortidas, como se fossem um saco de rebuçados de fruta, que sabor vou escolher hoje?, e com uma vontade incontrolável de sair daqui para fora, ver outras cores, sentir outros cheiros. Ir. Partir.
E assim faria, caso me bafejasse o tempo. Apanhava um avião em Lisboa, tenho um problema grave de enfado instantâneo com viagens de carro e rumava a Londres, o sabor eleito do dia. Tirava uma tarde ou uma manhã para me afogar em livros na Hatchard´s ou na Waterstone´s de Piccadillly. Acho até indecente alguém idealizar e ter aberto ao público uma livraria de seis andares de livros, seis, nada mais, nada menos. Seis andares repletos de livros a cheirar a novo, ainda com o perfume de recém-chegado da impressão, as páginas invictas, as capas sem amolgaduras ou vincos, coroadas como o autocolante mágico 3 for 2, a perdição absoluta para bibliófilos bulímicos, outra das múltiplas que me inferniza o juízo, e para qualquer carteira comum.
Abandonava a livraria a contra gosto, é sempre assim, provavelmente chamada insistentemente Anda!, quem sabe arrastada metaforicamente pelas melenas, Anda lá! e fazia pés à estrada, aconchegada em casacos e cachecóis, atafulhada em luvas e mitenes em camadas como casca de cebola para afugentar o frio. Descia Whitehall de encontro ao Big Ben, atravessava a Westminster Bridge e largava-me margem abaixo até à Tate Modern apenas para tomar um café ou mais provavelmente um chá acompanhado de um muffin de chocolate, na varanda em frente ao Tamisa. E aí ficaria enrolada no meu cachecol, o tempo subitamente suspenso, a vê-lo passar indiferente como todos os rios, majestoso com uma grande parte dos que beijam algumas capitais europeias. Do outro lado Saint Paul’s Cathedral e os turistas com formiguinhas trabalhadoras em vai-vém sobre a Millennium Bridge, há algo de estranhamente magnético naquela ponte.
Ficaria até me começar a gelar o nariz embalada na música da cidade em fundo para descer ao andar térreo e fazer-me à rua mais uma vez. Atravessava a Millennium Bridge, apanhava o Metro e eis-me em Covent Garden para sentir o bulício da tarde a cair, gosto de bulício do fim de tarde e da agitação de cidades policromáticas. Um passeio a pé com passagem em Charing Cross e uma espreitadela na Blackwell´s, há sempre um livro em falta, e uma olhadela a Leicester Square. Talvez agora fosse tempo de tomar uma cask ale num pub, passar em revista as vistas percorridas pelos pés e pela alma e entreter-me com mapas e caderninhos.
Ao outro dia, Portobello Road, não há Londres sem Portobello Road. Deixar-me encaminhar pela multidão em peregrinação e meter o nariz em tudo o que é banca para me inundar de rebuliço, aromas e cores e o resto do dia para fazer exactamente o que me passasse pela cabeça, talvez uma espreitadela ao Museu Britânico, morro de amores pelo Great Hall e pela Pedra da Rosetta. E assim seria. Sem a pressa de quilómetros a calcorrear ou checklists de símbolos para preencher. Apenas eu e a cidade para rever e redescobrir.