Os dias de chuva convidam ao recolhimento entre portas. Entro na livraria pela enésima vez. Passo revista pelos mesmos livros, fazendo mentalmente a verificação dos que ainda compraria antes do regresso, somo e subtraio quilos à bagagem asceticamente cauculada, x pares de calças para x camisolas, nem mais nem menos, pares de sapatos controlados apenas pelo grau de conforto, poucos portanto e constato o que já sei, os livros terão de ser levados comigo, não há mala que comporte tantas letras e não gosto dos livros amachucados. Tu sabes. Tropeço no After Dark do Murakami e oscilo Levo? Não levo? Reviro o livro, confirmo capa e contracapa, leio as primeiras linhas, três por dois, tentação demoníaca, e a tradução? Directamente do japonês? Melhor do que a portuguesa? Não levo. Uma volta mais. Agora artigos de papelaria. Cadernos, caderninhos, dossiers, sacos, estojos, lápis e borrachas, agendas para 2009 e detenho-me perante a caneta. Preço ridículo. O valor das coisas nem sempre se estabelece em relação directa com o preço. Ensinaste-me tu ao longo das quatro décadas em que me apontaste caminhos. A caneta diz The pen is mightier than sword, a citação de Edward Bulwer-Lytton em tons levemente mais claros, o contraste harmonioso com a cor da caneta, a azul escura é mais bonita, constato, e penso, agarrando imediatamente na primeira disponível aos dedos curiosos Que gira. Vou levar para o Papá. E a mente que faz marcha-atrás mais veloz do que a mão que coloca a caneta no lugar inicial, o presente rebobinado e o passado presente entre os dedos que lêem The pen is mightier than the sword. E o presente que continua numa sucessão de atropelos e de regressos inevitáveis ao passado que fez do presente o que ele é. Vou levar para o Papá. A frase que se me atravessa a mente, a euforia infantil do presente, ensinaste-me também, oferecer sempre sem nada esperar em troca, um dos prazeres sempre cultivado e evidente no sorriso genuíno e generoso que oferecias com o presente, mais valioso, as mãos que alcançam canetas, lápis e borrachas rodando-os docemente na ponta dos dedos para retorná-los desapontada ao lugar, os olhos humedecidos que finjo acometidos de uma alergia repentina, que outra razão?, os gestos desengonçados, o nó na garganta que se esperaria resolvido, diz que o tempo ajuda, mentiras cobrindo as ausências, panaceias para males sem cura. Vou levar para o Papá, ocorre-me outra vez, pego na caneta, escolho uma entre muitas, eliminando as que contêm imperfeições, a caneta diz-me The pen is mightier than the sword, o passado cutuca-me no ombro, três anos decorridos, de caneta na mão aproximo-me da caixa Vou levar para o Papá e aqui a tenho, Papá, sei que vais gostar.
À memória do meu pai