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sexta-feira, 30 de março de 2012

Conclusões desesperadas da frugalidade forçada

Fazer dieta é como o amor no título do livro do Miguel Esteves Cardoso.

Despertadores de quatro patas


Estão a ver aquele desejo de dias vindouros de nada para fazer se não arejar a cabeça, desligar, arrumar papéis, cadernos e livros e poder dormir umas horas de pura indulgência sem peso na consciência pela manhã? Era hoje. E era, porque lá pelas oito e muito poucos, a porta do quarto abriu-se, escancarada como sempre, e entra um bicho de quatro patas. Solta primeiro um miado sofrido, senti-a a esconder-se atrás do cortinado do quarto, salta para a cómoda e acaba a sessão a aguçar as unhas na cadeira de verga. Solto um grito para acalmar a fera caçula. Pára por uns instantes e repete tudo, desta vez em vez de um miado sofrido ouvi-lhe um miado queixoso. Levanto-me a noventa graus, repreendo-a ferozmente. Terceiro round. O bicho malvado reclama atenção, mais um passeio no quarto, mais uma aguçadela de unhas, mais uma admoestação. E levanto-me. Ergo-me, abandono o leito de preguiça e descanso absolutos. No primeiro dia em que podia preguiçar na cama pecaminosamente, longamente, desalmadamente, levanto-me pelas oito e pouco, acordada por um bicho de quatro patas que reclama atenção e companhia. Não tenho eu filhos para isto.


Não se deixem enganar pelo ar inocente da miúda. Trata-se de um despertador ronronante, capaz de vos acordar pelas oito da matina sem a menor cerimónia ou contemplações.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Crónica de uma dieta anunciada


Eis chegado o tempo da frugalidade. Eis chegada a estação das calorias contadas, das saladas com milésimas variações, todas elas ajuizadas e contidas. Eis chegado esse tempo de negregura e esperança, caramba, quase anda por aqui um oxímoro. Eis chegada a altura de mudar de pensamento quando se nos resvalam os apetites para calorias superlativas, o copo de vinho enquanto se cozinha, pode ser de moscatel com um cubo de gelo, lá no território alquímico da mescla de coisas várias, humores e vontades também. Eis chegado esse tempo de crer que ainda seremos capazes de caber airosamente naquelas calças, vestidos, blusas e contrariar a vontade indómita das coxas em se tornarem rotundas. Eis chegada a quaresma da vida, o momento da virtude alimentar, o pontapé vigoroso na gula e outros prazeres degustativos. Quase fico com pena de mim depois deste post. Pobrezinha da badocha. E com vontade de comer. Ai que vontade.

Euzinha enquanto mato a fome com livros pela calada da noite.


imagem: Fernando Botero.

segunda-feira, 26 de março de 2012

Figuras de estilo

Vinha aqui dizer que o perfume da glicinia me abraçou pela tarde e me sussurrou ao ouvido fragrâncias lilás quando o sol ainda ia alto e a tarde sorria Março fora como se nunca fora Inverno, mas as personificações cochilavam nos braços da noite, enroladas nas metáforas. Volto mais tarde então.

domingo, 25 de março de 2012

Cantigas de Amigo e uns biscoitos de avelã


Durante um tempo achei que esquecíamos os livros que líamos na escola porque os professores não os tornavam suficientemente interessantes e atractivos. Lembro-me de livros de total negregura, sabem os deuses como li Eurico o Presbítero e como fiquei a odiar The Catcher in the Rye. Acontece que no caso destes dois livros, os professores responsáveis por cada uma das disciplinas eram competentes e interessados. Não seria pois problema deles. Foi só mais tarde que percebi que o problema das leituras obrigatórias não era dos professores, podia ser dos livros, não tenho a menor dúvida, mas era acima de tudo do imperativo ‘Lê!’ Diz Daniel Pennac que o verbo ler não comporta o imperativo. Nada mais certo. Ainda hoje, mulher adulta, se me mandarem ler ou se tiver de ler por obrigação é um sacrifício, procrastino até à última, apetece-me invariavelmente ler outras coisas, mastigo as letras com enfado, e tenho digestões lentas e incomodativas.
Mas os livros que lemos na escola assaltam-me de vez em quando. Não os livros, mas frases soltas que me ficaram na memória. Estranhamente assaltam-me muito uns versos do Cesário Verde quando se me anoitece a alma e por aqui paira alguma soturnidade. Desta vez o que me assaltou foi um verso solto de uma cantiga de amigo. Terá sido há umas três décadas, mas fiquei com aquela sonoridade das ‘avelaneiras frolidas’, logo eu que nunca vi uma avelaneira. E isto tudo veio porque a receita desta semana do Dorie às sextas eram uns biscoitos de avelã. Podiam ser olhos de avelã, provavelmente a cor mais bonita de olhos, mas não. São sempre os livros que me cutucam.

Receita aqui.

De vez em quando o passado (10)


sábado, 24 de março de 2012

Gabarolices


Festa. Tudo lindo e arrumadinho. Escola silenciosa e tranquila. Mesas postas a rigor, o povo e o não povo, a ‘elite’ da terra presente, cumprimentos rasgados, beijos e cumprimentos a derramar bases e perfumes pelos rostos e cabelos alheios, odores misturados com o perfume da noite primaveril. A festa começa. Discursos de elogios, palavras de circunstância, bouquets de agradecimento, certificados de participação, presentes para cá e para lá. E pára tudo. Alguém diz que tem de fazer um agradecimento. Seguem-se mais elogios do que este blogue comporta, palavras sinceras, honestas, sentidas. Alguém que ajudara alguém, a gratidão agora pública em frente ao povo e o não povo, a ‘elite’ da terra, individualidades altas de metro e oitenta e outras menos altas de metro e sessenta. A espera. Só uma alta individualidade podia ser alvo de palavras tão belas ou a elite ou a gente que usa patentes de coisa nenhuma. Zero. As palavras começam a fazer uma curva, desviam-se das altas individualidades, esbarram contra a elite, contornam o povo e o não povo, viram à direita. Atingem certeiras a descabelada de casaco azul-turquesa, escondida e meio alheada a bebericar uma sangria numa caneca de barro saloio, há que entrar no espírito e a descabelada gosta de momentos simples de descontracção  e partilha. Foram vistas a entrar sem cerimónia à esquerda, meio palmo abaixo do pescoço e agarraram-se à descabelada. Sabe-se isto porque se viu uma lágrima teimosa e à descabelada só se lhe vêem lágrimas quando lhe atingem o órgão sofredor irremediavelmente. Acontece às vezes.
Tenho o ego tão inchado que nem as calças me cabem, mas isso não deve ser do ego, a não ser que se me tenha descaído como outras coisas nesta idade madura de despencanços. 

sexta-feira, 23 de março de 2012

Sobre tudo e coisa nenhuma

Gostava de vir aqui escrever um post sobre coisas bonitas e fofinhas, sacar daquela citação do pobre Fernando Pessoa que afinal não era dos castelos e pedras e afins, mas não. O Governo apesar de me roubar todos os meses não consegue controlar a dívida pública, vá-se lá saber porquê, ontem houve bordoada na manifestação, sarrafada a uma jornalista que estava a fazer aquilo que os jornalistas fazem e a rapariga, apesar de dizer 'interviu', não merecia, ninguém merece este país presentemente, depois da bordoada de ontem, o Público põe na capa um homem patusco, não se passa nada, portanto, e eu estou atolada em números, raios os parta, alunos de calculadora em punho a verificar, reverificar notas e números até ao milionésimo centésimo décimo, não há paciência, paciência nenhuma, e farta de grelhas de excel e tenho de fazer dieta que estou volumosa e rotunda e isso não é bom. Hoje não tenho boas notícias. Muito boas notícias, digamos, há sempre coisas bem piores evidentemente, mas temo que esta seja a tendência Primavera/Verão 2012. E Outono/Inverno 2012/2013. E por aí fora. Onde é a porta de saída?

terça-feira, 20 de março de 2012

Abraços de canela

Há dias em que não são precisas palavras. Há dias em que um abraço forte chega, um beijo sentido é o suficiente. Momentos de comunhão, de silêncios cúmplices longos, de conversas só audíveis por um toque ou a troca de olhares de que são feitos os amores sólidos e fortes. Há dias em que as palavras sobram inúteis e há dias em que se completa o cadinho de enlevos com a mais ancestral forma de se amar, o prato preferido, comida preparada para abraçar, perfumada de afectos.


Receita aqui.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Marcas


Tínhamos acabado de almoçar. A mulher das sete tarefas que há em mim tinha concluído quase em simultâneo mais uma daquelas cartas pomposas para acompanhar uns documentos, quando lhe pedi que ele me trouxesse o papel. Estende-mo. Olho para ele incrédula. Segura por uma ponta, a folha tinha o canto inferior esquerdo amarfanhado, a marca bem visível de que alguém por ali passara, o polegar e o indicador. Imperdoável. Como foi capaz? Isso faz-se? Arremessei-lhe uma admoestação, sim, como podia? e concluí Se o meu pai aqui estivesse dizia-te já que feriste o papel. Estranho conceito, este, de ferir o papel, mas assim era para ti, meu pai, o papel manuseado com todo o cuidado para não deixar marcas, sem mácula, uma folha inteirinha sem ofensa ou mossa, assim como desejamos que a vida às vezes seja.
Passam dias e noites, meses, estações, anos, o azevinho da entrada está enorme e a glicínia irrompe em exuberâncias mil de perfume e cor. Agora já não espero que regresses, já sei que não voltas. É assim a vida sem ti, meu pai, a folha de papel da minha vida que se vai rabiscando com um canto magoado, a marca indelével de ti, a ausência de que nunca se recupera. Ferida.


No Dia do Pai. Para o meu.

sábado, 17 de março de 2012

St. Paddy's Day ou um guisado luso-irlandês


Acalento a ideia de um dia ir a Dublin passar um Bloomsday. Meros dias depois do meu aniversário, lá para Junho, celebra-se a literatura. Pode haver coisa melhor para comemorar um aniversário? Comemora-se o dia em que se desenrola Ulisses, a obra-prima de James Joyce, diz que há gente pela rua a ler excertos da obra e que é uma verdadeira festa. Acalento assim a ideia de começar o dia a pôr o dente num rim frito que, como se sabe, sou rapariga temente e respeitadora no que à literatura diz respeito e o que me falta em religiosidade sobra-me em respeito venerando a entes vários desta arte que me colore os dias. O Bloomsday é a festa da literatura por excelência. O que eu gostava de lá estar um dia. 
Daria também um dia uma saltada a Edimburgo para celebrar a Burns’ Night bem no fim de Janeiro e acabar a noite a meter o dente num haggis, um guisado de miúdos de cabrito, aconchegado como enchido e servido de formas várias. Uma delícia, não se deixem desmoralizar pelos miúdos e o bucho. Ainda hoje me sabem bem os que degustei em terras de kilts e gaitas de foles. Robert Burns amarrou-o a este poema e acompanhado com uma ale num pub ruidoso nessa tal Burns Night é ideia que me parece bem. E uns passeios a pé, castelo acima e abaixo, bater perna nas ruelas íngremes ao entardecer quando o sol ilumina o castelo com o vento cortante a romper a barreira de cachecóis e luvas. E uns pubs. Nada a fazer. A mulher do povo que há em mim odeia sítios presunçosos de gente igualmente presunçosa atada de pés e mãos numa moralidade de pacotilha, agarrada a pratos de fome gourmet e gosta de pubs. Muito. E de degustar. E de bebericar. Acalento também a ideia de um dia ir passar o dia de St. Patrick a Dublin.
Explicada que está esta ideia peregrina do Bloomsday e da Burns Night, resta-me a explicação para o St. Patrick’s Day. Acontece que não, não comemoro dia de festividade religiosa nenhuma, estou cada vez menos católica de há décadas a esta parte, comecei a celebrar o Natal com a festa da família, e na Páscoa revejo “A Vida de Brian” como filme de época, um épico cá em casa, mas acho muita piada a esta festa de rua com paradas e copos que celebra o santo católico que alegadamente terá livrado a Irlanda das cobras. Diz que havia cobras na Irlanda. E leprechauns e potes de ouro no fim do arco-íris. E chega de conversa fiada. Fica por saber se o que gosto é de celebrar a literatura ou se de pôr pé daqui para fora, exactamente agora que me rapinaram parte do ordenado e subsídios. Inclinar-me-ia pela segunda hipótese. É sabido que os irlandeses não são exímios no que respeita a artes culinárias, foi lá que bebi o pior café da minha vida, experiência tão traumática que passado um quarto de século ainda me sabe mal e que a comida, ao contrário da cerveja e do bom humor e simpatia dos irlandeses, pode ser maçadora e sensaborona. Hoje é dia de St. Patrick e, por coincidência ou não, cá em casa o jantar é Irish Stew. Começou a viagem. Estão convidados.


Receita aqui.


fotografias minhas de Dublin (James Joyce) e do Writers' Museum em Edimburgo. 

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quarta-feira, 14 de março de 2012

Carta a professores, alunos, pais, governantes, cidadãos e quaisquer outros que possam sentir-se tocados e identificados.


As reformas na educação estão na boca do mundo há mais anos do que os que conseguimos recordar, chegando ao ponto de nem sabermos como começaram nem de onde vieram. Confessando, sou apenas uma das que passou das aulas de uma hora para as aulas de noventa minutos e achei aquilo um disparate total. Tirava-nos intervalos, tirava-nos momentos de caçadinhas e de saltar à corda e obrigava-nos a estar mais tempo sentados a ouvir sobre reis, rios, palavras estrangeiras e números primos.

Depois veio o secundário e deixámos de ter “folgas” porque passou a haver professores que tinham que substituir os que faltavam e nós ficávamos tristes. Não era porque não queríamos aprender, era porque as “aulas de substituição” nos cansavam mais do que as outras. Os professores não nos conheciam, abusávamos deles e era como voltar ao zero.
Eu era pequenina. E nunca me passou pela cabeça pensar no lado dos professores.Até ao dia 1 de Março.

Foi o culminar de tudo. Durante semanas e semanas ouvi a minha mãe, uma das melhores professoras de Inglês que conheci,  o meu pilar, a minha luz, a minha companhia, a encher a boca séria com a palavra depressão. A seguir vinham os tremores, as preocupações, as queixas de pais, as crianças a quem não conseguimos chamar crianças porque são tão indisciplinadas que parece que lhes falta a meninice. Acreditem ou não, há pais que não sabem o que estão a criar. Como dizia um amigo meu: “Antigamente, fazíamos asneiras na escola e quando chegávamos a casa levávamos uma chapada do pai ou da mãe. Hoje, os miúdos fazem asneiras e os pais vão à escola para dar a dita chapada nos professores”. Sim, nos professores. Aqueles que tomam conta de tantos filhos cujos pais não têm tempo nem paciência para os educar. Sim, os professores que fazem de nós adultos competentes, formados, civilizados. Ou faziam, porque agora não conseguem.

A minha mãe levou a maior chapada de todas e não resistiu. Desculpem o dramatismo mas a escola, o sistema educativo, a educação especial, a educação sexual, as provas de aferição e toda aquela enormidade de coisas que não consigo sequer enumerar, levaram deste mundo uma das melhores pessoas que por cá andou. E revolta-me não conseguir fazer-lhe justiça.

Professores e responsáveis pela educação, espero que leiam isto e acordem, revoltem-se, manifestem-se (ainda mais) mas, sobretudo e acima de qualquer outra coisa, conversem e ajudem-se uns aos outros. Levem a história da minha mãe para as bocas do mundo, para as conversas na sala dos professores e nos intervalos, a história de uma mulher maravilhosa que se suicidou não por causa de uma vida instável, não por causa de uma família desestruturada, não por dificuldades económicas, não por desgostos amorosos mas por causa de um trabalho que amava, ao qual se dedicou de alma e coração durante 36 anos.  

De todos os problemas que a minha mãe teve no trabalho desde que me conheço (todos os temos, todos os conhecemos), nunca ouvi a palavra “incapaz” sair da boca dela. Nunca a vi tão indefesa, nunca a conheci como desistente, nunca pensei ouvir “ando a enganar-me a mim mesma e não sei ser professora”. Mas era verdade. Ela soube. Ela foi. Ela ensinou centenas de crianças, ela riu, ela fez o pino no meio da sala de aulas, ela escreveu em quadros a giz e depois em quadros electrónicos. Ela aprendeu as novas tecnologias. O que ela não aprendeu foi a suportar a carga imensa e descabida que lhe puseram sobre os ombros sem sentido rigorosamente nenhum. Eu, pelo menos, não o consigo ver.

E, assim, me manifesto contra toda esta gentinha que desvaloriza os professores mais velhos, que os destrói e os obriga a adaptarem-se a uma realidade que nunca conheceram. E tudo isto de um momento para o outro, sem qualquer tipo de preparação ou ajuda.

Esta, sim, é a minha maneira de me revoltar contra aquilo que a minha mãe não teve forças para combater. Quem me dera ter conseguido aliviá-la, tirar-lhe aquela carga estupidamente pesada e que ninguém, a não ser quem a vive, compreende. Eu vivi através dela e nunca cheguei a compreender. Professores, ajudem-se. Conversem. E, acima de tudo, não deixem que a educação seja um fardo em vez de ser a profissão que vocês escolheram com tanto amor.
Pensem no amor. E, com ele, honrem a vida maravilhosa que a minha mãe teve, até não poder mais.

Sara Fidalgo



P.S. - Não posso deixar de agradecer a todos os que nos ajudaram neste momento de dor *


9 de Março de 2012



Perpetuando a memória da professora Estefânia Brandão. Um beijo enorme à Sara Fidalgo e à Mariana Fidalgo.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Queixume de uma prof com tpm

Aulas das 8.30 às 13.30. Uma Direcção de Turma que me dá cabo da cabeça. A tarde inteira sentada a esta mesma mesa preparando o que tem de ser preparado e a certeza de que aqui a dez anos me faltará a energia para os combater. Não há maior angústia.

quinta-feira, 8 de março de 2012

quarta-feira, 7 de março de 2012

Someone to watch over me

Chegar a casa e abandonar os livros em cima da mesa e as compras na bancada da cozinha. Tirar o casaco e arrumar livros e preocupações, esperar que a escola fique a quilómetros daqui, lá onde devia ficar sempre e onde raramente a consigo deixar. Em cima da mesa uma encomenda, dentro da encomenda vejo-os soltar-se, o carinho e enlevo por entre as páginas, o suave aroma da amizade como perfume sorridente de alguém que de muito longe me ouviu. O dia subitamente mais quente e o coração embalado. Muito obrigada. 

segunda-feira, 5 de março de 2012

Lotação esgotada

Estava um belo dia de sol e de Primavera, era uma segunda-feira, o Benfica tinha ganho o campeonato no dia anterior e eu tinha aulas até às seis e meia, quando a Lolita pariu quatro filhotes. Uma exactamente igual a ela, uma quase preta, uma amarela, foi um até aos seis meses e eu ter feito a constatação lapalisseana que na ausência de testículos, o Jobim era uma, e uma tartaruga tricolor. Adoro gatos amarelos, tive um desgosto imenso quando um me desapareceu e uma frustração desgraçada por não ter acolhido o pai delas, um ruivo robusto, bem-disposto, carinhoso e palrador e foi sem qualquer novidade que a amarela ficaria cá em casa. Às outras três caber-me-ia arranjar um lar. Não sei exactamente quando a tartaruga tricolor terá entendido que o seu destino não era esta casa e como tal encetou uma luta sem igual, um verdadeiro braço de ferro de olhares de súplica bem de frente para nós, a beleza aplicada ao infinito na tarefa de nos fazer vergar pela evidência de que éramos afinal uns fracos perante a insistência, sedução e choradinho do bicho. Não me lembro em que dia mas lembro-me muito bem de exaurida pela luta desigual ter admitido Eu não consigo dar a gata! E vão três. 
Estava um belo dia de fim de Agosto, era Domingo, tinha a alma inquieta pela véspera de mais uma viagem, um destino que sempre quisera conhecer, a mala aberta na sala, quando pela manhã, enquanto alimentávamos o cão do vizinho, ouvimos um gato a miar no canavial. Podia ser uma das nossas, sim, podia, e resolvemos ir ver o que se passava. O que se passava era mais uma tartaruguinha mínima, aflita e assustada que se escondeu quando nos viu e adentrou o canavial. O resto foi um Domingo de ouvido alerta com a bichana em miados intermitentes. Seriam umas quatro horas e voltei lá armada de biscoitos para lhe matar a fome. Depois de alguma persistência consegui apanhá-la e trouxe-a agarrada a mim até casa. Tadinha da minha bichana. Ficou na casa dos meus vizinhos o período das férias. Quando finalmente tinha convencido uns outros vizinhos a ficar com ela e quando estava a ser levada para casa travou-se de razões e arranhou tudo o que lhe apareceu à frente, cão e vizinha que a devolveu à precedência. Mais um finca-pé. Vamos ver quem me consegue tirar desta casa. Pois. E vão quatro.
Apareceu-me aqui um belo dia de Inverno, de sol também, fita-nos de longe mas vai-se aproximando, espreita cá para dentro pela porta da sala e mia-me rapioqueiro. Já lhe passei a mão pelo pêlo e lhe ofereci uns biscoitinhos. Quer brincadeira e conversa. É lindo, grande e cinzento, demos-lhe o nome de Boris, e morro de medo que também tenha sido abandonado. Mas o que me trouxe a este post é outra razão. Chega de desfiar a existência contada pelos gatos. Amigos felinos que estão a ler isto, parem de passar palavra que aqui no recato da aldeia vivem uns parvalhões de coração mole rendidos a uns ronrons e uns olhares de súplica, se faz favor. Temos lotação esgotada, sim? Grata pela atenção. E agora vão ronronar para outro lado.


domingo, 4 de março de 2012

Beef effing Wellington ou uma declaração de amor

A televisão contemporânea está cheia de programas de culinária e gastronomia. Entraram-nos pela casa dentro uma série de chefs completamente desconhecidos e que hoje em dia são quase íntimos. Cá em casa adoptámos um. Bruto, de linguajar impróprio, maneiras ríspidas e uma irresistível pronúncia britânica, Gordon Ramsay passou a ser o nosso chef de estimação. E isto porque, acredito, em cada um de nós há um Gordon Ramsay oculto, mais brando mas ainda assim impetuoso e quando não existe oculto desejamos ardentemente tê-lo e poder soltar uns impropérios sem mais consequências. Ninguém é assim, eu sei, mas há dias, alturas, momentos em que ficaria tão mais leve, assim pudesse libertar este vapores de fúria que se acumulam nos pulmões. Ou nas ancas talvez, o que explica muita coisa e me alivia a consciência. É fúria afinal. Posso comer mais uns biscoitos ou devassar-me num crumble ou num tiramisú. Das gritarias desalmadas do Hell’s Kitchen uma grande parte desenrolava-se em torno do Beef Wellington que, diga-se de passagem, nunca me suscitou grande interesse, mas um dia, há sempre um dia, comecei a nutrir uma certa curiosidade pelo naco de carne embrulhado numa camada generosa de massa folhada. O que faria desesperar e gritar tanta gente? Que raio se esconderia entra a crosta folhada e carne tão rosada? E era motivo para tanta quezília? Era. A gota de água foi quando me acusaram de não fazer Beef Wellington num misto de queixume e súplica e quando na procura da receita me cruzei com este clip. Parece tão fácil. 
 E foi hoje então. Os preparativos começaram no dia anterior logo com a escolha do naco de carne. Além de ter de ser suculento tinha de ser redondo, se não nada feito, para desespero do rapaz do talho. Nada como uma escolha criteriosa, qualidade e aspecto. No fundo não é assim em quase tudo na vida? Depois os cogumelos, uma trabalheira para os encontrar e por último foi esperar e deitar mãos à obra. Com calma e de alma descansada. O sol da manhã iluminava-me a cozinha e quase conseguia ver a tarja de mar lá ao fundo, minha companheira inseparável de todas as incursões no mundo de palatos e aromas. E depois foi partilhá-lo entre a expectativa e a surpresa, um copo de vinho frutado para contrastar a intensidade dos cogumelos e as réstias de sol que completaram mais este ágape da intimidade. Delicioso. Suculento. Divinal. Há muitas formas de declarar o amor. Esta é uma delas. Provavelmente a que faço melhor.

Receita completa aqui

De vez em quando o passado (9)


sábado, 3 de março de 2012

STFU

O primeiro-ministro espera que os portugueses façam uma boa gestão de recursos e possam ir de férias.

Pergunta número um: quais recursos?
Pergunta número dois: falta muito para nos vermos livres deste %$#"£§* ou posso passar o fim-de-semana descansada?

quinta-feira, 1 de março de 2012

Na paz dos deuses

Passei por aqui para ver se estava tudo bem. Espreitei pelo canto do post de porta entreaberta, uma nesga por onde se anteviam palavras morrinhando na acalmia da tarde. Os adjectivos estavam no lugar e nem as vírgulas se tinham mexido. Os pontos finais repousavam sossegados no canto do sofá. Levantaram um olho quando ouviram o meu restolhar. Tudo em ordem, pensei, quando me saiu uma metáfora ao caminho, cansada de o ser. Às vezes também me cansam as metáforas, explicações e jogos de cintura estilísticos. Antes que chovesse abri-lhe a porta. Voltará dentro em pouco. Ou talvez não. Tudo bem. Tinha passado aqui para ver se estava tudo bem. E estava.