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quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Pero si un atardecer
las gardenias de mi amor se mueren
es porque han adivinado
que tu amor se ha marchitado
porque existe otro querer.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Com flores e livros

E os olhos grandes no regaço, as pernas cruzadas sobre a cama, junto a uma janela que se sabe ter Lisboa lá fora, de Lisboa nada se vê, porém. A cama num canto da enfermaria. Em redor, pacientes bem mais idosas, aparentemente bem mais enfermas, a memória que se me resvalou sem que lhe pudesse valer, sem que me pudesse valer a mim própria, de novo a vontade de dizer o que já não tem sentido, Vá Papá, anda, põe-te bom para irmos a Viseu. Passou esse tempo. Transporto-o apenas comigo na languidez destes dias sem fim.
E os olhos que se riram à minha entrada, duas cabeças que se voltaram Olha a senhora professora! e a J., feliz por me ver, ergueu-se um pouco mais na cama e beijou-me com um sorriso como poucos. Estendi-lhe a gerbéria laranja, mesmo sabendo que não poderia ficar com ela. De novo o sorriso, de novo, ó setora, não era preciso e depois o livro, um dos meus preferidos, para que matasse o tempo inútil naquela enfermaria Ó setora, mais coisas, setora? Desembrulhou o livro com cuidado e carinho. Virou-o e, com atenção, foi lendo as letras na contra-capa. De longe, eu via apenas os olhos de Chico Buarque lá no cantinho inferior esquerdo. E depois a conversa de circunstância Ai, senhora professora, isto para mim foi uma facada no peito... disse a mulher levando a mão ao dito. A senhora professora lá tentou acalmar a histeria despropositada da mulher Mas, pronto, agora já se sabe o que é… e o padrasto Ah, pois, mas é para toda a vida, já viu?
A J. alheou-se temporariamente da conversa idiota e manuseava o livro que eu lhe oferecera com cuidado, atenta e curiosa. Acrescentei Eu já tinha reparado que a J. estava muito magrinha e o padrasto Sabe o que é? Mania das dietas é o que é… Esbocei um sorriso tão inane como a conversa daqueles dois, acrescentando que hoje em dia a investigação na área da diabetes já está muito avançada e que se prevê a cura. A mãe rejubilou Ai, senhora professora, ainda bem que diz isso… Mas sabe ela já andava mal, mas é teimosa… sorri-me no limite da paciência, Sabe que um teimoso nunca teima sozinho… Ah pois isso é verdade, disse a mulher. Sabe deus, alá e jah o que engoli para não dizer àqueles dois que a J. não precisa de remoques e recriminações, que não ficou diabética por vontade própria. Nestas idades é normal a teimosia, adiantei e depois a voz eriçou-se-me sem controlo mas olhe que tem aqui uma filha de ouro, ajuizada, boa aluna… a mãe concordou Ai lá isso é verdade… e mais uma vez a necessidade de engolir palavras perante tamanha hipocrisia da mãe.
A J. continuava semi ausente. Oscilava entre o bouquet singelo e o livro no regaço. Soltou Tão giro, setora!, tocando com o polegar e o indicador numa das verduras que acompanhava a gerbéria São as minhas flores preferidas... Quem sabe, sabe, disse-lhe brincando. E agora vou-me, linda. Um beijo grande e um abraço bem apertadinho. Que tudo na vida da J. se pudesse resolver com flores e livros e nada lhe faltaria.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

No direction home

Fevereiro não foi muito cortês com os visitantes. Frio e dias cinzentos intercalados com umas réstias de sol azul.
Quando saímos do Guggenheim, já de tarde, caíam uns farrapos de neve. Alguns dos turistas lusos rejubilaram e eu lá me conformei, sabido que é que a neve e o frio seriam liminarmente eliminados da minha existência e do próprio mundo, se o criador me tivesse consultado naqueles tais seis dias.
Dali até ao hotel distavam ainda alguns quarteirões, muitos, por acaso, nada que não se calcorreasse com satisfação, caso as condições atmosféricas não fossem tão adversas. Quinta Avenida abaixo, por exemplo, e depois umas cortadas à direita e estaríamos no hotel. As cidades querem-se corridas, calcorreadas, sentidas nas solas dos pés, arrastados pelos quilómetros, percorridos na curiosidade de ir sempre mais além, ver mais, sentir mais. Assim é com a cidade que nunca dorme, evidentemente. Atravessar o Central Park, virar à esquerda e depois seguir em frente seria outra das possibilidades. Não com o friozinho cortante na nuca, o nariz a pingar da humidade, os olhos lacrimejantes do vento e o entardecer a aproximar-se vertiginosamente Que fazer então? Apanhar um táxi pois.
Lá me entalei na parte de trás do amarelo, com sacos do Guggenheim pelo meio e a chuva a bater no vidro. Um dos presentes assume o controle da situação. Saca do seu inglês bem polido, aprendido a preceito, sem mácula, ausente de sotaque ou entoação que lhe denunciasse a proveniência lusa e indica com exactidão ruas e avenidas. E lá fomos rua acima. Era final de tarde e o trânsito acumulava-se nas artérias da Big Apple. Caía agora uma morrinha suave que trazia o crepúsculo anunciado.
O taxista não era rapaz de grandes falas. Não encontrei nunca nenhum em Nova Iorque que o fosse. Os restantes quatro ocupantes mantinham um silêncio respeitador, não fossem incomodar. A noite descia pouco a pouco sobre a cidade. Luzes aqui e ali que se acendiam, o néon ainda mais estridente, os faróis dos automóveis em trânsito mais rubros pelo contraste com o escurecer. O trajecto, que se sabia não tão longe, alongava-se sem explicação na direcção oposta. Não tardaria muito e estaríamos no Harlem, já não tão perigoso aos dias deste episódio mas ainda assim não era, de todo, o nosso destino.
Não, aquilo não estava bem. Um dos ocupantes do yellow cab, também ele um rapaz tido por si próprio como douto nestes linguajares anglófonos, inquiriu o taxista, afinal onde íamos nós? Uma vez dadas as coordenadas da zona da cidade onde o hotel se situava, num inglês menos sofisticado do segundo douto, o taxista soltou uma expressão de surpresa. Oh! Entendera algo diferente da primeira vez. Afinal, não é todos os dias que dentro de um yellow cab em Nova Iorque se podem praticar os numerais ordinais a que as ruas e avenidas nos obrigam e fazer uso de um inglês oxfordiano, directamente saído de uma personagem de uma série britânica, provavelmente um gentleman de stiff upper lip. Soa bem e é bonito, de nada nos servirá, contudo, se ninguém nos entender. Não serviu naquele dia.
Falar uma mesma língua é também partilhar as linguagens subjacentes a essa mesma língua. Havia alguém dentro daquele táxi que não sabia disto. Houve alguém dentro daquele táxi que, sabendo disso, refilou incessantemente pelas voltas desnecessárias e pelo taxímetro bulímico em hora de ponta na cidade que nunca dorme. E houve alguém dentro daquele táxi que, entalada no lugar do meio, tudo observou para que a estória pudesse ser contada. Há voltas que nunca são dadas em vão.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Dia de luz

A Gláucia foi das primeiras pessoas a comentar neste blogue no tempo em que ainda nem sequer a minha mãe sabia da sua existência. Imberbe, tímido e uivando de dor assim começou este registo da ausência. Em comum partilhámos essa mesma ausência e sempre achei que nossos pais nos uniram para que juntas fôssemos mais fortes e nos amparássemos na travessia desta fase das nossas vidas, uma ponte de palavras e imagens sobre o caudal tumultuoso desse rio de saudade.
Ontem não havia mar a nos separar e finalmente pudemos dar aquele abraço apertado, aquele beijo carinhoso, partilhar risada e conversa, ver como é linda e doce a Clarinha, falar desse Portugal que eu acho tão direitão, designação que aprendi com elas, falar de cá e do Brasil, de livros e autores, do José Luis Peixoto, omnipresente, dessa língua que nos une, e da sobremesa que faz as delícias da Tuca, da Gláucia e do Rogério: arroz doce. Descobri inclusive que Lisboa tem morros, graças à Tuca, o que me deixou mais perto do meu Brasil e mudou a perspectiva dessa cidade de que ambas tanto gostamos. Ontem tive um dos encontros mais emocionantes de toda a minha vida, ontem foi tão intenso que não cabe nestas palavras. Obrigada a vocês.

foto: Rogério

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Porta da frente

Pensava para consigo que entrar em Veneza por terra, pela estação de caminho-de-ferro, é como entrar num palácio pela porta de trás e que jamais alguém se deveria abeirar da mais inacreditável das cidades de outro modo que não fosse este, por barco, por mar alto.

Thomas Mann, Morte em Veneza
foto: minha

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Back

Poucos são os instantes da vida mais libertadores do que esses em que um avião sobe em direcção ao céu, diz Alain de Botton em A Arte de Viajar. Nada mais certo. Para trás ficaram o novo Estatuto da Carreira Docente, a escola, o referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez, Fátima Felgueiras, enfim, o país todo.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Livros com cidades

E de regresso à estante está Perseguido de Luiz Alfredo Garcia-Roza, após uma passagem breve pela minha mesa-de-cabeceira. Finda a última página de mais um romance policial, termina também um périplo pela Cidade Maravilhosa. Há quem defenda que o delegado Espinosa da 12º DP do Rio de Janeiro, bibliófilo que não dispensa uma ida ocasional aos sebos, a personagem central em torno da qual se desenvolvem seis dos seus sete policiais, não é um grande detective na senda dos clássicos, que os policiais de Garcia-Roza carecem de mais densidade e suspense, que é óbvio o desfecho e que o criminoso, assim é nos policiais, se torna evidente desde muito cedo na trama. Que seja.
Na verdade, há algo inscrito naquelas páginas que perdurará muito após a leitura da última palavra, algo que deixa o leitor inquieto, ofegante, tranquilo, descontraído ou deleitado, consoante percorra, nos passos das várias personagens, os trajectos descritos com exactidão extrema, passíveis de serem localizados em qualquer mapa do Rio de Janeiro.
Ruas, praças e morros, Copacabana e o Bairro Peixoto, o Calçadão e o mar de Ipanema, Zona Sul e Zona Norte, fundem-se no momento em que o livro se abre como o Atlântico e as personagens nos carregam, nos levam lado a lado, secretamente sussurrando-nos para embarcar na viagem encetada. Há uns dias, por exemplo, fiquei extenuada depois da corrida no Parque do Flamengo com Berenice, nada que a vista da Baía de Guanabara não consiga compensar. Certo é que Augustão me cansara também nas ladeiras de Salvador e me deixara expectante nos terreiros de candomblé. Intrépidos e incansáveis, estes detectives...
Nos livros com cidades existem roteiros ocultos emergentes do calcorrear das personagens pelos recantos mais recônditos das urbes, respeitando os seus ritmos únicos, e que, ora fugindo, ora flanando nos revelam a alma e a intimidade ausente nos áridos guias de viagens.
foto: minha

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Dia

Mergulho no dia como em mar ou seda
Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gesto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda



Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Finalmente

E pronto, guardem os disparates e as cartas, recolham as réplicas de fetos, parem de ir cuscar as ecografias alheias e ide às vossas vidinhas. Por agora chega.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Insanos e outros imbecis

Tivesse eu o humor suficiente para lidar com a situação e certamente seria capaz de escrever um livro inteiro com as aberrações da comandita do NÃO. Por exemplo, a carta, que foi metida nas mochilas das crianças de um jardim de infância em Setúbal, é um testemunho importante das pérolas com que o NÃO tem colorido o país. Diz-se, algures, diz o filho por nascer à mãe "Por acaso pensavas comprar uma máquina de lavar ou um aspirador, com os gastos que talvez eu te iria causar?" Para a próxima vez que precisar de comprar uma máquina de lavar ou um aspirador talvez deva ir a correr fazer um filho. É que tem tudo a ver.