Hoje sonhei que a mãe da minha aluna tinha dado um jeito à sua vida para que a filha finalmente pudesse ter uma vida como algumas das outras garotas da sua idade: tranquila, sem recriminações e acusações do que não fez.
Páginas
terça-feira, 28 de novembro de 2006
domingo, 26 de novembro de 2006
sábado, 25 de novembro de 2006
sexta-feira, 24 de novembro de 2006
Centenário
Lágrima de preta
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.
Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.
Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.
Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.
Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:
nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.
António Gedeão
24 de Novembro de 1906
quarta-feira, 22 de novembro de 2006
Animal policiado
Aqueles que nunca saíram das ruas direitas e monótonas das cidades da Europa, não podem conceber a colorida e luminosa originalidade das cidades do Oriente. Aí, as ruas são direitas, ladeadas de largas fachadas, caiadas, inexpressivas como rostos idiotas. As figuras são triviais; as fisionomias vulgares, esbatidas, uniformizadas pelo tédio e as dificuldades da vida; os vestuários são escuros, estreitos, económicos. O gás, à noite, perfila a sua linha bocejante; o rodar das carruagens e das carroças abala o chão com uma brutalidade ruidosa. Tudo é correcto, alinhado, perfilado, medido e policiado.
É decerto excelente para a segurança, para a justiça, para a propriedade, para a ordem: é mesmo indispensável. A algibeira aplaude; a epiderme, protegida, dilata-se de alegria; o espírito de lucro, garantido e patrulhado, desenvolve-se com segurança, e as gavetas podem bocejar sem risco. Tudo está contente no animal policiado - excepto a imaginação.
É decerto excelente para a segurança, para a justiça, para a propriedade, para a ordem: é mesmo indispensável. A algibeira aplaude; a epiderme, protegida, dilata-se de alegria; o espírito de lucro, garantido e patrulhado, desenvolve-se com segurança, e as gavetas podem bocejar sem risco. Tudo está contente no animal policiado - excepto a imaginação.
Eça de Queirós, De Alexandria ao Cairo
Cairo
Foto: minha
terça-feira, 21 de novembro de 2006
Os inimigos do turista
Os melhores conselheiros dos turistas raramente são outros turistas. Comprovei-o, quando eu e o H. nos encontrámos em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, com uns meros reais no bolso. Tudo isto porque ao que parece, e segundo conselhos vários deste lado do Atlântico, no Rio de Janeiro o melhor mesmo é andar pêládo. Nada. Nada mais tínhamos connosco, portanto. Nem um cartão de crédito, nem um cartão de débito e dinheiro resumia-se a uma insignificância que mais valia nem ter existido de todo no bolso lateral das bermudas do H.. Manda a previdência e o bom-senso que não se carreguem grandes quantias de dinheiro, valores ou haveres, nada que não faça aqui mesmo, mas só me deparei com o ridículo de nós próprios, quando ambos nos confrontámos com a quase inexistência do vil metal por recomendação alheia. Perguntara-me antes como iríamos fazer naqueles dias no Rio, uma vez que numa cidade será difícil andar sem dinheiro algum. A resposta veio nesta altura e a alternativa foi voltar a Santa Teresa de táxi posteriormente, com todas as precauções tomadas e sem muito dinheiro connosco. Nada de mais, portanto. Turista que se preze seria incapaz de sair daquele lugar sem uma lembrança que pudesse perpetuar a memória do lugar.
Não basta apenas ser turista para parecê-lo. Os turistas fazem como parecer ainda mais ao abster-se de práticas comuns e que acabam por denunciá-los. Apercebi-me disso uma outra vez em que ouvi uma empregada de restaurante descrever o comportamento de um turista. Ao que ela dizia, o gringo estava apavorado e agarrou-se aos pertences de forma veemente. O relato era acompanhado com uma risada estridente e a exposição ao ridículo do pobre gringo, que por uma questão de sanidade mental, imagino rosadinho como um leitão e de linguajar anglófono. A história não se esgota aqui. Quando num outro lugar, inquiri o guia de viagem, como fazer para ver as mulheres rendeiras, algo que trazia em mente desde casa também por culpa da música e do imaginário, o guia foi peremptório e atirou-me com aquilo que nenhum turista quer ouvir, particularmente no Brasil: não era seguro. Sábi como é que é… pêrifêria é pêrifêria! Nem precisou dizer mais. Ninguém expõe a vida em troco de dois dedos de conversa com as rendeiras, obviamente, e teria tomado este conselho por verdadeiro, caso não tivesse descoberto, por acaso, e na conversa com um taxista, que as mulheres rendeiras habitavam num sítio absolutamente seguro, seguro e lindíssimo, nas margens da lagoa Mundaú, como atestei depois.
Uma outra ocasião, e isto no mesmo continente, embora um pouco mais acima, fui acometida de um catarro, no dizer dos naturais da ilha. Estava encatarrada, pois, e talvez com febre. Valeu-me um dia no quarto do hotel, sozinha com o meu catarro - que melhor companhia se pode desejar numa viagem? - a destilar a febre e o maldito catarro. Os meus companheiros de viagem seguiram o seu caminho e foi tácito que não havia medicamentos, nem havia farmácias. Nada a fazer. Acreditei. Acreditei até, uns anos mais tarde, no mesmo destino, ter passado por, pelo menos, duas farmácias. Se se queriam ver livres de mim, podiam ter-me logo atirado do Malecón aos tubarões. Assim ainda resisti para contar a história. Como diz a Carlota, Trust no one!
Não basta apenas ser turista para parecê-lo. Os turistas fazem como parecer ainda mais ao abster-se de práticas comuns e que acabam por denunciá-los. Apercebi-me disso uma outra vez em que ouvi uma empregada de restaurante descrever o comportamento de um turista. Ao que ela dizia, o gringo estava apavorado e agarrou-se aos pertences de forma veemente. O relato era acompanhado com uma risada estridente e a exposição ao ridículo do pobre gringo, que por uma questão de sanidade mental, imagino rosadinho como um leitão e de linguajar anglófono. A história não se esgota aqui. Quando num outro lugar, inquiri o guia de viagem, como fazer para ver as mulheres rendeiras, algo que trazia em mente desde casa também por culpa da música e do imaginário, o guia foi peremptório e atirou-me com aquilo que nenhum turista quer ouvir, particularmente no Brasil: não era seguro. Sábi como é que é… pêrifêria é pêrifêria! Nem precisou dizer mais. Ninguém expõe a vida em troco de dois dedos de conversa com as rendeiras, obviamente, e teria tomado este conselho por verdadeiro, caso não tivesse descoberto, por acaso, e na conversa com um taxista, que as mulheres rendeiras habitavam num sítio absolutamente seguro, seguro e lindíssimo, nas margens da lagoa Mundaú, como atestei depois.
Uma outra ocasião, e isto no mesmo continente, embora um pouco mais acima, fui acometida de um catarro, no dizer dos naturais da ilha. Estava encatarrada, pois, e talvez com febre. Valeu-me um dia no quarto do hotel, sozinha com o meu catarro - que melhor companhia se pode desejar numa viagem? - a destilar a febre e o maldito catarro. Os meus companheiros de viagem seguiram o seu caminho e foi tácito que não havia medicamentos, nem havia farmácias. Nada a fazer. Acreditei. Acreditei até, uns anos mais tarde, no mesmo destino, ter passado por, pelo menos, duas farmácias. Se se queriam ver livres de mim, podiam ter-me logo atirado do Malecón aos tubarões. Assim ainda resisti para contar a história. Como diz a Carlota, Trust no one!
segunda-feira, 20 de novembro de 2006
Desmemória
domingo, 19 de novembro de 2006
Feijão tropeiro
sábado, 18 de novembro de 2006
Sabedoria popular
-Ao leitor eu vou contar.
Quem está lendo e escutando
Os homens aqui da terra
Eles estão se exaltando
Por alguns fazerem isso
As coisas estão modificando.
- As coisas estão modificando
Todos prestem atenção
No verão está sendo inverno
No inverno sendo verão
Está sendo atrapalho
É na grande plantação.
- Vejam estes atrapalhes
Eu agora vou contar
As datas dos feriados
Os homens querem modificar
Modificação que fazem
Chegando antecipar.
- Chegando antecipar
Digo ao José e a Maria
Do carneiro tirando leite
Cachorro macho dando cria
Chegando isso acontecer
Em mim dá muitas agonias.
Maria José de Oliveira (Mariquinha)
Repentista alagoana
Quem está lendo e escutando
Os homens aqui da terra
Eles estão se exaltando
Por alguns fazerem isso
As coisas estão modificando.
- As coisas estão modificando
Todos prestem atenção
No verão está sendo inverno
No inverno sendo verão
Está sendo atrapalho
É na grande plantação.
- Vejam estes atrapalhes
Eu agora vou contar
As datas dos feriados
Os homens querem modificar
Modificação que fazem
Chegando antecipar.
- Chegando antecipar
Digo ao José e a Maria
Do carneiro tirando leite
Cachorro macho dando cria
Chegando isso acontecer
Em mim dá muitas agonias.
Maria José de Oliveira (Mariquinha)
Repentista alagoana
quinta-feira, 16 de novembro de 2006
Amor Maior
A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou em chegar.
José Saramago, As Pequenas Memórias.
terça-feira, 14 de novembro de 2006
A descoberta da intimidade
Três anos e dez meses foi o tempo necessário para que me começassem a tratar por tu. Aqui na zona deve constituir um record absoluto, uma vez que o saloio salta do você, forma de tratamento discutível, para o tu a uma velocidade estonteante. A fórmula para manter distância é exactamente uma certa distância, sem sobranceria nem arrogância, apenas um toquezinho singelo e uma demonstração clara de que tu cá, tu lá não é tratamento que agrade. Tenho alguma dificuldade em dizer claramente que não gosto que me tratem por tu sem mais aquelas, e vou insistindo, tratando o meu adversário nesta contenda por um tratamento menos íntimo. Debalde, a maior parte das vezes. O saloio é um rapaz esperto e ardilosamente ignora as indirectas. Três anos e dez meses foi, pois, o record absoluto.
Na mercearia, as tentativas deram fruto durante igual período de tempo, três anos e dez meses, mas depois de lá ter entrado e eu e a dona, sozinhas na intimidade do carvão e do pão acabadinho de sair do forno, termos trocado impressões e palavras sobre o incompreensível mundo masculino, segredo agora bem guardado entre as cebolas e as pastas de dentes, as castanhas e os queijos frescos e que me escuso aqui de revelar, a ligação entre ambas estreitou-se e a deferência começou a desvanecer-se, como um quadro a óleo repentinamente transformado em aguarela.
Adensou-se tudo isto naquele dia em que, na sapataria, avisto a dona da churrascaria de uma aldeia vizinha, a que recorremos amiúde. É uma mulher talvez pelos trinta, beneficiada pela natureza, casada com um rapaz a quem a natureza não ajudou tanto na embalagem e ambos pais de uma princezita parecida com a mãe. A churrasqueira salva-nos em dias de preguiça absoluta, Sábados, Domingos ou feriados. Lá dentro os presentes vão rodando à medida que os grelhados se aprontam e finalizam e recozendo odores e fluidos em virtude das temperaturas dignas do inferno de Dante. Nada de grandes intimidades mesmo com um braseiro tão assertivo. Uma palavra que se troca, uma observação sobre o tempo ou a criança, o resultado do jogo de futebol, se lá for nos intervalos. A dona mantém a tranquilidade mesmo sob as temperaturas escaldantes e nunca se deu a grandes exuberâncias, ao contrário da dona da mercearia. Contudo, a relação que travamos não mais foi a mesma depois daquele rendez-vous na sapataria. Na vez seguinte que regressei à churrascaria o tu saltou-se-lhe sem qualquer problema e com um à-vontade surpreendente. Há vida além do balcão da churrascaria, descoberta por acaso numa loja de vender sapatos. Certo é que a descontextualização leva a que olhemos as pessoas de forma diferente e que, por vezes, descubramos que a sua existência se prolonga além dos locais onde, por hábito, são esperadas. Acontece com frequência com os alunos quando nos descobrem às compras no supermercado ou a beber um copo na noite. Afinal são humanos, os professores, vivem além dos portões da escola. Fazem compras, comem e bebem, divertem-se como o comum dos mortais.
Ao que parece, a descoberta responsável por esta súbita intimidade deu-se de forma inesperada: os pés. Além de ser professora, morar na aldeia vizinha e rival, comer teclado ou frango grelhado, sou ainda detentora de um par de pés 36 ou 37 dependendo dos sapatos, facto revelador duma igualdade desconhecida até então para a dona da churrascaria e que me colocou de igual para igual ao ponto de poder ser tratada por tu. Os ginecologistas mesmo após nos terem avistado as amígdalas, sem sequer termos aberto a boca, continuam com o tratamento cerimonioso e deferente, portanto nada de mais íntimo do que os pés. Mostrem tudo, se não quiserem ser tratados por tu, mas os pés jamais.
Na mercearia, as tentativas deram fruto durante igual período de tempo, três anos e dez meses, mas depois de lá ter entrado e eu e a dona, sozinhas na intimidade do carvão e do pão acabadinho de sair do forno, termos trocado impressões e palavras sobre o incompreensível mundo masculino, segredo agora bem guardado entre as cebolas e as pastas de dentes, as castanhas e os queijos frescos e que me escuso aqui de revelar, a ligação entre ambas estreitou-se e a deferência começou a desvanecer-se, como um quadro a óleo repentinamente transformado em aguarela.
Adensou-se tudo isto naquele dia em que, na sapataria, avisto a dona da churrascaria de uma aldeia vizinha, a que recorremos amiúde. É uma mulher talvez pelos trinta, beneficiada pela natureza, casada com um rapaz a quem a natureza não ajudou tanto na embalagem e ambos pais de uma princezita parecida com a mãe. A churrasqueira salva-nos em dias de preguiça absoluta, Sábados, Domingos ou feriados. Lá dentro os presentes vão rodando à medida que os grelhados se aprontam e finalizam e recozendo odores e fluidos em virtude das temperaturas dignas do inferno de Dante. Nada de grandes intimidades mesmo com um braseiro tão assertivo. Uma palavra que se troca, uma observação sobre o tempo ou a criança, o resultado do jogo de futebol, se lá for nos intervalos. A dona mantém a tranquilidade mesmo sob as temperaturas escaldantes e nunca se deu a grandes exuberâncias, ao contrário da dona da mercearia. Contudo, a relação que travamos não mais foi a mesma depois daquele rendez-vous na sapataria. Na vez seguinte que regressei à churrascaria o tu saltou-se-lhe sem qualquer problema e com um à-vontade surpreendente. Há vida além do balcão da churrascaria, descoberta por acaso numa loja de vender sapatos. Certo é que a descontextualização leva a que olhemos as pessoas de forma diferente e que, por vezes, descubramos que a sua existência se prolonga além dos locais onde, por hábito, são esperadas. Acontece com frequência com os alunos quando nos descobrem às compras no supermercado ou a beber um copo na noite. Afinal são humanos, os professores, vivem além dos portões da escola. Fazem compras, comem e bebem, divertem-se como o comum dos mortais.
Ao que parece, a descoberta responsável por esta súbita intimidade deu-se de forma inesperada: os pés. Além de ser professora, morar na aldeia vizinha e rival, comer teclado ou frango grelhado, sou ainda detentora de um par de pés 36 ou 37 dependendo dos sapatos, facto revelador duma igualdade desconhecida até então para a dona da churrascaria e que me colocou de igual para igual ao ponto de poder ser tratada por tu. Os ginecologistas mesmo após nos terem avistado as amígdalas, sem sequer termos aberto a boca, continuam com o tratamento cerimonioso e deferente, portanto nada de mais íntimo do que os pés. Mostrem tudo, se não quiserem ser tratados por tu, mas os pés jamais.
Foto: Neptuno
segunda-feira, 13 de novembro de 2006
domingo, 12 de novembro de 2006
sábado, 11 de novembro de 2006
sexta-feira, 10 de novembro de 2006
Extravagâncias
Hoje, quando fui à Tabacaria da aldeia, a conversa rodava em torno do que faríamos, caso fôssemos bafejados pela sorte e o Euromilhões se nos precipitasse no regaço. Eu disse que compraria uma casa no Brasil, por exemplo, uma vez que o custo das passagens aéreas seria então diminuto. A dona acrescentou que podíamos até ir logo, imediatamente, passear, sendo que passear significa viajar. Respondi-lhe que não, agora seria impossível uma vez que tenho aulas. A empregada disse que com tanto dinheiro eu não precisaria de trabalhar, a dona disse que deixaria logo de trabalhar e quando eu disse que não, que não deixaria de trabalhar, a rapariga arregalou os olhos e os restantes olhares presentes na Tabacaria cravaram-se-me pelo corpo fora, quais setas em São Sebastião. Ao que parece toda a gente mandaria o patrão às urtigas, o meu nem isso merece, viveria montada nas notas como o Tio Patinhas, cometeria extravagâncias várias, excentricidades desmedidas, além do próprio sonho, mais e mais longe do que a imaginação consegue comportar mas nenhuma tão estapafúrdia como continuar a trabalhar.
quinta-feira, 9 de novembro de 2006
9 de Novembro 1989
Pudesse eu escolher um momento da história contemporânea para presenciar e ele teria sido, sem pensar duas vezes, a queda do Muro de Berlim. Teria uns dezassete anos, quando metida num autocarro com mais duas dezenas de adolescentes, Berlim me foi dada a conhecer. Berlim de um lado, absolutamente extasiante para uma adolescente de pouco mais de década e meia de vida. Berlim, cheia de néon e cor, movimento, cosmopolita e vibrante, a antítese de Berlim do outro lado. Sombria, cinzenta, esmagadora na propaganda e arquitectura, antiquada no vestuário dos berlinenses em passeio pela sua cidade, amiúde ameaçada com turistas tementes ao papão socialista, atentos observadores de comunistas no seu habitat natural. Não creio que tenha sido inocente esta mudança brusca de cidades na cidade, muito menos o confronto directo com o conflito de ambas. Na cabeça de um adolescente as conclusões chegam apressadas mesmo antes das reflexões e o que se vê é, a maior parte das vezes, o que se julga ser e se assume como verdade insofismável. O que seria tudo aquilo não me foi imediatamente claro. Há informações que só passam quando a estupefacção desvanece e o tempo nos ajuda a ver além do que vemos. Fácil foi sentir, mais difícil entender. Lado a lado, tão perto e tão longe, duas cidades cresciam separadas, antagónicas e incompreensivelmente distantes. Foi há dezassete anos que a notícia veio e as imagens não mais me abandonaram.Que a liberdade de escolher caminhos
prevaleça sempre
e que os homens possam viver
sem
muros.
prevaleça sempre
e que os homens possam viver
sem
muros.
terça-feira, 7 de novembro de 2006
Os sítios
Os sítios mudaram de sítio, é o que é.
E os sítios mudaram de sítio
porque as pessoas
foram embora,
e os sítios só são sítios
quando as pessoas
os habitam,
os amam,
os gritam,
os bebem,
os passeiam.
E os sítios mudaram de sítio
porque as pessoas
foram embora,
e os sítios só são sítios
quando as pessoas
os habitam,
os amam,
os gritam,
os bebem,
os passeiam.
Baptista-Bastos, Lisboa contada pelos dedos.
domingo, 5 de novembro de 2006
sexta-feira, 3 de novembro de 2006
Conversas na livraria
Foi isto enquanto vasculhava entre livros na tentativa de me decidir Este? Este ou este? Ou nenhum mesmo, carecida que estou de espaço e tempo para albergar mais livros. A voz ergueu-se e com ela a brisa dos corpos em trânsito entre um e outro escaparate, nos corredores estreitos. Estão aqui, estão aqui todos, este é o último, depois tem aqui as crónicas. A voz feminina questionou algo que não se deixou decifrar na distância e no tom de voz baixo. O rapaz continuou Sabe que ele é um escritor que se ama ou se odeia. Tem uma forma muito diferente de escrever, escreve tudo o que lhe vem à cabeça ao mesmo tempo. Mas é importante, é sempre nomeado para o Prémio Nobel. A mulher continuou pedindo informações e explicações. Olhando para os romances esboçou um ar temente ao volume de páginas e, entretanto, dirigindo-se para uma outra estante na peugada do empregado, solicitou-lhe o Livro de crónicas. O empregado foi peremptório e verdadeiro. São três, os livros de crónicas: Livro de Crónicas, este aqui, que é o primeiro, depois o Segundo Livro de Crónicas e o Terceiro Livro de Crónicas. A mulher queria saber mais e retomou o tema dos romances. Qual, qual seria melhor? O rapaz aconselhou-a a talvez começar pelas crónicas, o busílis centrava-se na escolha entre os três volumes. Achei por bem acudir-lhe na decisão. Disse-lhe pois que eram bem diferentes entre si, sendo que o primeiro se destacava dos outros por ser menos autobiográfico. Opinião, pura e simples. A mulher quis saber Já leu? Respondi-lhe que sim, que já lera os três mas que o primeiro era o meu preferido. A mulher esboçou um sorriso delicado e simpático e manifestamente feliz por encontrar alguém que já tivesse lido o escritor sobre o qual subitamente o seu interesse recaía. A conversa espraiou-se para o próprio autor E viu-o, ontem na televisão? Sim, sim, vi. É extraordinário, não é? Sim, de facto. E já reparou como ele escreve? A rapidez? Fantástico! Pois, pois. E agora já tem outro romance escrito além deste que acabou de publicar. Eu disse que pela entrevista colhera a impressão que este livro não teria sido publicado anteriormente para não coincidir com a publicação do outro livro. Procurei-o na estante e vi o livro no escaparate bem de frente para ambas e disse-lhe aquele ali. A mulher ficou surpresa. Aquele? De cartas? Sim, um livro que foi publicado com as cartas que ele escreveu à mulher enquanto esteve na Guerra Colonial, em Angola. A mulher ficou alvoraçada. À primeira mulher? E eu, Sim, julgo que sim… A mulher continuou, desta feita, com um ar cúmplice de mulheres que confessam o indizível, a voz levemente mais baixa, Àquela, à Carmito? Sim, que ele e as mulheres… Agora o ar rapioqueiro Ai, António, meu ganda maluco! Restava-me desfazer o equívoco e dizer-lhe que não, que a mulher a quem dedicou os aerogramas não se chamava Carmito. Pressenti, no entanto, que se iniciaria uma conversa para a qual eu não teria respostas, os irmãos, os pais, as filhas, as mulheres. Esbocei um sorriso, desejei à senhora boa leitura e retirei-me. Depois da conversa, o leitor deve ser deixado a sós com o texto. Dois é companhia, três uma multidão. A Carmito que o diga.
imagem: "Pública" nº 545/ 29 Out. 06
quarta-feira, 1 de novembro de 2006
Pão por Deus
A campainha da porta foi peremptória e insistente. Algures depois das nove e trinta fez-se soar o toque e não mais parou até sensivelmente depois das doze, a hora em que, segundo a tradição, as crianças recolhem aos lares de sacos cheios, imagino que ruborizados e cansados da correria matinal porta a porta, pedindo o que a tradição ensinou para este primeiro dia do mês de Novembro, Pão por Deus. Este é um dia em que a porta de casa se abre e as crianças entram, às vezes aos magotes, outras acompanhadas de familiares, avós, mães, tias e se vão felizes para depois se derrubarem nos doces o resto da tarde.
No primeiro ano em que estivemos na aldeia, a nossa porta foi a única que se abriu na rua e tornou-se, desde então, paragem obrigatória. De véspera fica preparada uma mesa pequena à entrada de casa, onde vários recipientes acolhem as guloseimas sortidas: rebuçados, bolinhas de chocolate, chocolates, chupas e, excepcionalmente este ano, gomas. A grande sensação são sempre as moedas e notas de chocolate, prioridade absoluta na lista de compras para a ocasião. Gosto de receber as crianças em minha casa, o meu afilhado todos os anos sem excepção. Gosto de receber os pais que acompanham as crianças e de ver os rostos iluminados dos pequenotes, os olhitos brilhantes perante a mesa colorida, as bochechas rosadas e mãozitas pequenas e a ansiedade com que abrem os sacos de pano, bem à moda saloia, ou sacos díspares de grandes superfícies comerciais, e escrutinam o que lhes vou dando, com toda a atenção e sentido de equidade. Despeço-me com um sorriso, retribuem com um agradecimento e o chilrear inocente, enquanto caminhamos até ao portão, esperando sempre que haja mais para o ano. Entretanto uns deixarão de vir, por já terem ultrapassado a idade, outros repetirão a visita, mais crescidos já, os mais espigadotes passarão a vir a acompanhar os irmãos ou irmãs mais novos. A tradição já não é o que era mas ainda é tradição. Nada como o sorriso de uma criança para iluminar os dias. Até para o ano então.
No primeiro ano em que estivemos na aldeia, a nossa porta foi a única que se abriu na rua e tornou-se, desde então, paragem obrigatória. De véspera fica preparada uma mesa pequena à entrada de casa, onde vários recipientes acolhem as guloseimas sortidas: rebuçados, bolinhas de chocolate, chocolates, chupas e, excepcionalmente este ano, gomas. A grande sensação são sempre as moedas e notas de chocolate, prioridade absoluta na lista de compras para a ocasião. Gosto de receber as crianças em minha casa, o meu afilhado todos os anos sem excepção. Gosto de receber os pais que acompanham as crianças e de ver os rostos iluminados dos pequenotes, os olhitos brilhantes perante a mesa colorida, as bochechas rosadas e mãozitas pequenas e a ansiedade com que abrem os sacos de pano, bem à moda saloia, ou sacos díspares de grandes superfícies comerciais, e escrutinam o que lhes vou dando, com toda a atenção e sentido de equidade. Despeço-me com um sorriso, retribuem com um agradecimento e o chilrear inocente, enquanto caminhamos até ao portão, esperando sempre que haja mais para o ano. Entretanto uns deixarão de vir, por já terem ultrapassado a idade, outros repetirão a visita, mais crescidos já, os mais espigadotes passarão a vir a acompanhar os irmãos ou irmãs mais novos. A tradição já não é o que era mas ainda é tradição. Nada como o sorriso de uma criança para iluminar os dias. Até para o ano então.
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