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segunda-feira, 30 de abril de 2012

A vida e isso

O perfume que se espraia pela casa. O conforto do aroma promissor de tardes aconchegadas do mundo que nos corrói, a concha em que nos fechamos para ilusoriamente parecer que está tudo bem. Abro a porta do forno desconfiada. Esta que vos escreve desconfia quase sempre dos seus feitos culinários, uma insegurança miudinha que me assalta. Sempre. Estaria bom? Deixo passar o tempo, a espera curiosa. Abro o forno minutos depois e anuncio da cozinha 'Pode não estar bom mas, olha, dei o meu melhor'. Que melhor metáfora para a vida?

quarta-feira, 25 de abril de 2012

25 de Abril de 2012


 (...)
Ou poderemos Abril ter perdido
O dia inicial inteiro e limpo
Que habitou nosso tempo mais concreto?

Será que vamos paralelamente
Relembrar e chorar como o verão ido
O país linear e transparente

E sua luz de prumo e de projecto?


in 'Lagos II', 1975

Sophia de Mello Breyner Andresen

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Dia Mundial do Livro



Nasceu a 23 de Abril de 1564 e julga-se ter morrido também a um 23 de Abril de 1616 mas o que é verdadeiramente espantoso é que o Bardo tenha inventado ou introduzido na língua inglesa duas mil palavras. Ganda maluco, é o que é.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Às vezes

Às vezes quando me vêm com a conversa de que os jovens hoje são uns mimados, eu digo que sim, que são, não estão habituados a ser contrariados, amuam quando se lhes diz que não e resistem pouco à frustração. Não há paciência, vocifero.
Mas há vezes outras.
Nas vezes outras eu vejo filhos a preocupar-se com os pais mais do que deviam, assumir a educação dos irmãos, a trabalhar aos fins-de-semana e em part-time para se aguentarem e para ainda ajudar os pais. E isto não é autonomia nem responsabilidade. São valores invertidos numa ampulheta de sentido único. E vejo professores intolerantes pelos atrasos, faltas de atenção, os livros que nem existem pela falta de dinheiro. Nessas vezes outras em que por acaso se descobre que por trás daquele rosto sorridente se esconde uma adolescência interrompida, eu já não sou a primeira e de coração comprimido sento-me quieta em luto pelas adolescências perdidas.


Para o R. que nunca virá aqui nem conhece a existência deste blogue.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Hoje não há post...

mas há receita aqui. Enquanto escrevo sobre culinária esqueço os males deste país. Há lá terapia melhor?

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O fim da inocência


Segunda-feira. Primeiro tempo da manhã. A professora armada em D. Quixote leva uma resma de livros para os seus meninos. Escolhidos e selecionados de acordo com a especificidade das turmas, um guião para os ‘analisar’, questões, sugestões de abordagem, indicações para como lidar com aquele monte de folhas com capa, e passa-os para a mão. Um a cada grupo, escolhido por eles. A professora esfalfa-se em correrias entre os seus meninos. Parecem entusiasmados. A professora fica feliz. Muito feliz. Valeu a pena. Viram-nos. Reviram-nos. Abrem-nos. Se fossem feitos à imagem e semelhança da professora ter-lhes-iam até metido o nariz para aspirar a fragrância das páginas. Mas não. Isso não. Têm perguntas, querem saber coisas. Perguntam Estes livros são da biblioteca? Não, são meus mesmo, respondo. Recebo de volta uma cara de desdém e incredulidade Tantos professores logo me havia de calhar esta com a mania da leitura. Tanta inutilidade nestes papéis brochados de capas coloridas parece pensar, sem o brochado evidentemente, e sei que pensa, não é muito difícil ler rostos adolescentes e este rosto olha-me muitas vezes em ponto de interrogação. Um quarto de hora depois uma voz ergue-se acompanhada de olhar vivo Stora, isto é para nota? Que bem que estava tudo a correr. Nos dias que correm nada se faz pelo prazer de fazer, aprender, ir mais longe, tem de haver uma contrapartida, um número qualquer sempre inflacionado apenas porque se lá esteve. Só faltou a máquina de calcular em punho, nesta altura uma extensão natural de qualquer aluno obcecado com números, não com aprendizagens. Alunos ardilosos sempre à espera de uma aberta para fintar o professor. E são alguns, ó se são. E cansam-me. O calculismo cansa-me. A falta de autenticidade destrói-me. As aulas não. Não tanto. Infinitamente menos.

sábado, 14 de abril de 2012

A vida na aldeia e um bolo de morangos


Dizem-me que a cidade me falta e que bastarão uns fumos poluentes logo ali na Calçada de Carriche para que se me libertem os humores e os meus dias se encham de sol. A cidade falta-me, é verdade. Falta-me muitas vezes. Faltam-me os lugares-comuns da luz de Lisboa e falta-me o bulício de cidade, pessoas que se cruzam de um lado para o outro, correrias e idiossincrasias várias. Não que me sinta citadina ou urbana mas as grandes urbes são como ímans onde sonho sempre regressar.
A vida na aldeia não é como a vida na cidade. A vida na aldeia é comandada pelos passos lânguidos de um tempo muito próprio, de uma outra dimensão, como se as horas tivessem uma medida de tempo oculta vagarosa, uma clepsidra feita de vagares que se alternam noite e dia, e se alongam entre conversas várias no meio do largo ou em plena rua indiferentes a carros ou quaisquer outros veículos. Na aldeia reinam as pessoas e os vagares.
Na aldeia não reinam só os vagares. Na aldeia reina a alma de gente que tem o negócio no sangue. Se puderem vender nunca ficarão parados, jamais calados perante as qualidades indiscutíveis dos seus bens e irredutíveis na arte de convencer a freguesia. Não há como eles. A arte está-lhes nos genes. Na aldeia não há isso de trabalho infantil, há a necessidade de dar um jeito quando os adultos se ausentam para um qualquer propósito, uma responsabilidade que se incute sem que daí venha mal ao mundo. Desde tenra idade é vê-los diligentes nas demasias e a destrocar dinheiro enquanto elogiam as batatas ou bendizem os morangos e perguntam se queremos ovos caseiros, na cidade diz que são biológicos.
Foi hoje pela fresca. Um almoço de família ditaria uma sobremesa para a qual me faltava fruta. Rumei à mercearia que agora se acomodou no largo da igreja mas desta feita quase de frente para a igreja e isto porque, suspeito, o tempo em que estiveram de costas para a igreja o negócio murchou como grelos ao sol. Seguiu-se um breve período em que a venda tinha lugar numa carrinha. Uma vez aberta desvendavam-se cores e aromas, formas rotundas e longilíneas de legumes e frutos diversificados. Uma festa para os sentidos. Ainda estou para perceber porque aquele poema do Cesário Verde nunca me convenceu.
Estava lá o João. Tem uns nove anos, quem sabe, uns olhos azuis acinzentados encantadores e a ginga do negócio no corpo. Estava a jogar um jogo no computador literalmente virado de cangalhas, a noventa graus e com o ecrã apoiado em cima duns caixotes, enquanto atendia uma anciã insatisfeita com a cor tão desmaiada do açúcar amarelo. Os meus olhos saltaram para uns abacates bem rotundos, um regalo para os olhos, e quando murmurei algo sobre os ditos, o João saiu da caixa e ensinou-me, pegando num abacate Quer ver, disse, aproximando-o de mim, Se se ouvir o caroço lá dentro está maduro e pegando num outro exemplificou abanando-o levemente Está a ouvir? Sim, estava.
Comprei morangos para o bolo do almoço de família, não havia ameixas e as nêsperas não me convenceram. Voltei vagarosa. Perscrutei os patos e galinhas da vizinha a caminho de casa, a exuberância dos limoeiros e fui cumprimentada pela fragrância da glicínia à entrada do jardim.
Há dias em que tenho saudades da cidade. Hoje não foi um deles. 

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Silêncios

A falta de perspectivas neste país tem-me roubado energia, a energia que me alimenta posts, a força motriz que me empurra para a frente quando quase me sinto cair de costas. E já tive dores várias, dores profundas que me deixaram cicatrizes, mas a mentira em que se vive, a ausência de algo que se possa dizer que depois de tudo isto, vai valer a pena suga-me as palavras. E remeto-me ao silêncio.


Adenda: a falta de fé neste governo dá-me no entanto para escrever outro tipo de posts.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Page Not Found

Sete e vinte da manhã. O despertador toca, o despertador do telemóvel. Nos tempos modernos os despertadores despertadores tornaram-se bichos obsoletos e é mais fashion ter o Blackberry a acordar-me.  Há que manter o estilo. Clico no dismiss, 'a língua inglesa fica sempre bem' e levanto-me. Pés no chão, um de cada vez, ter os pés assentes a terra tem-me custado muitas palpitações nos dias que correm, ponho os óculos, sim, esta que vos escreve é míope mas que isto não vos sirva de desculpa para defender 'certas e determinadas' pessoas, outra expressão de que gosto, arrebanho umas calças do roupeiro, um blazer azul escuro, um colar tipo Carmen Miranda, não quero parecer fúnebre aos meus alunos, uma série de outras peças de roupa a cujos detalhes vos poupo e rumo à casa de banho. Lavo o manto da noite num revigorante duche matinal e desço as escadas acompanhada da Julieta, uma das madrugadoras, as outras gatas reservam-se o direito de longos e preguiçosos sonos devido à idade vetusta e respeitável. Depois de um pequeno almoço frugal acompanhado das notícias matutinas, hábito que vou ter de perder se me quiser poupar uns anos, pego no carro que me guincha com falta de gasolina e grita-me em letras vermelhas NÍVEL DE COMBUSTÍVEL BAIXO. Temos pena. Chego à escola. Está lá ainda. A bela da escola azul-cueca. Entro aos bons-dias, subo à sala de professores, tiro a chave da sala C7, lê-se no garrafal porta-chaves, dirijo-me à sala e dou graças aos deuses por ainda lá ter o meu emprego. Com as manobras na penumbra deste governo chegará o dia em que Leonor Barros será uma entrada vã no sistema aliviado por se ter visto livre de mais um fardo e eu, como tantos outros, serei uma página em branco, quem sabe décadas de trabalho arrumadas numa página em branco, amarfanhadas como lixo num qualquer cesto dos papéis tecnocrata, um url perdido na voracidade destes tempos para os quais me faltam adjectivos. PAGE NOT FOUND. 

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Mágoas

Dou por mim nos últimos tempos a usar os termos de indignação que usei nos tempos do governo de Sócrates e que muitos dos que agora dão vivas a Passos Coelho usaram. E não porque é meu hábito ou prazer 'malhar' nos governos, mas porque como tem sido amplamente noticiado este governo falta à verdade tal como Sócrates faltou, usa estratégias rasteiras para atraiçoar os cidadãos que os elegeram e todos os dias se lembra de nos surpreeender com propostas que a terem sido no tempo socrático teriam chovido meteoritos de críticas. O Sócrates pelo menos era mais giro que Passos Coelho, porque em termos de carácter estamos na mesma: faltar à verdade parece estar inscrito no ADN dos políticos portugueses. E isto magoa, achincalha, humilha. O meu país dói-me.

Também no Delito de Opinião

Insurjamo-nos!

Ainda não percebi por que é que o povo não sai à rua.
Boa segunda-feira e boa semana a todos.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Em nome do Pai


A Páscoa é ter três ou quatro anos, um vestido azul-turquesa de fazenda vestido que me picava, era capaz de jurar que tinha a saia pregueada, e estar às cavalitas de um amigo dos meus pais. A Páscoa é tremer de medo com a procissão dos farricocos em Braga nesse mesmo dia do vestido azul-turquesa que me picava mas me aterrorizava menos que aquelas figuras tétricas sem rosto a fazer barulho cidade fora. A Páscoa era não haver politicamente correcto e poupar a criança do vestido azul-turquesa de fazenda àquele susto. A Páscoa é Beira-alta. A Páscoa é Tibaldinho e a festa da aldeia, o povo engalanado nas suas melhores farpelas. A Páscoa é esperar. A Páscoa é esperar pacientemente sem meter dedo ou dente perante uma mesa cheia de doces, bolos, folares pela hora do almoço, controlar o ímpeto de criança, obedecer aos meus pais e portar-me bem lá nessa casa dos doces, bolos e folares e dinheiro por baixo de uma laranja na mesa. A Páscoa é esse sacrifício. A Páscoa é o padre chegar e trazer uma imagem e dar-nos a beijá-la e todos a beijarem. Diz que era Cristo menino mas nunca entendi porque se havia de não comer bolos, haver dinheiro em cima da mesa e beijar uma imagem naquele tempo. A Páscoa é a procissão do enterro do Senhor pelas ruas de Viseu. A Páscoa é ter muitas dúvidas que dos mortos nunca ninguém voltou e não me consta que Jesus Cristo apreciasse tanto fausto, tanta celebração, alguma ostentação. A Páscoa é estar num qualquer sítio do mundo e pensar Olha, hoje é Domingo de Páscoa. A Páscoa é a esperança de dias longos, dias novos. A Páscoa é leite-creme queimado com a pá de ferro que vai passando de geração em geração. A Páscoa é e será sempre pão-de-ló com queijo da Serra. A Páscoa será sempre o pão-de-ló que fiz, que se fazia para o meu pai. A Páscoa é ele sorrir-me com os olhos amendoados e dizer-me Está uma maravilha, filhota. A Páscoa é comer o pão-de-ló em sua homenagem. Hoje e sempre.

Páscoa e isso tudo

Sim, chata. Sim, repetitiva. Sim, insistente. Sim, enfadonha. Sim, repisadora. Sim, teimosa. Sim, pouco imaginativa, mas não há mais filmes no mundo, mulher? Não. Filme de Páscoa melhor que 'A vida de Brian'  não há. Pelo menos por aqui.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

O cilício, depressa, que o país não pode esperar!

O país anda cheio de problemas. E graves. Muito mas muito graves. E que exigem mão pesada e umas bordoadas valentes, ah como gosto desta expressão! Desta vez foi o João Gobern. Comentador num programa da RTP sobre futebol e essas coisas que fazem vibrar a nação, João Gobern que, pelo que sei, é benfiqusita dos setes costados, festejou um golo do Benfica quando estava no ar. Não dizem que futebol é paixão? Diz ele que se penitencia pelo gesto e pôs o lugar à disposição depois do episódio. E o que aconteceu? Foi corrido. Ó que piadinha! Num país em que se rouba desalmadamente, os governantes mentem ao povo como se dissessem verdades insofismáveis com ar bento de honestidade de plástico, o João Gobern é dispensado da RTP por um episódio absolutamente irrelevante e justificável pela impulsividade tão comum a essas 'coisas da bola'. E se usassem esta celeridade punitiva para outras áreas da vidinha portuguesa, não seria melhor? Não. Corramos com o Gobern. Quem se mete com a RTP leva.

Também no Delito de Opinão

terça-feira, 3 de abril de 2012

Com os Holandeses ou a arte da crítica


Corria o ano da graça de dois mil e nove, era mês de Abril e estava um calor inusitado para aquele mês. O povo tinha saído à rua. Literalmente. A pé, de bicicleta, de qualquer maneira e feitio e pairava no ar a atmosfera festiva de que só os dias radiosos de sol são capazes, ainda mais se tivermos em conta um país onde Setembro é quase mês de Inverno, anoitece com as galinhas, a bruma instala-se sem cerimónia e o frio húmido entra-se-nos pelas frestas da roupa e esgueira-se para as profundezas da alma. Mas aquele era dia de muito calor. Tinha acabado de sair de uma dessas lojas de roupa barata, as únicas que frequento em tempos de crise e não crise, o calor foi a desculpa perfeita pata comprar uma camisa fresca, quando o telefone tocou. Atendo o telemóvel na praça, no meio da multidão esfusiante por aquela bênção fora de tempo e enquanto falo vou reparando nas pessoas à minha volta. Nos corpos tão pálidos mas indiferentemente expostos ao sol de Abril, nos turistas que na sua condição de turistas nunca passam anónimos numa qualquer multidão, a máquina fotográfica sempre em punho e o olhar inquiridor sobre tudo e mais alguma coisa sempre mesclado com uma pitada de desconfiança e os outros, os que não sendo nem uma coisa nem outra andavam saltitantes nas suas vidinhas repentinamente soalheiras.
Ora neste preciso momento, o meu olhar de turista aterra num objecto circular, na verdade cónico, bem plantado no meio da praça e com homens em redor. Não se pense que se tratava de um altar de testosterona onde os homens largavam as suas preces, desconfio até que os homens têm pouco dessas atitudes tementes e virtuosas. Uns segundos depois vejo um dos homens apertar a braguilha, reparem na propriedade da palavra, e uma vez aliviados das cervejas e líquidos que se lhes haviam descido para as partes baixas, os homens seguiam assim mesmo, sem mãos lavadas, a higiene relegada para milionésimo lugar, os seus caminhos. Isso mesmo. Um urinol amovível sem qualquer privacidade, ali no meio da praça, qual instalação contemporânea, e sem mais questiúnculas de decências e moralidades. Não se lhes pode criticar a falta de sentido prático. Era sexta-feira, numa praça rodeada de bares e restaurantes e em vez de inundarem o lugar com o cheiro fétido nauseabundo, nada como instalar aquele curioso objecto. Na segunda-feira desaparecera.
E vem tudo isto a propósito do livro de Rentes de Carvalho Com os Holandeses. Sempre os achei algo rudes de tão práticos e pragmáticos, sem rodriguinhos e salamaleques, algo que colide com os nossos costumes tão decentezinhos e tão agradavelmente acolhedores. O livro, escrito em 1971 e reeditado recentemente, é um relato dos quinze primeiros anos que Rentes de Carvalho viveu na Holanda e do inevitável choque cultural. Dá-nos um olhar por dentro da personalidade e carácter dos holandeses, vista e sentida lá do território onde turista algum consegue penetrar e bem longe dos campos de tulipas, Van Gogh e Rembrandt, e a léguas da imagem da alegada tolerância de coffee shops e prostitutas nas montras, como se toda a Holanda fosse Amesterdão e como se mulheres nas montras fossem só por si sinal de tolerância.
Escrito de forma escorreita e irrepreensível, Rentes de Carvalho não tem complacências com o politicamente correcto ou o socialmente aceitável. Não tem papas na língua e não se atemoriza perante os ditames dos discursos da multiculturalidade de plástico. Consegue num estilo único só permitido aos grandes:  criticar sem ofender, ser frontal sem nunca resvalar para a grosseria. E isto é muito. A força do livro consiste ainda neste desabafo, como Rentes de Carvalho o classifica, e no amor e afeição que acabou por desenvolver pela Holanda. Contraditório depois de tanta crítica? Os amores grandes são feitos de máculas e virtudes, de mistérios insondáveis e perguntas por responder. Tal como o que nutre pelo país que escolheu como seu.
Fiquei no entanto a pensar o que aconteceria em Portugal se alguém ousasse escrever um livro expondo sem cerimónias as nossas desvirtudes, que belo eufemismo, ainda por cima se um estrangeiro o fizesse. O bruá, a indignação, posts calorosos e a dignidade lusa de oitocentos anos de História ofendida de morte com palavras certeiras, honestas, directas. Somos bons nas ofensas. Diz Rentes de Carvalho que na Holanda não foi assim. Agradeceram-lhe a franqueza. Que diferença de Portugal.


“Amsterdam não precisa de mim para lhe cantar a beleza. Os canais, a torres, as casas apertadas nos bairros pobres e as outras, senhoriais à beira de água, falando de fortunas passadas e presentes, têm tido melhores poetas, melhores pintores. (…) A cara com que me recebeu num chuvoso dia de Março não foi das mais hospitaleiras. Mas essa primeira impressão cedo se desfez, e quando finalmente me habituei ao que durante muito tempo foi para mim um labirinto de canais e ruas estranhamente idênticas, dei-me conta de que se se não tratava de amor à primeira vista, com certeza a afeição entre nós ia ficar para  a vida.”

Rentes de Carvalho, Com os Holandeses.

fotografia minha




Também aqui

Merda de país, merda de gente

Notícias destas dão-me vontade de bater a porta e fazer um favorzinho aos Passos Coelho e comandita.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Portugal

 Aqui neste rectângulo a que me sinto aprisionada, queria escrever uma frase que não sei o que é. Tinha sol, mar e esperança, havia bruma e fado mas fugiram-se-me os verbos e desconheço os pronomes.  

domingo, 1 de abril de 2012

Frugalidades pecaminosas ou clafoutis de morango


A primeira explicação encontra-se na fotografia de casamento dos meus pais. Da esquerda para a direita estão os meus avós paternos, o meu avô garboso e a fazer pose, a minha avó muito sorridente, um momento raro, de vestido escuro, colar de pérolas e chapéu, ambos sorridentes, parecem felizes ambos, o meu pai, muito direito a fazer-se indecentemente para a fotografia, atitude que o acompanhou durante todos os seus dias, a minha mãe, radiosa, como todas as noivas, embevecida a olhar para o seu recente marido e a minha avó materna, pequenina e fofa, já de cabelo branco e com o ar doce de sempre. E vem tudo isto, porque o pedaço de perna e de pantorrilha que sobra dos vestidos de ambas as minhas avós deixa à mostra a pernoca gorducha e o tornozelo grosso. A da minha mãe, igualmente gorducha e de tornozelo grosso não se vê evidentemente. Penso nesta fotografia quando me travo de razões com as pernas encorpadas e tornozelos grossos e maldigo a genética.
A segunda explicação é que de todos os pecados mortais aquele a que mais sucumbo é a gula. Não preciso de comer muito, às vezes como, é verdade, mas sabem os deuses e Baco também, como gosto de uma refeição opípara, preparada com carinho e partilhada com a generosidade de dividir amores e deixar misturar-se no ar o aroma volúvel da amizade. Se estiver sozinha, como algo rápido e frugal, passam-se anos sem que coma um bolo de pastelaria, prescindo de cremes, natas e bolos superlativos de cores e decorações, torço o nariz aos fritos que me olham de soslaio, miseráveis na sua existência entre vitrinas, se não comer pão não morro e batatas fritas e massas, como legumes, como fruta, como iogurtes magros, bebo muita água, mas não resisto a uma boa mesa entre amigos, um jantar de sexta-feira caprichado e um almoço de Domingo retemperador e prenhe de sabores novos e velhos na calmaria de nada fazer.
A terceira explicação é que gosto de cozinhar. Gosto de experimentar coisas novas, acrescentar ao que já sei fazer, modificar o faço, modifico muito e raramente sigo uma receita à risca e gosto das cores, das fragrâncias, da expectativa, de cozinhar para os outros.  E gosto de bebericar um copo de vinho enquanto cozinho, ou enquanto espero ou com a refeição, e de comer uns amendoins salgados e picantes ou depenicar qualquer outra coisa que me corte o adocicado do Moscatel ou do vinho do Porto ou do Port Tonic que, como se prevê, também gosto.
E serve isto para dizer que com esta genética e estes prazeres, só me restam dois trilhos: ou me conformo com as formas rotundas, cada vez mais rotundas, ou me abalanço na dieta. Optei pela última, mas como as dietas são como as leis, existem para ser quebradas, hoje fiz um clafoutis de morangos para rematar o almoço de Domingo. Apetecia-me tanto mas tanto algo doce. Pareceu-me pouco calórico e primaveril para comemorar a estação. Uma fatia não faz mal, ou fará?

Receita aqui

Tell me lies, tell me sweet little lies


Ei-lo a mentir com quantos dentes tem na boca. Faz hoje um ano. Lembremo-nos de quem nos governa.