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terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Do que não está bem

Eu e o meu pai mantínhamos debates incessantes em torno da língua portuguesa. Nem sempre concordávamos e ele, pouco permeável à mudança, mantinha-se irredutivelmente convicto de que a última revisão da língua portuguesa acontecera em 1945, salvo erro. Portanto, tudo o que fosse dicionário recente mais não era do que isso mesmo, um dicionário recente. Para o meu pai, o dicionário era um mero instrumento de trabalho, nem sempre fiável. Discordámos em torno do stress, acusou-me sem piedade de ter escrito bouquet com acento circunflexo e sem t no final, guerra da qual saí vencedora, e jamais admitiria a libertinagem em torno da língua de Camões. Dou por mim a pensar, amiúde, quem iria sobreviver agora à sua temerária luta contra a TLEBS e todos os dias o vejo de canhenhos na mão à minha espera, pela hora do almoço, dizendo-me Vês? Eu não te dizia? Isso não existe! Querem ser excêntricos e dá-lhes para isto. Ai, Santo Deus!
Era um respeitador exemplar da propriedade alheia, mas no que respeitava à revisão de textos literários e se, após consultas variadas do autor, tal lhe fosse aceite, o que sem excepção acontecia, o meu pai ia pintando o texto com a sua sensibilidade. Muitas vezes dava por ele com os textos no colo, lápis na mão a afirmar Isto não está bem! Telefonadela para cá, consulta para lá, o autor dos livros achava sempre tudo muito bem, ele não teria feito melhor, não o fez, de resto, e as emendas e sugestões foram tomando forma no papel impresso. Palmadinhas nas costas, elogios pungentes, foi maioritariamente o que recebeu, é sabido que a generosidade é um dom alheio ao tecido empresarial português. Sempre lhe disse que o autor devia colocá-lo no livro como co-autor. O meu pai ria-se apenas. Despojado, como sempre, ter-lhe-ão chegado os elogios.
Quando começou a rever os meus textos, assinámos um pacto: nada de modificar o texto, mesmo com a minha permissão, se não teria um outro livro escrito. Assim foi. O meu pai nunca me alterou rigorosamente nada, apenas corrigiu erros e ajudou-me nas vírgulas. Se estiver a ler este blogue, já terá colocado inúmeras e sei que segreda à
Ana, de vez em quando, como desta vez.
Hoje pediram-me para dar uma opinião sobre um texto. Chegou-me por mail. Li-o e reli-o, coloquei-lhe asteriscos e observações. Mas ainda assim, algo não batia certo. Dei por mim junto ao teclado a acrescentar pontos e conjunções, uma ou outra informação, a questionar o estilo, a pensar Isto não está bem! Liguei ao autor e disse-lhe Isto não está bem, o autor disse-me para fazer as alterações a contento e fiquei a pensar que não está bem. Não ter o meu querido pai para lhe contar tudo isto não está bem.

6 comentários:

  1. rapaz, isso aqui está bem sim. vc escreve muito bem. parabens.

    Helder Hortta

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  2. Obrigada, Helder, e bem-vindo.

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  3. E que saudades tenho desse tempo, mesmo das 'discusões' que tínhamos... é que nem sempre concordava embora de nada valesse... Jinhos

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  4. Não lhe contas mas ele sabe. E tu estás a seguir as "pisadas" dele! E aprendeste com ele...
    Beijos grandes.
    À teimosita também :)

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