José Saramago, oitenta e seis anos, o único laureado com o Prémio Nobel da Literatura, dono de um temperamento difícil e de palavra afiada, provoca a opinião pública sempre que Portugal é tema de conversa, desencadeando reacções em cadeia de repúdio e rejeição que, estou convicta, apreciará na intimidade com júbilo, cumprido que está um dos papéis principais do escritor para com o labor da escrita e para com os seus leitores: provocar.
António Lobo Antunes, sessenta e seis anos, alfacinha bisonho e ensimesmado, o eterno candidato ao Nobel que desmente categoricamente a mágoa pelo seu gladiador de escrita, José Saramago, ter trazido a medalha dourada e refulgente para o cantinho luso, diz que escreve o mesmo livro há anos, afirma que ninguém escreve como ele ad nauseam e reafirma os locais da escrita como únicos.
Em comum parecem ter a nacionalidade, excepto nos dias em que Saramago lhe dá para o salero e nos momentos em que Lobo Antunes deambula por Angola, como se amanhã nunca tivesse havido e o tempo permancesse parado nas páginas d’ Os Cus de Judas, ambos partilham o mester da escrita e a atitude de permanente provocação, tanto pelo ar blasée de António Lobo Antunes, quer sempre ir para casa escrever em vez de estar a receber prémios e a largar palavras de circunstância, quer pela atitude agressiva e furiosa de José Saramago. Há sempre uma farpa afiada com que espicaçar alguém, provavelmente a sua Pilar será o único ser imaculado e incólume, aqui ganha aos pontos a Lobo Antunes. Qualquer mulher aprecia este amor maior ostentado em praça pública como grinalda da vida em comum.
Contudo, nem só pela atitude se distinguem. Existe um exército armado de palavras e argumentos, leitores e seguidores fervorosos que abraçam a causa de cada um dos escribas como se escolhessem lugares e adversários no campo de batalha ou armas num duelo A baioneta saramaguiana ou o florete lobo-antunino? Estes séquitos são incapazes de olhar apenas a escrita, que saudades dos tempos em que os escritores apenas escreviam e apareciam esporadicamente para uma sessão de autógrafos pontual, e bebem as peroradelas de cada um dos escritores grandes da contemporaneidade, como se de palavra benta se tratasse.
Percebi, pois, que os amantes da literatura portuguesa se dividiam nestes dois grupos armados, quando um dia alguém se admirou profundamente por eu gostar de António Lobo Antunes e de José Saramago, da escrita bem entendido, dispenso-os aos dois em pessoa. Até esse dia não me tinha passado pela cabeça que a literatura fosse composta por princípios activos incompatíveis - que ingénua - capazes de provocar reacções adversas caso combinados ou tomados em conjunto. Se há fenómenos que não entendo é a contenda que opõe estas duas espécies de leitores aficionados: saramaguianos e lobo-antuninos, duas castas aguerridas e belicosas capazes de disparar argumentos se e quando cada um dos dois lança um livro ou sempre que um dos dois faz uma aparição pública e larga palavras como quem atira pedras. Eu, por mim, fico-me apenas pelos livros, a maneira única que conheço de amar a literatura, o resto, como diria António Lobo Antunes em relação ao Nobel, é bullshit.
Fui repescar este texto a propósito de uma conversa com um amigo do liceu sobre Lobo-Antunes e Saramago. Aqui fica mais uma vez.
imagem: Richard Baumgart, "The Writer"