Páginas

sábado, 29 de setembro de 2007

O nome das coisas

Na aldeia, não é só a mercearia que produz um efeito encantatório sobre os seus fregueses. Na aldeia, há o talho que transmite o terço nos sábados ao fim de tarde num volume que faria concorrência aos carrilhões, caso tocar lhes fosse permitido, e há uma padaria, padaria e pastelaria, claro está.
Diz-se na aldeia que a dona da padaria tem um feitio pouco apaziguador, que não guarda para si o que lhe não agrada e que é pouco amistoso no tratamento dos empregados. E como sei tudo isto? Sei tudo isto porque, um dia na mercearia entre a maçã e amêxa, alguém terá dito que a dona da padaria tinha moído o juízo de tal forma a uma empregada, já não rapariga nova, que a pobre estava mal dos nerbos. A dona da padaria é uma mulher pequena, morena, magra e com o despacho característico das mulheres na aldeia. Jamais ficará quieta se puder andar e jamais se calará se puder falar. Foi assim também que relatou um dos seus partos. Ao que parece, terá rezado a cartilha ao clínico, o homem assustado actuou a contento e também sei isto, não porque eu e a dona da padaria sejamos íntimas. Sei isto porque a dona da padaria, um dia enquanto aviava as carcaças e as bolas, terá relatado esse momento de excelsa elegância que algumas mulheres gostam de relatar: o parto, essa odisseia de esgares, gritos, fluidos, bolsas de sei lá quê que se derramam por uma mulher desprevenida abaixo, médicos, médicas, enfermeiros e enfermeiras a espreitar mistérios insondáveis da natureza feminina, contracções, dilatações e expulsões, valha-me a santa, para que é precisa a inquisição, se se pode parir? E assim foi que, de olhar vivo, explicou, fluente e experiente na desova, como tinha sido.
Na padaria, o pão não é sempre o mesmo. O pão é sempre o mesmo, mas a denominação vai variando, portanto não chega apenas falar-se a língua dos homens, há que dominar o código, as nuances, as particularidades, as subtilezas. O que num outro lugar é denominado de papo-seco na padaria não se resume a esta sensaborona classificação. Uma ocasião, e após ter sido convenientemente informada de mais uma alteração da nomenclatura, entrei já tarde na padaria, numa hora do dia em que o pão habitualmente já teria sido todo vendido e perguntei à dona da padaria se ainda havia pão. Impunha-se a utilização da nomenclatura recentemente adoptada e, mesmo sentindo que talvez estivesse a perguntar o óbvio, algo visivelmente exposto à minha frente, arrisquei Tem maminhas? A mulher não se ficou e atirou-me Não quer mesmo que lhe responda, pois não? Trocámos um sorriso cúmplice e perguntei Então, mas como é que se chama esse pão? A mulher retorquiu Bicos! Ah muito bem! Então e há bicos? A mulher disse Não sei se o padeiro vai cozer mais pão hoje. Pedi-lhe Então, veja lá, se faz favor, se o padeiro vai fazer mais bicos hoje... No meu tempo, padeiro fazia pão. Bicos eram deixados, se não para outras ocasiões, definitivamente para outras áreas profissionais.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

English as she is spoke

In the country of blinds, the one eyed men are kings.
Na terra dos cegos o que tem um olho é rei.

José da Fonseca & Pedro Carolino, English as she is spoke

Contrariamente ao que possa indicar um título tão sugestivo, desta feita não está em causa a fluência do primeiro-ministro português e que tem divido as opiniões entre defensores e carrascos.
English as she is spoke, The new Guide of the Conversation, in Portuguese and English, in Two Parts, da autoria de José da Fonseca e Pedro Carolino é uma obra que não deixa ninguém indiferente. O guia de conversação inglesa para estudantes portugueses data de 1855, foi elaborado a partir de um dicionário de Inglês/Francês e um de Francês/Português e, ao que parece, a total ausência de auxiliares de língua inglesa, inclusivamente de conhecimentos basilares da língua de Shakespeare por parte dos autores, não constituiu qualquer óbice, obstáculo ou impedimento. Para memória futura, o livro perdura com pérolas de incontida comicidade. Certamente se os autores tivessem intencionalmente escrito um livro humorístico, não obteriam o efeito deliciosamente hilariante contido nestas páginas.
O livro divide-se em duas partes. A primeira versa sobre o vocabulário português e inglês e a segunda sobre diálogos familiares na qual se incluem anedotas, idiotismos -expressões idiomáticas- e provérbios. Recomendo, pois, aos caros leitores para a próxima vez que quiserem saber novidades, arrisquem What news is there? ou qual é o assunto do momento Which they speack?, se estiveram com pressa digam-no no inglês fonsequiano I am pressed myself, se tiverem uma pergunta dirigida ao mercado editorial nada como But why, you and another book seller, you does not to imprint some good works? E, mesmo tendo acabado o tempo dos pêssegos, recomenda-se These apricots and these peaches make me and to come water in my mouth. Acredito que estejam incrédulos por esta altura mas se me disserem I believe not it, respondo-vos Nor I either.
Outras pérolas imprescindíveis na comunicação do quotidiano incluem I have put my stockings outward ou seja, calcei as meias do avesso ou às avessas. Sem esta, quem conseguiria sobreviver? ou He is drowned of debts, muito útil tendo em conta o contexto socio-económico do momento presente ou ainda para os amantes fervorosos I dead myself envy to see her, bem melhor do que a versão portuguesa Ardo em desejo de a ver. Caso tenham filhos ou seja necessário um conselho paternal nada como Apply you at the study during that you are young. Uma coisa vos digo: that may dead if I lie to you que é como quem diz, morra eu se vos minto mas não será demais pedir-vos Put your confidence at my, confiem em mim, claro.
E foi tudo isto no século XIX, imaginem se José da Fonseca e Pedro Carolino presenciassem os discursos com que José Sócrates nos tem brindado. Escreveriam tomos inteiros, uma enciclopédia, certamente.


Todas as expressões em inglês foram retiradas na íntegra de José da Fonseca & Pedro Carolino, (s.d.), English as she is spoke, McSweeney´s Books.

Imagem: minha

Também aqui

domingo, 23 de setembro de 2007

Num mundo perfeito

A rapariga descansada e tranquila. O corpo envolvido na volúpia do calor caribenho, a alma estendida na espreguiçadeira dos dias cálidos e despreocupados. A rapariga faz um telefonema. A rapariga recebe um telefonema. A mãe da rapariga diz-lhe Vai haver um seminário em Setembro sobre o Estatuto da Carreira Docente. É importante. Queres que te inscreva? E a rapariga, embalada pelo gemido dos coqueiros, o mar que se oferecia espelhado como um lago, transparente, quente como uma imensa e longa carícia, respondeu Sim, sim, claro, mamã, inscreve-me. E a rapariga voltou para a inconsequência dos dias sem relógio nem horas, com o sol apenas como referência, o mar como uma colcha de seda, turquesa, leve e translúcida, um mango daiquiri para apaziguar a soalheira manhã e a canícula abraçada ao corpo, o seminário esquecido, remetido para os dias vindouros carregados com o odor denso da obrigação. E a rapariga regressou a casa. Para trás, o sol, o mar, os coqueiros, o calor húmido, as noites tranquilas de céu estrelado, o aroma que se liberta dos trópicos como um perfume inebriante e selvagem sem se deixar agrilhoar em frascos que não sejam os que albergam memórias, e a rapariga abandonou os dias regidos pelo movimento do astro-rei, e a rapariga vestiu calças e calçou sandálias, mais roupa do que lhe era permitido nos dias estivais, no pulso o relógio retomou o lugar de sempre, a rapariga abraçou as obrigações profissionais e passou um dia ouvindo banalidades, queixumes, erros, incongruências, recriminações, choros e lamentos, o secretário de estado que não aparecera e como seria? sim, como iria ser?, um dia fechada num auditório gélido com a amargura alheia dos anos passados e a incerteza dos tempos futuros, e maldisse o gemido dos coqueiros e o tempo inconsequente que lhe apagara por instantes a razão e a fizera pensar que afinal o mundo era perfeito.

Negril, Jamaica.
foto: minha

Festejemos

O GNT vai voltar!

sábado, 22 de setembro de 2007

Ruiva

Pelo cheiro é que vamos

Sabe deus, alá e jah, as privações por que passo para, a bem da civilidade, boas maneiras e educação, não cheirar o pão em público ou a comida ou tudo o que se me visita agradável e inquietante pelo olfacto, pescoços inclusive. Ontem dei por mim a cheirar furiosamente o "Público". Começou na escola, quando uma colega abriu o saco dos jornais, e o perfume se espalhou na sala. Continuou no carro e permaneceu em casa. E a dúvida Será de mim? E mais uma investida suave do nariz contra o papel de jornal e, mais uma vez, a procura de uma amostra de perfume e depois um homem com o corpo provocantemente distendido nas páginas centrais anunciando um perfume És tu? Hoje desfeito o equívoco. O jornal pede desculpa por o suplemento ter sido impresso em papel perfumado e o regresso à normalidade neste dia de Setembro que finda com a brisa fininha como um sopro no pescoço com o aroma indelével de fim de Verão.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Aqui quieta

Estou aqui. Estou aqui na sala da minha casinha amarela onde tomei por hábito escrevinhar. Aqui entre livros e papéis. A Ruiva deitada ao meu lado, meio enrolada no remanso da tarde que finda, as réstias de sol que trespassam como fios de ouro pelos cortinados. Estou aqui refém na minha casa. Estou aqui sentada, quieta e calada, isto só para ver se passo despercebida, ver se ninguém me ouve, ver se a senhora que me dá uma mãozinha nas arrumações, lavadelas, limpadelas e passadelas a ferro, manuseando esse bicho infernal que bufa e deita água pelos bofes e ventas sobre a tábua de engomar, quiçá o animal mais temível da minha cozinha desde que o Chewbacca se foi. Estou aqui calada, o toque dos dedos no teclado indiciando um trabalho em curso e um trabalho de monta, urgente, importante, inadiável. Assim calada pode ser que passe despercebida. Assim calada não me acontecerá como no dia em que também quieta no mesmo local mas em amena cavaqueira com a minha Dona Francisquinha, ela me irrompeu triunfante sala adentro de aspirador em punho e eu, passeando de blogue em blogue, todos respeitáveis, todos de bom nome e bom gosto, deparo-me, no instante em que ela se aproximava lesta e expedita, com o Daniel Radcliffe assim. E a Dona Francisquinha bem perto e o jovem homem impassível na sua súbita masculinidade e eu aqui em vias de abraçar o ecrã com o sorriso dos tontos, a solução desastrada para encobrir o despudor e salvar a minha reputação de mulher respeitosa e respeitável ou de puxar a senhora para a conversa Benzó Deus, como o rapaz cresceu, Dona Francisquinha! e ela É verdade! Esta mocidade cresce muito… E desde que largou a vassoura parece que ganhou corpo. Tão pequenino que ele era. São estas coisas que nos fazem velha, Dona Leonor... e eu desajeitada sem conseguir clicar com a rapidez necessária no canto superior direito do ecrã. E é por isso que estou aqui calada. Calada e quieta. Nunca se sabe os estragos que um blogue pode fazer a uma dona de casa desprevenida.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Frio? Não, eu uso uma termotebe

Das muitas graçolas, piadolas e incongruências com que este governo e o Ministério da Educação nos tem brindado, esta é particularmente - ora, deixa-me cá ver um adjectivo- hilariante, curiosa, espirituosa, divertida, disparatada. Conheço algumas escolas e nenhuma tem aquecimento central, nem sequer aquecimento. Provavelmente quando Maria de Lurdes Rodrigues se desloca às escolas de olhar cândido e condescendente, afagando a cabeça das crianças e quando José Sócrates, de ar generoso, caridoso, benemérito -igual a ele só São Nicolau- distribui portáteis pelo país fora, as escolas estão aquecidinhas, os meninos perfumadinhos e lavados e os professores de farpela domingueira igualmente perfumados e lavados, tudo para o efeito claro. O paraíso, portanto.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Mudar

Mudar talvez.
Mudar de vida, certamente.
Mudar, sair, partir.
Mudar definitivamente.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Logo a nós

Num país onde o primeiro-ministro se faz passar pelo que nunca foi, o ministro da saúde manda dar os medicamentos fora de prazo aos pobrezinhos, -saiu-me cá um brincalhão o rapaz- o ministro das obras públicas chama a margem sul de deserto, a ministra da cultura falta às comemorações do centenário de Miguel Torga, a ministra da educação e o primeiro-ministro contratam figurantes para as digníssimas cerimónias inaugurais dessa salvação dos males da educação: o quadro interactivo - desde a invenção da roda que não se assistia a nada tão inovador-, o primeiro-ministro não recebe o Dalai Lama -tão mal aconselhadinho que o rapaz anda- está tudo preocupado, revoltado e furioso porque Scolari diz que deu mas não deu, deu mas diz que não deu, não deu mas devia ter dado, deu mas não devia ter dado um estaladão no sérvio, e que é um mau exemplo, e que dá mau nome ao país e mancha o futebol e que assim não pode ser, que se devia ir embora e mais isto e mais aquilo. E logo nos aconteceu isto a nós, logo a nós, valha-nos a senhora de fátima mais a santa da ladeira, tão recheadinhos de gente séria, de gente honesta e de palavra, irrepreensíveis a dar os bons exemplos. Ora, francamente, já não se pode ser um pouco efabulador e excessivo para levar logo na corneta. Vejam lá se ao Sócrates lhe acontece alguma coisa... Uma injustiça, é o que é.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

E de energúmeno

Um telefonema pela hora de jantar. Muito conveniente. Do outro lado uma voz feminina anunciava que o meu pai tinha assinado um cupão, imagine-se, e que, pasme-se, tinha sido premiado com uma viagem. Boa! Uma viagem! Que surpresas boas a vida nos reserva… Dezembro de 2006 era a data anunciada da assinatura do meu pai. Muito bem. A minha mãe questionou irónica E tem a certeza que é essa a data? Positivo, sem mais hesitações, Com a assinatura do meu marido? Com certeza e, de seguida, o nome do meu pai tal como constara na lista telefónica. Curioso. A minha mãe informou assertiva que, visto o meu pai ter morrido –detesto o eufemismo falecer – a assinatura seria - como dizer?- impossível. Do outro lado, a voz não se deu por vencida, pediu um segundo e quando regressou tinha outra informação, afinal o meu pai tinha assinado o cupão em Dezembro de 2005 e aqui toca a sineta dos concursos quando se dá a resposta errada, nada feito, tentem outra vez, vão recuando no tempo ano a ano, quem sabe não acertarão. A minha mãe acrescentou que tal seria impossível mais uma vez e isto não porque o meu pai não soubesse assinar o nome mas porque o meu querido pai nos deixara em Setembro de 2005, ter-lhes-á aplicado um ou outro adjectivo qualificativo do trabalho que desempenhavam, entretanto. Lamentam e tal, mas não quereria o prémio? E agora aqui estou com o dicionário de sinónimos na mão, que num mundo tão virtuoso e civilizado chamar nomes a alguém é uma falta grave e feia, mesmo quando se utilizam técnicas de vendas ofensivas, aviltantes, imperdoáveis e desprovidas de qualquer sensibilidade e respeito, quando ao se ouvir uma voz menos jovem do outro lado da linha se insiste que o marido assinou um cupão de viagem três meses depois de morto, portanto procuro em e de energúmeno mas nenhum dos sinónimos encontrados consegue exprimir com a expressividade devida a atitude descrita.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

E o regresso

E o corpo espartilhado pela obrigação do regresso, o corpo que permanece lânguido e preguiçoso, desobediente mediante a roupa menos informal, os sapatos que apertam até a alma e melhor que nunca a frase que ecoa Sapato não, seu Nacib, sapato não.

domingo, 9 de setembro de 2007

O coxo e o cego

Na aldeia há um cego. Na aldeia há um coxo. Na aldeia há um cego e um coxo. O cego vê melhor que muitos que não o são. Diz-se que o cego é um rapaz bem informado. O cego anda quilómetros todos os dias. Vestido com um colete fluorescente, faça sol ou faça chuva, o cego percorre a aldeia, rua acima, rua abaixo. Em tempo de chuva, o cego traz o chapéu-de-chuva pendurado na gola do casaco, como um pêndulo, para um lado, para o outro, rua acima, rua abaixo. O cego, de vez em quando, dá umas bengaladas nos carros que estão estacionados à frente da tabacaria, à esquerda, à direita.
O coxo não é manco, é coxo. Coxeia para um lado e para o outro com uma flexão ao centro. O coxo não coxeia para cima e para baixo como outros coxos. O coxo não coxeia com igual intensidade, faça chuva ou faça sol, para esquerda ou para direita com uma ligeira flexão ao centro. O coxo é mais novo que o cego, mas algo me diz que, nos dias em o coxo coxeia mais, vê menos que o cego que aquilo é um coxear etilicamente impulsionado. Nesses dias o coxo coxeia muito e coxeia para um lado e para o outro, para cima e para baixo, às vezes cuida-se que se vai estatelar no chão, mas equilibra-se, ergue-se mais um pouco e depois mais uma desequilibradela, à esquerda ou à direita. Mas isto é mais nos dias em que o coxo vê menos do que o cego.
O cego e o coxo têm vidas tranquilas, mais o cego que o coxo, é certo, mas que julguei periclitantes quando apareceram um dum lado e outro do outro lado da rua onde mal cabe um carro. O coxo para a esquerda e para a direita, o cego às bengaladas para a esquerda e para a direita, e o coxo para cá e para lá num equilíbrio instável na berma da rua sem passeios, e eu que deslizava cuidadosamente entre o coxo para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, e o cego, bengalada cá, bengalada lá, pensei por momentos que lá se iam, ou o coxo ou o cego, ou o coxo ou o cego, ou o coxo ou o cego, o cego ou o coxo? O coxo ou o cego? O coxo? O cego? O coxo! Ai, que é o cego e isto até chegar ao cruzamento e ver o coxo para a esquerda e para direita e o cego, bengalada aqui, bengalada ali, pelo espelho retrovisor e a rua a estreitar-se cada vez mais e a desaparecer à medida que me afastava. E ainda há quem diga que a vida na aldeia é aborrecida.

sábado, 8 de setembro de 2007

Pagina 161 - parte II

E respondendo a este desafio aqui vai:

* o livro mais próximo, este mesmo que tenho aqui ao meu lado, acabou de chegar de Inglaterra pelo carinho da Joana e é Magic Seeds de V. S. Naipaul.

* na 5ª linha, da página 161, lê-se:
The cell was quite big, thirty feet by ten or twelve feet, and for some prisoners it was bigger than anything they had known outside.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Lembranças

A mala prenha e rotunda das roupas desalinhadas anunciando o fim de férias evidente, o aroma a mar mesclado com o cheiro do protector solar que se desprende como uma evocação dos dias passados ainda bem presentes, a areia no fundo da mala, areia que se desprende da sola dos chinelos coloridos, um saco de plástico com logótipos desconhecidos, um folheto perdido anunciando excursões de turista prometendo o paraíso ali e agora, e a certeza de que o que se traz é o que perdurará na memória, mais vívido que qualquer fotografia, mais representativo do que qualquer souvenir, e o que se traz, quando se viaja, são sempre os rostos e sorrisos, são as cores, os aromas, os sons revestidos em palavras trocadas nem sempre compreensíveis de um falar inconsequente sem a obrigação da reciprocidade. O que se traz é o que se viveu e a memória de como se viveu.

Postal ilustrado

Negril, Jamaica
foto: minha

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Como um ponto final

For any true stickler, you see, the sight of the plural word “Book’s” in it will trigger a ghastly private emotional process similar to the stages of bereavement, though greatly accelerated. First there is shock. Within seconds, shock gives way to disbelief, disbelief to pain, and pain to anger. Finally (and this is where the analogy breaks down) anger gives way to a righteous urge to perpetrate an act of criminal damage with the aid of a permanent marker.

Lynne Truss, Eats, Shoots and Leaves.



Estávamos à mesa, pela hora de jantar, o anfitrião visivelmente cansado, também de nos ter à conversa, quando ela perguntou Então, diga-me, o s do caso possessivo já não se usa? O homem respondeu que sim, que se usava, ela insistiu, Então, é um erro, certo? Sim. A outra colega acrescentou que já em Portugal tinha dado conta do mesmo. A primeira não deu sinal de brandura nem de abrandamento. Preciso de saber, afirmou peremptória, se não estou a ensinar mal os meus alunos. Parecia alarmada, o anfitrião exausto e a conversa que, de repente, se transformava num debate aceso em torno da língua de Shakespeare, impacientava o nosso anfitrião, mais dado a artes culinárias e à informática. Valeu-lhe a fleuma britânica, certamente, e a deferência que se deve observar quando se tem convidados em casa. O homem levantou-se da mesa, entretanto, e, quando regressou, trazia na mão um livro Eats, shoots and leaves.E neste livro encontrei o que durante anos vivi: as questões da língua, a irritação com os erros, a vontade impetuosa de os corrigir, de entrar nos estabelecimentos e avisar que ali está um erro, coisa feia, um erro, e é de tudo isto que queria dar-te conta, meu pai. Chegar a casa e dizer-te Papá, trouxe um livro muito engraçado de Inglaterra e de te ver sorrindo Sobre quê, filha? Sobre pontuação e depois contar-te a anedota que vem na contra-capa e contar-te a versão que o Vince contou e ver-te o sorriso de sempre, e ouvir-te pausado a pedires-me Ora, mostra cá… e eu a dar-te o livro, os nossos dedos tocando-se levemente, tu a manuseá-lo como ninguém nunca o faz, o cuidado das páginas, a ternura do toque, e eu a pedir-to de novo, Dá cá, está aqui uma passagem muito engraçada , procurar a página e ler-ta. Isto lembra-te alguém? E tu de novo Não estou a ver, filhota… de sorriso malandro. E a conversa fluiria, ler-te-ia outra passagem, aquela em que a pontuação é considerada uma cortesia do escritor para com o leitor, por exemplo, responder-me-ias Vês, como eu tenho razão? estou certa de que me perguntarias Mas como é que descobriste esse livro?, contar-me-ias que ouviste alguém dar um erro hediondo na televisão, certamente dir-me-ias irónico Como aquela que escreveu a priori com um acento na tese de Mestrado, eu, pois claro, Papá e assim continuaríamos até eu dizer Bem, agora, vou-me, deixo-te aqui o livro. E tu Está bem, deixa aí para eu ver, agora não, logo, como sempre fazias, sempre logo. E essa é uma falta grande que me fazes, essa de não te poder contar como foi, esta de não te passar um livro, de ter comigo sempre o lápis que te ofereci e com o qual assinalavas os erros no rótulo da garrafa de azeite, de não poder discutir hifenização, apóstrofes, vírgulas e itálicos e esta é uma falta que tenho em mim sempre tão definitiva como um ponto final.


Ao meu pai, no dia em que dois anos passam.