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terça-feira, 13 de março de 2007

Vida leva eu

A tarde aconchegava-se no regaço da noite. Entre cariocas e turistas, caipirinhas saboreadas à porta dos bares ou nas janelas para o outro lado do casario encavalitado, e souvenirs acabados de adquirir nas lojas para o efeito, um bulício miudinho instalava-se em Santa Tereza. A hora anunciava o regresso.
Do outro lado da rua, numa pequena praça, um táxi largava turistas e de turistas se havia de ocupar de novo, quando atravessámos a rua e lhe pedimos que nos levasse ladeiras abaixo até Ipanema na Zona Sul. O trajecto escolhido seria um pouco mais longo, mas certamente com menos trânsito. Confiar em taxistas pode ser um risco, mas pode também abrir janelas do desconhecido.
Cosme Velho, no sopé do caminho, morro acima, que levaria ao Corcovado e que dias antes percorrêramos. Detive-me na paisagem, embrenhada na Mata Atlântica com o perfume da clorofila densa a entrar pela janela aberta do táxi. Lá dentro, a conversa começara a girar ao ritmo tranquilo da tarde que se escondia. Portugueses? Sim, portugueses. Sei que terei dito como era única aquela cidade, mesmo não me lembrando de o ter feito. Quem algum dia viu o Rio de Janeiro a seus pés jamais recuperará de tanta beleza e sei que teria no rosto o sorriso pateta de quem se deixa absorver por essa beleza insondável instalada na alma para ficar até ao último dia de memória. O taxista sorriu, feliz pelo elogio, habituado, contudo, a ele.
Seria Domingo e dia de Fla-Flu. O Maracanã estaria então a esvaziar-se após o clássico dos clássicos não muito longe dali. Mesmo quem não gosta de futebol sabe que Fla-Flu é Fla-Flu. No rádio, ainda os resquícios do jogo. O resultado? Um empate talvez. À saída do túnel Rebouças, a conversa soltara-se desinibida. E quais dos brasileiros estavam jogando em Portugal? Liedson, por exemplo. Não, esse não conheço não. Luisão? Sim, claro. E Felipão, o gaúcho teimoso que impôs sua vontade mas trouxe o título para casa em 2002, estava agora ao serviço de Portugal.
A tarde cada vez menos nítida e lá fora a brisa suave de Março, misturada com uma humidade perfumada e o linguajar doce desse português do Brasil, musical e carinhoso. E ao atravessarmos a cidade, de repente com a Lagoa Rodrigo de Freitas em frente, a conversa escorregou para a festa de recepção dos pentacampeões no Rio que o taxista relatava com emoção potenciada pela alma brasileira e a paixão pelo futebol. Isso aqui tava assim de gente… e continuava O senhor não conhece? Zeca Pagodinho? O nome não era de todo estranho, também a propósito da Copa do Mundo e da obstinação de Scolari ao preterir todos os afamados cantores brasileiros por um simples pagodeiro que pelo sonho ajudara a levar o país à vitória, surgira algures numa conversa passada. A melodia absolutamente desconhecida, porém. E o taxista, mais convincente que qualquer outro guia de viagem credenciado, cantou-nos Confesso que sou de origem pobre, meu coração é nobre, foi assim que deus me fez…Deixa a vida me levar. Vida leva eu. Deixa a vida me levar… Conhece agora? E continuava cantando Vida leva eu… Naquele táxi atravessando a cidade talhada entre morros, céu e mar, surgiu mais um hino para a banda sonora da cidade maravilhosa, sem o brilhantismo de outros compositores, igualmente genuíno e autêntico. Nada como deixar a vida nos levar.

sábado, 10 de março de 2007

Catlovers only

É dito e sabido, particularmente pelos amantes de gatos, que não são os donos que escolhem os gatos, mas os gatos que escolhem os donos. O Pirolito começou a rondar-nos a casa algures uns meros três meses depois de os seus donos oficiais o terem trazido para casa. Conta a minha mãe que certo dia, estando nós de férias e tendo vindo cá alimentar o nosso felino, lhe apareceu aquela bolinha de pêlo laranja. Confesso-me amante incondicional de gatos laranja. Todos os que conheci têm bom feitio, são dóceis e travaram comigo e eu com eles uma relação de afectividade intensa e única.
Os donos oficiais do Pirolito acharam-lhe muita piada, enquanto ele foi gatinho e, assim que lhes começou a marcar o território em virtude do seu inevitável amadurecimento, o gato foi literalmente escorraçado para a rua. Demo-nos conta disso quando, por exemplo, numas férias dos donos, reparámos que o animal tinha cá ficado e, conversando com os restantes vizinhos, felizmente gente sensata e boa, percebemos que ninguém tinha pedido a ninguém para alimentar o bichano. O bichano, porém, não se perdia, uma vez que, desde cedo, sabia decor e salteado o caminho aqui para casa e desde cedo sentiu que se algo lhe acontecesse este seria o seu paradeiro, passou parte dessas férias aqui no quintal, de resto, como muito mais tempo. Dias de sol e de chuva, o gato nunca mais deixou de rondar aqui a casa e quando íamos de férias, mesmo deixando-lhe comida e recados aos vizinhos e aos meus pais para o alimentarem, o gato emagrecia-nos. Contudo, era o primeiro a dar-nos as boas-vindas quando regressávamos. Vindo nem se sabe de onde, apareceria ligeirinho, mas miando desesperado. Quem gosta mais de ti, quem é? e ele obviamente sem entender o conteúdo das palavras que lhe dirigia mas sentindo o tom da voz, fechava os olhitos em sinal de contentamento e oferecia-me um ronron profundo.
Tirei-lhe pulgas e carraças, alimentámo-lo ao longo destes anos, limpei-lhe o focinho quando necessário, tratei-lhe das maleitas e sempre fui/fomos retribuída/os com um afecto imenso, ronronadelas, marradinhas e daquelas coisas que só os gatos fazem e que nós, seus amantes, entendemos. Sempre soube de que se algo acontecesse àquele gato, ele viria ter comigo e connosco em seu auxílio. Assim foi. Entenderão, portanto, caros amantes de gatos, porque chorei como uma madalena ontem quando, após tentativas infrutíferas de o salvar, o veterinário nos disse que não havia nada a fazer e eu e o Hélder tomámos a única decisão possível, e porque, depois de o lá termos deixado, continuei a chorar que nem uma madalena.
Hoje quando abri a portada do quarto pela manhã, ele não me miou, à espera de comida. Não nos rondou a casa, não nos mordiscou os dedos, sôfrego, enquanto lhe abríamos a saqueta de pedacinhos de atum. O Hélder não me disse Já dei comida ao Piro. Avistei apenas aquele que se dizia seu dono, cortando a relva, indiferente. Quem não é tocado pelos afectos provavelmente pouco lhe fará falta, o gato muito menos.
foto: Hélder

quarta-feira, 7 de março de 2007

Never make a saint of me

Agosto escaldante, ainda mais pela hora em que o sol olhava ufano bem lá do alto. Saltos altos e farpela a preceito, assim exigia o enlace matrimonial de uma colega de profissão. O noivo fez-se esperar para quebrar a tradição e desesperar os convidados. Da noiva não se ouviu queixume. Quando ela finalmente entrou na capela decorada com pequenos bouquets de rosas vermelhas e caminhou tranquila, os passos calculados e femininos, sobre a passadeira vermelha com centenas de pares de olhos, humedecidos alguns, todos focados e centrados na entrada da noiva, contudo, senti que não, assim não. Repeti a mim própria e avisei a minha progenitora a meu lado que jamais seria capaz de fazer semelhante. Não o casamento, ou talvez ele também, mas a atenção subitamente concentrada em mim, imaginando-me, pois, no lugar da noiva. O desconforto fazia antever que a única saída plausível, estivera eu naquela situação, seria mesmo a porta dos fundos, a da sacristia certamente. E a música, a música de igreja, talvez a marcha nupcial ou algo semelhante ao que habitualmente condiz com a situação. Foi aí, julgo, que terei ouvido Mick Jagger a sussurrar-me ao ouvido, com os lábios que se lhe conhece, como uma brisa entre o pescoço e o cabelo caído em cachos pelos ombros desnudados, um arrepio leve na espinha contrariando a canícula do zénite de Agosto. Os desígnios ocultos e misteriosos raramente são audíveis e perceptíveis a todos. E pelo ouvido, o sussurro, agora evidente, saint of me, you´ll never make a Saint of me. A melhor das opções desenhava-se à minha frente. Entrar pela basílica e, bem ao fundo, junto ao altar-mor, em vez das avé-marias e marchas nupciais no esplendor barroco do órgão bento, as pedras rolantes a esgalharem em todo o seu poder Saint of me com Jagger cantando-me por trás do vigário, surgindo de um lado e do outro da beatífica personagem they´ll never make a saint of you. Assim, sim.

terça-feira, 6 de março de 2007

Máximas

Que Carlos Tê é um dos mais inspirados letristas portugueses não me resta qualquer dúvida. Não será, pois, por acaso, que uma linha de uma canção na voz de Rui Veloso me acompanha como se de uma máxima de vida se tratasse. É certo que os opostos se atraem, mas certo é também que, mais tarde ou mais cedo, se consumirão no fogo que os opõe. O coração é um felino indomável e voluntarioso. Encarregar-se-á de unir almas menos opostas. Acredito por isso que não se ama alguém que não ouve a mesma canção.



Da Festa da Música aqui

segunda-feira, 5 de março de 2007

Fat bottomed girls

E na sequência desta aula, achei por bem, não deixar os meus alunos na ignorância total e da minha parquíssima colecção de livros dedicados à arte, retirei um da Taschen comprado pela módica quantia de € 2.99 em saldo, numa grande superfície aqui da terra vizinha, e levei-lho na aula seguinte. Juntei-lhe um outro de Botero, uma vez que, iniciando uma sub-unidade sobre a imagem do corpo e hábitos alimentares, não me pareceu mal utilizar uma das afanadinhas imagens femininas para destruir o estereótipo e, a partir dali, entrarmos no tema propriamente dito.
Ficaram felizes e agarraram com sofreguidão o livro do Warhol, já sabiam em linhas muito breves de quem se tratava. Quando chegados ao livro do Botero, uns Ahs e Ohs saíam em catadupa das bocas arredondadas e olhos arregalados. Mantive-me tranquila e fui-os observando. Ai que horror, setora, que gordos, ainda digo eu que sou gorda e a outra mostra aí… Olha aqui, como é que esta podia ser bailarina? Uma respondeu Os gordos tem muita flexibilidade… Ai que feios, olha aqui os padres… e o Papa uma disse Os padres ainda se compreende, eram gordos… E o Jesus? Até o Jesus era gordo?! Lá teci umas brevíssimas considerações acerca das características de Fernando Botero, que a representação não era retratação naturalista e fiel da realidade. A M. não quis saber, absorta que estava nas formas voluptuosas, e retorquiu Então, mas ele só tinha modelos gordos? Gordos e feios? Eram todas obesas então? Fiquei até assustada. As mulheres de Modigliani seriam todas dignas de rinoplastias, as de Rubens necessitadas de lipoaspiração e aumento mamário, as de Picasso nem o Pitanguy lhes valia, as de Hopper só três lamelas de Prozac e sessões ininterruptas de solário, e quanto ao David de Michelangelo, enfim, bem podiam ter arranjado alguém mais compostinho, que aquele xs abaixo do umbigo não é coisa que se apresente. Estes artistas, realmente.


imagem: Fernando Botero, Pareja bailando, 1987

sábado, 3 de março de 2007

Warhol? Who the f*** is Warhol?

Foi isto há uns dias, enquanto escrevíamos a data e o sumário no quadro. Vinte e dois de Fevereiro marcava o calendário e, por me ter lembrado também em virtude disto, que vinte anos passavam sobre a morte de Andy Warhol e, acima de tudo, por se tratar de uma turma de Artes, resolvi perguntar-lhes acerca da efeméride. Não era esperado que detivessem na memória as datas de nascimento e morte de todos os artistas plásticos, apenas por serem alunos de artes, claro está, mas nada melhor para matar aqueles instantes do que encetar uma conversa acerca do que teoricamente interessaria estes alunos: a vida e obra de quem marcou um tempo. O esperado aconteceu. Ninguém sabia. Comecei então por dar-lhes dicas. Nada. Depois pedi-lhes só que mencionassem artistas plásticos do século XX que se tivessem celebrizado nos anos sessenta. Uma alvitrou Ah, aquele dos bigodes? Não me lembro de algum dia ter visto Warhol de bigode e percebi claramente que era uma alusão a Salvador Dali. Tinha sido mencionado numa aula anterior. Não, esse também não.
Sem a disciplina de História de Arte como obrigatória no currículo, os alunos são deixados ao abandono no que diz respeito à formação global das áreas de estudos que escolheram e, foi com enorme surpresa que, logo no início do ano lectivo, verifiquei que estes pobres alunos estão absolutamente a leste no que respeita à história da arte em geral e contemporânea em particular. Desconfio que mesmo Da Vinci só conhecem através do Código, Vermeer e Frida Kahlo pelos filmes e nem todos.
Lá ia insistindo, mas nomes não saíam, um, um apenas e de repente olharam-me como se em mim estivesse a salvação, implorando Ó setora diga lá... Insisti Vá, digam lá vocês nomes de artistas plásticos famosos do século XX. Quem é que conhecem? De novo nem mais um nome e o pedido Diga lá setora… Cedi, pois claro, não se tratava de um braço de ferro, apenas uma forma de iniciar tranquilamente a aula. Acredito que se não o tivesse feito, teríamos permanecido ali os restantes oitenta minutos em busca de uma referência inexistente naquelas vidas, de resto, o Inglês esperava-nos. Andy Warhol disse. Faz hoje vinte anos que morreu Andy Warhol. Nos rostos intrigados, nas expressões interrogativas e sobrancelhas desconfiadas, como se eu falasse uma língua estranha e incompreensível, eu decifrava uma pergunta em uníssono daquelas vinte almas inocentes Warhol? Who the f*** is Warhol?


imagem: Andy Warhol, Self-Portrait.

sexta-feira, 2 de março de 2007

The most excellent and lamentable history


Juliet: How cam´st thou hither, tell me, and wherefore?
The orchard walls are high and hard to climb

Romeo: With love´s light wings did I o´erperch these walls,
For stony limits cannot hold love out


William Shakespeare, Romeo and Juliet
Verona
foto: minha

quinta-feira, 1 de março de 2007

Estranho país

Por outros caminhos que não os habituais me levou aquele estranho dia de Fevereiro. Paulatinamente com o dia a esconder-se, percorri caminhos que me levariam a um fim de dia previsivelmente pouco risonho. A noite anunciava-se, luz havia, no entanto, suficiente para que do meu lado direito, pudesse observar sem dificuldade, também em virtude do trânsito, que numa via secundária escorregava ao ritmo do entardecer, calmo e temperado, um cartaz gigantesco com os tão anunciados dez melhores portugueses de sempre, eleitos pelos portugueses de hoje. O nariz aquilino, os olhos escuros, a expressão austera e sombria, a imagem a preto e branco, deixava inequívoco aquilo que tenho tentado esconder de mim própria, que uma parte dos portugueses contemporâneos escolhe entre os dez melhores da sua história aquele que durante quase cinco décadas os silenciou. Estranho país, este que elege entre os dez melhores o seu ditador.

Things gonna change

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2007

Pero si un atardecer
las gardenias de mi amor se mueren
es porque han adivinado
que tu amor se ha marchitado
porque existe otro querer.

terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

Com flores e livros

E os olhos grandes no regaço, as pernas cruzadas sobre a cama, junto a uma janela que se sabe ter Lisboa lá fora, de Lisboa nada se vê, porém. A cama num canto da enfermaria. Em redor, pacientes bem mais idosas, aparentemente bem mais enfermas, a memória que se me resvalou sem que lhe pudesse valer, sem que me pudesse valer a mim própria, de novo a vontade de dizer o que já não tem sentido, Vá Papá, anda, põe-te bom para irmos a Viseu. Passou esse tempo. Transporto-o apenas comigo na languidez destes dias sem fim.
E os olhos que se riram à minha entrada, duas cabeças que se voltaram Olha a senhora professora! e a J., feliz por me ver, ergueu-se um pouco mais na cama e beijou-me com um sorriso como poucos. Estendi-lhe a gerbéria laranja, mesmo sabendo que não poderia ficar com ela. De novo o sorriso, de novo, ó setora, não era preciso e depois o livro, um dos meus preferidos, para que matasse o tempo inútil naquela enfermaria Ó setora, mais coisas, setora? Desembrulhou o livro com cuidado e carinho. Virou-o e, com atenção, foi lendo as letras na contra-capa. De longe, eu via apenas os olhos de Chico Buarque lá no cantinho inferior esquerdo. E depois a conversa de circunstância Ai, senhora professora, isto para mim foi uma facada no peito... disse a mulher levando a mão ao dito. A senhora professora lá tentou acalmar a histeria despropositada da mulher Mas, pronto, agora já se sabe o que é… e o padrasto Ah, pois, mas é para toda a vida, já viu?
A J. alheou-se temporariamente da conversa idiota e manuseava o livro que eu lhe oferecera com cuidado, atenta e curiosa. Acrescentei Eu já tinha reparado que a J. estava muito magrinha e o padrasto Sabe o que é? Mania das dietas é o que é… Esbocei um sorriso tão inane como a conversa daqueles dois, acrescentando que hoje em dia a investigação na área da diabetes já está muito avançada e que se prevê a cura. A mãe rejubilou Ai, senhora professora, ainda bem que diz isso… Mas sabe ela já andava mal, mas é teimosa… sorri-me no limite da paciência, Sabe que um teimoso nunca teima sozinho… Ah pois isso é verdade, disse a mulher. Sabe deus, alá e jah o que engoli para não dizer àqueles dois que a J. não precisa de remoques e recriminações, que não ficou diabética por vontade própria. Nestas idades é normal a teimosia, adiantei e depois a voz eriçou-se-me sem controlo mas olhe que tem aqui uma filha de ouro, ajuizada, boa aluna… a mãe concordou Ai lá isso é verdade… e mais uma vez a necessidade de engolir palavras perante tamanha hipocrisia da mãe.
A J. continuava semi ausente. Oscilava entre o bouquet singelo e o livro no regaço. Soltou Tão giro, setora!, tocando com o polegar e o indicador numa das verduras que acompanhava a gerbéria São as minhas flores preferidas... Quem sabe, sabe, disse-lhe brincando. E agora vou-me, linda. Um beijo grande e um abraço bem apertadinho. Que tudo na vida da J. se pudesse resolver com flores e livros e nada lhe faltaria.

domingo, 25 de fevereiro de 2007

No direction home

Fevereiro não foi muito cortês com os visitantes. Frio e dias cinzentos intercalados com umas réstias de sol azul.
Quando saímos do Guggenheim, já de tarde, caíam uns farrapos de neve. Alguns dos turistas lusos rejubilaram e eu lá me conformei, sabido que é que a neve e o frio seriam liminarmente eliminados da minha existência e do próprio mundo, se o criador me tivesse consultado naqueles tais seis dias.
Dali até ao hotel distavam ainda alguns quarteirões, muitos, por acaso, nada que não se calcorreasse com satisfação, caso as condições atmosféricas não fossem tão adversas. Quinta Avenida abaixo, por exemplo, e depois umas cortadas à direita e estaríamos no hotel. As cidades querem-se corridas, calcorreadas, sentidas nas solas dos pés, arrastados pelos quilómetros, percorridos na curiosidade de ir sempre mais além, ver mais, sentir mais. Assim é com a cidade que nunca dorme, evidentemente. Atravessar o Central Park, virar à esquerda e depois seguir em frente seria outra das possibilidades. Não com o friozinho cortante na nuca, o nariz a pingar da humidade, os olhos lacrimejantes do vento e o entardecer a aproximar-se vertiginosamente Que fazer então? Apanhar um táxi pois.
Lá me entalei na parte de trás do amarelo, com sacos do Guggenheim pelo meio e a chuva a bater no vidro. Um dos presentes assume o controle da situação. Saca do seu inglês bem polido, aprendido a preceito, sem mácula, ausente de sotaque ou entoação que lhe denunciasse a proveniência lusa e indica com exactidão ruas e avenidas. E lá fomos rua acima. Era final de tarde e o trânsito acumulava-se nas artérias da Big Apple. Caía agora uma morrinha suave que trazia o crepúsculo anunciado.
O taxista não era rapaz de grandes falas. Não encontrei nunca nenhum em Nova Iorque que o fosse. Os restantes quatro ocupantes mantinham um silêncio respeitador, não fossem incomodar. A noite descia pouco a pouco sobre a cidade. Luzes aqui e ali que se acendiam, o néon ainda mais estridente, os faróis dos automóveis em trânsito mais rubros pelo contraste com o escurecer. O trajecto, que se sabia não tão longe, alongava-se sem explicação na direcção oposta. Não tardaria muito e estaríamos no Harlem, já não tão perigoso aos dias deste episódio mas ainda assim não era, de todo, o nosso destino.
Não, aquilo não estava bem. Um dos ocupantes do yellow cab, também ele um rapaz tido por si próprio como douto nestes linguajares anglófonos, inquiriu o taxista, afinal onde íamos nós? Uma vez dadas as coordenadas da zona da cidade onde o hotel se situava, num inglês menos sofisticado do segundo douto, o taxista soltou uma expressão de surpresa. Oh! Entendera algo diferente da primeira vez. Afinal, não é todos os dias que dentro de um yellow cab em Nova Iorque se podem praticar os numerais ordinais a que as ruas e avenidas nos obrigam e fazer uso de um inglês oxfordiano, directamente saído de uma personagem de uma série britânica, provavelmente um gentleman de stiff upper lip. Soa bem e é bonito, de nada nos servirá, contudo, se ninguém nos entender. Não serviu naquele dia.
Falar uma mesma língua é também partilhar as linguagens subjacentes a essa mesma língua. Havia alguém dentro daquele táxi que não sabia disto. Houve alguém dentro daquele táxi que, sabendo disso, refilou incessantemente pelas voltas desnecessárias e pelo taxímetro bulímico em hora de ponta na cidade que nunca dorme. E houve alguém dentro daquele táxi que, entalada no lugar do meio, tudo observou para que a estória pudesse ser contada. Há voltas que nunca são dadas em vão.

sábado, 24 de fevereiro de 2007

Dia de luz

A Gláucia foi das primeiras pessoas a comentar neste blogue no tempo em que ainda nem sequer a minha mãe sabia da sua existência. Imberbe, tímido e uivando de dor assim começou este registo da ausência. Em comum partilhámos essa mesma ausência e sempre achei que nossos pais nos uniram para que juntas fôssemos mais fortes e nos amparássemos na travessia desta fase das nossas vidas, uma ponte de palavras e imagens sobre o caudal tumultuoso desse rio de saudade.
Ontem não havia mar a nos separar e finalmente pudemos dar aquele abraço apertado, aquele beijo carinhoso, partilhar risada e conversa, ver como é linda e doce a Clarinha, falar desse Portugal que eu acho tão direitão, designação que aprendi com elas, falar de cá e do Brasil, de livros e autores, do José Luis Peixoto, omnipresente, dessa língua que nos une, e da sobremesa que faz as delícias da Tuca, da Gláucia e do Rogério: arroz doce. Descobri inclusive que Lisboa tem morros, graças à Tuca, o que me deixou mais perto do meu Brasil e mudou a perspectiva dessa cidade de que ambas tanto gostamos. Ontem tive um dos encontros mais emocionantes de toda a minha vida, ontem foi tão intenso que não cabe nestas palavras. Obrigada a vocês.

foto: Rogério

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

Porta da frente

Pensava para consigo que entrar em Veneza por terra, pela estação de caminho-de-ferro, é como entrar num palácio pela porta de trás e que jamais alguém se deveria abeirar da mais inacreditável das cidades de outro modo que não fosse este, por barco, por mar alto.

Thomas Mann, Morte em Veneza
foto: minha

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Back

Poucos são os instantes da vida mais libertadores do que esses em que um avião sobe em direcção ao céu, diz Alain de Botton em A Arte de Viajar. Nada mais certo. Para trás ficaram o novo Estatuto da Carreira Docente, a escola, o referendo à Interrupção Voluntária da Gravidez, Fátima Felgueiras, enfim, o país todo.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2007

Livros com cidades

E de regresso à estante está Perseguido de Luiz Alfredo Garcia-Roza, após uma passagem breve pela minha mesa-de-cabeceira. Finda a última página de mais um romance policial, termina também um périplo pela Cidade Maravilhosa. Há quem defenda que o delegado Espinosa da 12º DP do Rio de Janeiro, bibliófilo que não dispensa uma ida ocasional aos sebos, a personagem central em torno da qual se desenvolvem seis dos seus sete policiais, não é um grande detective na senda dos clássicos, que os policiais de Garcia-Roza carecem de mais densidade e suspense, que é óbvio o desfecho e que o criminoso, assim é nos policiais, se torna evidente desde muito cedo na trama. Que seja.
Na verdade, há algo inscrito naquelas páginas que perdurará muito após a leitura da última palavra, algo que deixa o leitor inquieto, ofegante, tranquilo, descontraído ou deleitado, consoante percorra, nos passos das várias personagens, os trajectos descritos com exactidão extrema, passíveis de serem localizados em qualquer mapa do Rio de Janeiro.
Ruas, praças e morros, Copacabana e o Bairro Peixoto, o Calçadão e o mar de Ipanema, Zona Sul e Zona Norte, fundem-se no momento em que o livro se abre como o Atlântico e as personagens nos carregam, nos levam lado a lado, secretamente sussurrando-nos para embarcar na viagem encetada. Há uns dias, por exemplo, fiquei extenuada depois da corrida no Parque do Flamengo com Berenice, nada que a vista da Baía de Guanabara não consiga compensar. Certo é que Augustão me cansara também nas ladeiras de Salvador e me deixara expectante nos terreiros de candomblé. Intrépidos e incansáveis, estes detectives...
Nos livros com cidades existem roteiros ocultos emergentes do calcorrear das personagens pelos recantos mais recônditos das urbes, respeitando os seus ritmos únicos, e que, ora fugindo, ora flanando nos revelam a alma e a intimidade ausente nos áridos guias de viagens.
foto: minha

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

terça-feira, 13 de fevereiro de 2007

Dia

Mergulho no dia como em mar ou seda
Dia passado comigo e com a casa
Perpassa pelo ar um gesto de asa
Apesar de tanta dor e tanta perda



Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Finalmente

E pronto, guardem os disparates e as cartas, recolham as réplicas de fetos, parem de ir cuscar as ecografias alheias e ide às vossas vidinhas. Por agora chega.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2007

Insanos e outros imbecis

Tivesse eu o humor suficiente para lidar com a situação e certamente seria capaz de escrever um livro inteiro com as aberrações da comandita do NÃO. Por exemplo, a carta, que foi metida nas mochilas das crianças de um jardim de infância em Setúbal, é um testemunho importante das pérolas com que o NÃO tem colorido o país. Diz-se, algures, diz o filho por nascer à mãe "Por acaso pensavas comprar uma máquina de lavar ou um aspirador, com os gastos que talvez eu te iria causar?" Para a próxima vez que precisar de comprar uma máquina de lavar ou um aspirador talvez deva ir a correr fazer um filho. É que tem tudo a ver.

domingo, 28 de janeiro de 2007

Procura-se

... a minha vontade de escrever.
É voluntariosa,
fugidia com um gato,
desobediente como os felinos,
raramente dá pelo nome.
A última vez que foi vista,
estava decidida à porta da palavra
saudade.
Suspeita-se que terá entrado
e
ao descer os degraus até à letra e
perdeu-se
no
labirinto das palavras por escrever.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

Numa sala de professores perto de si

Um colega folheava o Estatuto da Carreira Docente já publicado no Diário da República, de resto, era mesmo esse pedaço do diário desta república. Em conversa de circunstância, acrescentei algo de que nem sequer me lembro com exactidão, mas que seria a pergunta retórica em torno das alterações. Um outro atirou recriminador que, eu e o primeiro, estávamos cheios de pressa para que o documento entrasse em vigor. Fazer o quê? O Estatuto da Carreira Docente foi aprovado na Assembleia da República a dezanove deste mês, bom seria que a sua entrada em vigor dependesse da leitura atenta de um colega. Mau grado greves e protestos aquilo vai ditar o futuro de toda a classe docente e, portanto, o mínimo que se pode fazer, é informarmo-nos sobre o que vai agora reger as nossas vidas. Perante este argumento, bem mais breve do que aqui relato, o indignado agarrara-se agora ao argumento de que tal era tarefa da secretaria. Acrescentei que nós, professores, devemos estar informados, independentemente da secretaria, e se, por um acaso, a secretaria se enganasse? facto não muito comum na da escola a que estou ligada até ao fim dos meus dias, para o bem e para o mal, mas que ocorre com alguma frequência noutros estabelecimentos de ensino. O leitor atento do ECD* reiterou que queria estar informado, eu, obviamente, concordei e o outro continuou destilando ódios à Ministra da Educação e sei lá mais o quê, recriminando-nos subtilmente, pelo caminho, pela leitura atenta do ECD, como se tal implicasse a concordância e anuência com o conteúdo do documento em questão. Livrem-se, pois, de ler o ECD, nunca se sabe se não vão ser acusados de traição e arder numa qualquer fogueira ateada com cópias do Estatuto da Carreira Docente.
* Estatuto da Carreira Docente

domingo, 21 de janeiro de 2007

Prevendo o futuro

Quero ir de burro

Com coisas destas é claro que quero ir de burro.

Fim

Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.

Mário de Sá Carneiro

sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Lembrete

A evitar nos próximos tempos:

1. beatas
2. ratos de sacristia
3. papa-hóstias
4. padres
5. diáconos
6. acólitos
7. falsos moralistas
8. conselheiros matrimoniais
9. o perímetro da Basílica
10. o pasquim cá da terra
11. a brigada do NÃO.
*
* a ordem é arbitrária, pois claro.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Avisos do mundo

ou a sorte de ter uma máquina fotográfica sempre à mão...

Coroa Vermelha, Porto Seguro, Bahia
foto: minha

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Ide com o Carlos Sousa ao deserto

Admito. Sou uma chata, esquisita, quezilenta, miudinha, minuciosa, meticulosa, escrupulosa, cuidadosa em tudo o que possa implicar a minha assinatura. Leio, releio, trileio, quadrileio, bisbilhoto as entrelinhas, cusco as letrinhas miúdas, chamo palas cláusulas escondidas, verifico datas, prazos, nomes, vírgulas e asteriscos. Raramente confio em outrem no que respeita a assinar por baixo. Nunca mesmo. Portanto, o suporte digital nunca me deixou grandemente à-vontade. Recusei-me terminantemente a emprestar o meu livro no dito suporte, também por não confiar nas intenções dos subitamente interessados leitores, mas na era da Informação não é fácil mantermo-nos exactamente fiéis a esta premissa: ou confiamos ou não confiamos. Às vezes não confiamos, mas não temos outro remédio e, num mundo onde cada um é rei e senhor da sua sabedoria e raramente permeável a críticas ou reparos, assim é no meu meio profissional, não há grande alternativa. Que havia eu de fazer? Exigir ver uma cópia em papel ou confiar? Pois bem, confiei, até ontem ter verificado que ao meu texto inicial foram acrescentados uns arrebiques e enfeites que até podem soar bem ao autor dos mesmos, mas são falsos, disparatados, desonestos e incoerentes com o restante projecto. É claro que me pareceu mal. É claro que mesmo depois de confrontado o douto ser, que ao que parece é tão douto que de tudo entende, mesmo de uma disciplina que não lhe diz rigorosamente respeito, e confessada a proeza, continuo com isto a remoer-me o juízo. Continuarei, pois, a ser chata, esquisita, quezilenta, miudinha, minuciosa, meticulosa, escrupulosa, cuidadosa, mesmo que de nada me tenha servido.

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Do que não está bem

Eu e o meu pai mantínhamos debates incessantes em torno da língua portuguesa. Nem sempre concordávamos e ele, pouco permeável à mudança, mantinha-se irredutivelmente convicto de que a última revisão da língua portuguesa acontecera em 1945, salvo erro. Portanto, tudo o que fosse dicionário recente mais não era do que isso mesmo, um dicionário recente. Para o meu pai, o dicionário era um mero instrumento de trabalho, nem sempre fiável. Discordámos em torno do stress, acusou-me sem piedade de ter escrito bouquet com acento circunflexo e sem t no final, guerra da qual saí vencedora, e jamais admitiria a libertinagem em torno da língua de Camões. Dou por mim a pensar, amiúde, quem iria sobreviver agora à sua temerária luta contra a TLEBS e todos os dias o vejo de canhenhos na mão à minha espera, pela hora do almoço, dizendo-me Vês? Eu não te dizia? Isso não existe! Querem ser excêntricos e dá-lhes para isto. Ai, Santo Deus!
Era um respeitador exemplar da propriedade alheia, mas no que respeitava à revisão de textos literários e se, após consultas variadas do autor, tal lhe fosse aceite, o que sem excepção acontecia, o meu pai ia pintando o texto com a sua sensibilidade. Muitas vezes dava por ele com os textos no colo, lápis na mão a afirmar Isto não está bem! Telefonadela para cá, consulta para lá, o autor dos livros achava sempre tudo muito bem, ele não teria feito melhor, não o fez, de resto, e as emendas e sugestões foram tomando forma no papel impresso. Palmadinhas nas costas, elogios pungentes, foi maioritariamente o que recebeu, é sabido que a generosidade é um dom alheio ao tecido empresarial português. Sempre lhe disse que o autor devia colocá-lo no livro como co-autor. O meu pai ria-se apenas. Despojado, como sempre, ter-lhe-ão chegado os elogios.
Quando começou a rever os meus textos, assinámos um pacto: nada de modificar o texto, mesmo com a minha permissão, se não teria um outro livro escrito. Assim foi. O meu pai nunca me alterou rigorosamente nada, apenas corrigiu erros e ajudou-me nas vírgulas. Se estiver a ler este blogue, já terá colocado inúmeras e sei que segreda à
Ana, de vez em quando, como desta vez.
Hoje pediram-me para dar uma opinião sobre um texto. Chegou-me por mail. Li-o e reli-o, coloquei-lhe asteriscos e observações. Mas ainda assim, algo não batia certo. Dei por mim junto ao teclado a acrescentar pontos e conjunções, uma ou outra informação, a questionar o estilo, a pensar Isto não está bem! Liguei ao autor e disse-lhe Isto não está bem, o autor disse-me para fazer as alterações a contento e fiquei a pensar que não está bem. Não ter o meu querido pai para lhe contar tudo isto não está bem.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2007

I still have a dream today

And so even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream. It is a dream deeply rooted in the American dream.

I have a dream that one day this nation will rise up and live out the true meaning of its creed: "We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal."

I have a dream that one day on the red hills of Georgia, the sons of former slaves and the sons of former slave owners will be able to sit down together at the table of brotherhood.

I have a dream that one day even the state of Mississippi, a state sweltering with the heat of injustice, sweltering with the heat of oppression, will be transformed into an oasis of freedom and justice.

I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character.

I have a dream today!

Martin Luther King

Para que o tempo não apague a memória,
no dia em que completaria 78 anos.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Devia ser proibido

Devia ser proibido os homens deambularem por lojas de roupa interior feminina ao mesmo tempo das mulheres. Isto porque quando um destes dias repousei a peça de roupa interior que tencionava adquirir junto à caixa registadora, fui contemplada com um olhar perscrutador de um homem jovem. Não sou mulher de pudores excessivos. Tenho alguma inibição, contudo, em alardear o que visto por baixo do que se vê a olho nu. Estendo a roupa interior sempre resguardada dos olhares dos vizinhos, sempre num pequeno estendal de resina e sempre, mas sempre sempre com toalhas ou roupa de maior envergadura à frente. Nas lojas de roupa interior não há estratégia que me valha.
Não sei, mas por exemplo, preferia não saber que o meu vizinho usa boxeurs coleantes ou que a vizinha da minha mãe usa um cuecão de dimensões gigantescas, além de serem brancos e terem os elásticos lassos e distendidos, relaxados, como se diria aqui na região saloia. Digam-me, há necessidade? Isto ficou ainda pior quando um dos meus alunos passou na rua e olhando para mim esboçou um Olá Setora, para logo de seguida se esbarrar com o cuecão de dimensões homéricas da mulher bem virado para a rua e oscilando ao vento, totalmente despudorado e desavergonhado, dado aos olhares passeantes, do mais desprevenido ao mais inquisitivo. O rapaz não se conteve e com ele o outro que o acompanhava, também meu aluno. Nunca mais olhei para a mulher da mesma forma e, se, ou quando, de repente, me cruzo com ela, algo que não acontece frequentemente, viro os olhos e evito o contacto, Cruzes credo! Há necessidade de usar cuecas com os elásticos bambos? Uma ocasião estive para avisá-la Não estenda as cuecas! A Protecção Civil avisou que vem aí uma ventania dos diabos… e isto porque se lhes dá o vento sabe-se lá onde irão parar.
Não me senti à vontade na loja de lingerie, confesso. Anteriormente tinha sido literalmente caçada de tanga na mão por um homem teoricamente respeitável, não fosse ter fixado a peça íntima que eu tinha nas mãos e ter ao lado a mulher passeando loja fora, penduradas num cabide pelas pontas, umas cuecas azul-bebé. Devia ser proibido, pois, devia ser proibido os homens deambularem por lojas de roupa interior feminina ao mesmo tempo das mulheres.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

Andanças

Isto também não me tem deixado muito tempo para as postas aqui no sítio do costume.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Não mesmo

É sabido que estou em rota de colisão com a Igreja Católica de algum tempo a esta parte. Não me lembro sequer de quando foi a última vez em que entrei numa igreja e ouvi uma homilia interessante, cordata e verdadeiramente cristã. Tenho dias em que me arrependo de me ter casado pela igreja, não que me tenha causado mossa, mas, na verdade, não me revejo no que fazem.
Devia ter desconfiado quando o padre proibiu flores vermelhas e roupa que não fosse imaculada. Tivesse eu dado ouvidos ao diabinho que em mim habita e teria ido vestida de vermelho da cabeça aos pés, mas porque acredito que há gente que não vale a pena, mantive-me fiel a mim mesma, ao meu ainda namorado e pais. Divertido foi mesmo o CPM, Centro de Preparação para o Matrimónio, obrigatório para quem quer ser abençoado por Deus. Nesse tempo longínquo, eu e o Hélder aprendemos ensinamentos valiosíssimos. Sábados à noite, que isto da fé não se faz sem sofrer, e sermões de casais sobre a dificuldade da vida em comum. Sim, porque só se falou das dificuldades. E já agora, será que para aquelas mentes o casamento é uma coisa BOA? Difícil é certo mas que vale a pena, assim se amem e respeitem duas pessoas. Um desses serões foi passado com um casal a dar o seu testemunho. Tinham tido muitos problemas, porque o marido chegava à noite à cama e adormecia e a mulher, coitada, depois não tinha com quem falar e ficava amuada e ele tinha de a namorar muito, até um dia ela ter percebido algo verdadeiramente inaudito: o sono é biológico, não era de propósito que o homem se resvalava nos braços de Morfeu. O homem sorria-se e ela, como boa beata, matinha o ar seráfico. Foi digno de se ouvir, a intimidade da alcova assim desvelada. Acredito que quase tudo o que é descontextualizado soa a falso, ridículo e desajustado, logo, o casal não teria feito figuras tristes, se estivesse caladinho, uma vez que tal episódio só interessa a eles mesmos e, dado que não houve ironia nem comicidade, ficaram expostos ao ridículo com a soneira inveterada. Nem sei como o meu casamento teria sobrevivido, se não fosse tal pérola.
Saí uma vez de um casamento quando o padre advertiu que, quem só vai à missa ao Domingo, não podia comungar, isto com o ar castigador e acusador de sempre. Nem tal me passou pela cabeça. Ao contrário de muitas pessoas que por lá andam, tento respeitar os ensinamentos e, portanto, não comungo desde os meus dez anos de idade talvez, nem tenciono voltar a fazê-lo nunca mais. No funeral do meu pai, o diácono verborreou até mais não contra os meios de comunicação social. Muito a propósito, de resto, ainda mais se tivermos em conta que o Hélder é jornalista. Na missa do sexto mês, foi-nos pedido dinheiro para financiar os seminaristas, coitadinhos, assim como uns meses antes num baptizado. A última aventura foi quando em Dezembro fomos a um funeral e, vindo do nada, começou uma campanha descarada contra o aborto. Que tal respeitar a família enlutada e as restantes pessoas que acompanharam a pobre D. Silvina? E a D. Silvina? Umas palavrinhas sobre a senhora seriam simpáticas, não? Aproveitar uma ocasião para fazer uma outra coisa em proveito próprio é oportunismo e, portanto, muito duvidoso do ponto de vista de carácter e moral. Incomoda-me profundamente que todas as ocasiões sejam aproveitadas para falar do mesmo. Assim ninguém consegue decidir, mas afinal, assim percebo mais uma vez quem são, afinal, e decido.

domingo, 7 de janeiro de 2007

Argumentos

Para quem utiliza como argumento ao Não ao aborto que, se a mãe de Mozart, Beethoven e outros génios mais, deles tivessem abortado, o mundo estaria mais pobre, resta-me devolver o argumento e dizer que, se a mãe da Joana, da Sara, do Daniel, e da Vanessa o tivessem feito, os inocentes teriam sido poupados ao sofrimento hediondo.

Vida boa

foto: minha

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Dos males que vêm por bem

Nestes primeiros dias do ano houve uma notícia que muito me agradou. Primeiro por uma questão de justiça, segundo, pelas consequências da dita. Foi, pois, com regozijo que ouvi, enquanto tomava o pequeno-almoço há uns dois dias, que os jogadores de futebol iriam pagar impostos como os restantes mortais que o fazem, e que, insatisfeitos com este facto, iriam fazer greve, também como alguns mortais que também a fazem. Não sou amante de futebol. Confesso que vibrei com o Euro 2004, com o Mundial idem, como se pode atestar neste blogue, que até possuo uma T-shirt com a denominação do país, com as cores do mesmo, umas chinelas de uma popular marca brasileira, que elegi o Ricardo como meu favorito, que lamento que o Cristiano Ronaldo não se desenvencilhe da camisola mais vezes, que estranhei ao ver o Figo depilado, que Felipão tem a minha consideração, e que, obviamente, sugeriria o Gilberto Madaíl uma outra coloração de cabelo menos exuberante. Os parcos conhecimentos de futebol não me permitem aprofundar esta já de si distante e superficial relação com o desporto-rei. A parte boa, mas mesmo boa da greve, assim a vi, é que ficaria privada e aliviada de ver futebol ao fim-de-semana, isto se não houvesse uma panóplia de campeonatos a ter lugar por essa Europa fora e a quase certeza de que há sempre um jogo desconhecido de futebol que espera por nós algures num canal de televisão. Pelo menos o penteado de Paulo Bento deixaria de me ensombrar o fim-de-semana, ida de vez a tão famosa tranquilidade. O que me preocupa é que hoje é sexta-feira, véspera de Sábado, antevéspera de Domingo e, até agora, nem mais uma palavra soou, uminha que fosse, voltadas que estão as atenções para outras preocupações do universo futebolístico nacional. Assim não há tranquilidade que valha.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

O Botas

Eis o que restou da estátua de Ferenc Münnich, Ministro das Forças Armadas, do Interior e de Estado húngaro antes de 1989. Em Março de 1990 a estátua foi pintada de vermelho e decepada por um movimento liderado por György Krassó, regressado de Londres. Nem tudo tem pés e cabeça, alguns só têm mesmo pés.
Parque das Estátuas
Budapeste
Foto: minha

terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Straight from the heart

Na conversa com os outros obtemos, por vezes, o retorno de quem somos e de quem nos tornámos. Nada disto me foi imediatamente perceptível. Apenas na verbalização e, na necessidade de explicar quem era quem, é que me vi cheia de nomes inaceitáveis em qualquer conservatória do registo civil, apenas um ou outro o seriam. Na conversa com a minha mãe, tudo começou a tornar-se claro, particularmente quando ela, após um passeio neste blogue, me perguntava quem era esta/este ou aquela/aquele ou apenas comigo reiterava que A ou B eram muito simpáticas(os), me tinham escrito um comentário muito bonito ou, como várias vezes me fez notar, de resto, como faz nas relações ditas convencionais Tens lá um comentário de X ou Y, já lhe respondeste? Na verdade, a minha entrada na blogosfera veio traçar um novo padrão de relacionamentos que enriqueceram a minha vida e me ajudaram a suportar a perda. Por vós e para vós escrevo estas palavras e por vós e para vós aprendi a moderar as fases negras e sombrias. Com tanto carinho, o sol voltou a brilhar e, com ele, a certeza de que não estarei sozinha. Obrigada.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Sopa de brócos

Depois do excessos gastronómicos da época nada como uma sopinha para equilibrar a intemperança. Assim sendo, reuni o que havia em casa no intento de me deitar na confecção de algo inofensivo e saudável. Sopa, uma sopinha de legumes pareceu-me uma óptima opção. Descobri para meu gáudio um quarto de abóbora pequena, esquecido pela minha mãe num banco por baixo da mesa da cozinha. Esventrei a abóbora, esquartejei-a sobre a tábua de madeira e, ao metê-la na panela de pressão, juntei-lhe duas batatas mínimas, apenas para melhorar a textura, e uma cebola. Enquanto isto, lembrei-me de que umas verduras também para quebrar a monotonia alaranjada do puré de abóbora ficariam muito bem e, uma vez que ainda não eram oito horas, hora de encerramento da mercearia, fiz-me à estrada e em trinta segundos estávamos à porta da mercearia.
A mãe da dona estava já em processo muito adiantado de arrumação e limpeza do estabelecimento, apurei entretanto que estava a ser ajudada por uma das filhas, a irmã da dona, o que me deixou particularmente feliz. De há umas boas duas semanas a esta parte tinha deixado de ver a irmã da dona da mercearia no estabelecimento. Pior: há uma semana vi-a toda lampeira a sair de um carro, acompanhada por um homem, à porta da churrasqueira, isto em dia de semana e em horário de abertura do comércio. Nesse dia cheguei a casa pesarosa. Então, mas afinal? Foi-se embora? Deixou-me à míngua? Natralmente zangou-se com a irmã, isto porque algures ainda no Verão, tinham feito mudanças na mercearia e, quando elogiei as mudanças, a mulher perguntou Bocê gosta? Eu gosto! Ah, mas a patroa na gosta, sendo que a patroa era a irmã. Na gosta, diz c´assim na bende nada e abeirando-se das caixas de fruta começou a empilhar maçãs e tomates ó, tá a ber? Ela quer é assim… Suspeitei que houvesse ali uma querela que as opunha e muito sinceramente também não entendi a técnica de marketing da dona da mercearia. Que o estabelecimento está sempre cheio é uma evidência facilmente atestável, logo a dona é que sabe e parece saber muito bem.
Quando deixei de ver a irmã da dona na mercearia e comecei a ser atendida pela dona, sua irmã, suspeitei o pior. Comentei as minhas desconfianças com o Hélder e, inconformada com a falta da minha interlocutora preferida na mercearia, lá segui a minha vida. É sabido que as ausências me corroem a alma. Ora esta?! E agora com quem ia partilhar as minhas dores e falar disto ou disto? Mas que coisa, ir-se embora assim. Na verdade, senti-me algo abandonada. A ausência de um tu nas nossas vidas pode mudá-las significativamente, às vezes, irremediavelmente, e, de repente, vi todos os bons momentos passados na mercearia como algo arrumado definitivamente lá no passado. Não era justo. Agora felizmente todas estas cogitações tinham-se provado infundadas e a irmã da dona da mercearia, levemente mais magra, apresentava-se bem disposta à minha frente. Tinha tido uns problemas de saúde Bocê sabe lá as dores quê tenho… e agora estava à espera de uma TAC às costas pra ber o que éi mas felizmente tinha regressado ao seu local de trabalho. Confesso que fiquei algo envergonhada de mim própria. E se a mulher tivesse arranjado um emprego melhor? Um que lhe agradasse mais e lhe apagasse as dores? Se tivesse mudado de vida? Que direito tinha eu de a querer ali apenas para dois dedos de conversa esporádicos? Regressei ao que vinha, sacudindo a culpa para trás das costas. Ora bem, queria espinafres se faz favor… Espinafres, espinafres na tenho mas olhe só se for brócos… ó pá, venham de lá esses brócos e já agora um alho francês. É pa fazer junto? Não, não é para a sopa… Ah, ê nã sêi mas diz que junto é um espectáculo. Vim para casa tranquila e a sopinha de brócos soube-me pelo coração, acredito que mais por quem me vendeu do que por mérito próprio nas lides gastronómicas, apaziguada que estava com a ordem reposta na mercearia. Há gente que não nos pode faltar.

foto: minha

quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

Fiat lux

E pronto. Ainda não foi desta que me acorrentei aos portões da Basílica do Palácio. Deviam ser umas oito horas quando o Hélder me chamou Anda cá! anda ver isto! Quando cheguei à porta da rua, o inacreditável aconteceu. Luz. Tínhamos luz! Tínhamos luz na rua! A esta hora estarão a pensar que tem isso de extraordinário. No Portugal contemporâneo poucos serão os lugarejos que não tenham iluminação pública. Ele há a insularidade, ele há o profundistão, ele há o isolamento e a interioridade, mas aqui, a um terço do caminho entre o mar e a cidade de Ulisses, a iluminação pública não deu sinal de si durante quase três semanas, a segunda vez este Inverno. Temi pela vida das minhas bichanas. A vizinha do lado bem poderia ter aproveitado para inadvertidamente passar a ferro um dos seis gatos que possuímos, nós e os restantes vizinhos. Informou apenas que ia atropelando uma pessoa, o que ninguém estranhou, uma vez que conduz com a velocidade da Michelle Mouton pelas ruas da aldeia. Os telefonemas à EDP não se fizeram esperar, estou certa que ao ritmo de mais do que um por dia e, semana após semana, nada, nadica de nada, cada telefonema como se fosse o primeiro e não faltou uma certa dose de sobranceria e arrogância por parte de quem atendeu. No meu derradeiro telefonema, informei a senhora que me atendeu que percebia finalmente por que é que as pessoas se esganiçavam perante as câmaras de televisão, isto por outras palavras, e pelo meio informei-a que seguidamente iria apresentar queixa na DECO, o bicho-papão dos incompetentes deste país e a segurança dos consumidores. Não sei se foi pela visão assustadora de me ver aos gritos na TV, a solução plausível para o regresso da luz esgotadas todas as reclamações, ou acorrentada aos portões da Basílica, outra solução possível, apenas pelo medo da DECO ou pura coincidência, a verdade é que finalmente nos nasceu um sol na rua causador de estranheza e outros incómodos oftálmicos mediante as três semanas de trevas. Lux facta esd.
foto: Viseu
minha

terça-feira, 26 de dezembro de 2006

Do que é sabido

É sabido que sou uma amante indefectível do Brasil, que chorei ao avistar o Rio de Janeiro bem lá do alto, que sorrio até às orelhas quando me falam da Cidade Maravilhosa, que esperei muito para pôr pé no local de onde me acho, que gostaria de ter desfilado no Carnaval Carioca, que adoro caipirinha, que amo feijoada à Brasileira, que cá em casa se come farofa desde sempre e queijo com goiabada idem, que até o MCPelé a cantar Glamurosa me faz sorrir, que Maria Bethânia com o seu Reconvexo me faz chorar, que Fico Assim sem você de Adriana Calcanhotto é um hino ao amor dos meus pais, que da cintura para baixo faço jus às minhas raízes e ao estereótipo, que fico feliz por ainda em tempo de vida do meu pai ter ido ao Rio de Janeiro, que cada vez que venho do Brasil tenho vontade de voltar, que tenho um carinho maior do que estas palavras por quem me visita do outro lado do Atlântico, que a voz do Arnaldo Antunes me impressiona, que gosto seguir o rasto do Delegado Espinosa, que agradeço ao Avenalve por ambos e não só, à Gláucia ela sabe porquê e à Martha pelas visitas e palavras, que me perco por um feijãozinho tropeiro, que daria tudo para agora estar a beber uma água de coco numa dessas praias que me aquecem a alma, que dei por mim a ouvir Jorge Amado a ler em surdina Mar Morto quando me sentei no Maria de São Pedro bem de frente para a Baía de Todos os Santos, em Salvador, que ainda hei-de passar uma tarde em Itapoã com o Hélder, que Paraty é um dos desses lugares mágicos que dificilmente se deixam explicar por palavras, que no Bonfim repousará um fitinha vermelha atada num gradeamento de ferro, ainda na esperança da recuperação do meu pai, que não voltarei ao Bonfim para pagar o que me não foi concedido, que me orgulho quando no Brasil me procuram e me acham meio brasileira, que foi lá que este ano pude finalmente descansar e retemperar forças para seguir em frente, que a música brasileira me ateia o corpo e me eleva a alma, que a probabilidade de se ouvir música brasileira aqui em casa é superior a noventa por cento, que ainda tenho esperança de um dia, ao flanar por Ipanema, me cruzar com Chico Buarque, de olhos cristalinos no Atlântico, que o Budapeste é um dos meus livros preferidos, que querer conhecer Budapeste também teve a ver com Budapeste, que me perco na literatura brasileira, que venho carregada de livros sempre que regresso, que o linguajar brasileiro me amolece a alma, que contagiei esta paixão grande à minha cara-metade e que, hoje quando o meu cabeleireiro brasileiro me elogiou o cabelo com um sorriso genuíno Qui cábêlo! Cábêlo brásilêro!, vim a correr para casa escrever-vos também o que ainda não era sabido.

Salvador
foto: minha

domingo, 24 de dezembro de 2006

Friends will be friends

Ontem, enquanto estacionava o carro à porta da casa dos meus pais, um casal com uma criança do sexo feminino passeava-se à minha frente. Não atentei imediatamente nos rostos, apenas um homem e uma mulher. Ela mais alta, mais clara de pele e cabelo aloirado, ele mais baixo e bem moreno, a criança, ao pé do pai, também morena. Não apressaram o passo à medida que o carro se aproximava. Na diminuição da distância física que nos separava, reconheci então os rostos familiares de anos de convívio. Ambos ex-alunos da minha mãe continuaram presentes após a vida escolar e adultos fizeram questão da nossa presença nos momentos importantes da sua vida. Quando souberam da partida do meu querido pai acorreram à minha mãe para com ela chorar e agora, à semelhança do ano passado por esta altura, regressaram com a aura de carinho e almas reluzentes de generosidade. De voz embargada e com os olhos rentes de água, só me restava agradecer-lhes tanto amor e a preocupação de junto da minha querida mãe aquecerem-lhe o Natal compreensivelmente arrefecido.
A partida do meu querido pai separou o trigo do joio, o essencial do acessório, o fundamental do dispensável, seleccionou naturalmente quem ficou nas nossas vidas de quem partiu, sem lágrimas nem lamentos. Só se lamenta quem se ama. Acredito que, onde estiver, o meu querido pai estará surpreendido, às vezes, outras apenas assertivo Eu não te dizia? Os amigos ficaram. A eles dedico estas linhas. Os outros…. Houve outros?

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Geração Patinhas

Nesse dia a minha mãe estava indignada. O filho de uns amigos nossos, quase família, teria feito anos e, tendo recebido imensas mensagens de felicitações pelo aniversário, não respondeu a uma, uminha sequer. Para a minha mãe coisa assim roça a falta de educação. Onde é que já se viu? Mas o rapaz tinha uma razão plausível para este acto. Onde é que já se viu mas é, gastar tanto dinheiro e na hora fez as contas: x sms a y cêntimos tornar-se-iam uma quantia astronómica e incomportável mesmo para quem vive sem qualquer preocupação financeira.
O meu afilhado homem que tem agora uma dezena de anos ficou comigo num dia do passado recente. O irmão não parava de lhe enviar mensagens e embora tenha respondido às duas primeiras sem refilar, as restantes foram acompanhadas pela verificação rigorosa e em tempo real de quanto estava a gastar Olha, já gastei x cêntimos… Olha já só tenho x euros! Quando o irmão chegou ao pé de nós, atirou-lhe recriminador Olha o que me fizeste gastar! Tinha seis euros e setenta cêntimos, agora só tenho cinco euros e noventa. A minha vizinha do lado comentou há pouco a mesma característica no seu filho mais novo. O dinheiro é contado e escrupulosamente guardado ao cêntimo, nada é gasto sem razão.
Numa destas semanas, precisei de facultar o meu número de telemóvel às minhas alunas. Fi-lo pela primeira vez na vida, mas a verdade é que, depois de muito ponderar, concluí que iria simplificar substancialmente a comunicação necessária em virtude de um projecto desenvolvido em comum. Enviei-lhes uma mensagem e que resposta recebi? Nenhuma, zero, nicles. Certo é que a comunicação não carecia de resposta, mas que tal um obrigada, por exemplo? Quando as questionei sobre a recepção da mensagem e concluí que todas a haviam recebido sem piar, repreendi Então e não sabiam responder? O meu reparo foi recebido com apreensão Setora, o telemóvel da setora é um 96… Repondi A quem o dizem! E o vosso um 91! Riram-se meio envergonhadas e ficámos por ali. Passado uns dias na aula, e uma vez que se aproximava o teste, uma delas veio ter comigo para que lhe tirasse umas dúvidas. Abeirou-se de mim e após uma explicações sobre a dolorosa gramática alemã solicitou-me que lhe escrevesse no caderno as ditas. Recusei a princípio, argumentei que desde o décimo ano que andamos a falar daquilo, que o teria já escrito inúmeras vezes. A C. não se deu por achada e continuou Vá lá, setora! Fica com a sua letra… Claro que os professores são, por vezes, um pouco como os pais e têm dificuldade em resistir a uma choradinho bem feito, à voz melada e a expressão franzida dos rostos imaculados. Saquei do lápis e ao centro da página, com letra bem legível e redonda e deixando uma linha de intervalo, escrevi:


Grundstellung = Ordem directa
Umstellung = Ordem Inversa
Endstellung= Ordem Transposta

A C. elogiou-me a letra e, imediatamente após, soltou um reparo acusador Ó Setora, gasta-me a folha toda! Retorqui Forretas! Mas que coisa, meninas! Elas riram-se e, de seguida, a C. desenrolou o rol de tarefas que leva a cabo para não gastar dinheiro. Fiquei impressionada. No futuro, esta geração vai ficar na história como a que conseguiu sobreviver ao efeito Sócrates. Se se paga taxa moderadora apenas nos primeiros dias de internamento, os pais ficarão meses a fio no hospital certamente. Filhos desta estirpe serão até capazes de administrar um laxante aos progenitores e familiares para prolongar a estadia nas instalações hospitalares. Antes isso do que esbanjar dinheiro sem necessidade. Onde é que já se viu gastar tanto?

domingo, 17 de dezembro de 2006

A alternadeira

Sempre tive a Dom Quixote como uma editora séria, menos permeável a lixos encadernados. Afinal é a editora de António Lobo Antunes, de Manuel Alegre também. Foi com espanto que verifiquei que a mesma editora é responsável pela edição do livro da alternadeira do Porto, não por ser alternadeira, cada um leva a vida como sabe e pode, mas pelo nível inexistente das declarações e atitudes com que amiúde nos tem oferecido nos canais televisivos. Ao que parece já não sabem viver sem ela. Tenho um profundo desprezo por mulheres que encontrando num homem a sua fonte de rendimento e que, uma vez seca, vêm para os meios de comunicação fazer-se de vítimas, coitadinhas e que para cúmulo ainda falam em nome dos seus filhos. Mulher alguma, que se digne do seu género, evoca o nome dos filhos nestas situações. Dir-me-ão que nada entendo de maternidade na primeira pessoa, muito provavelmente terei uma ideia mitificada do que é trazer filhos ao mundo, mas a acreditar no sublime com que algumas mulheres descrevem a condição, a maternidade deveria ser incompatível com este lavar de roupa suja mesmo nas barbas de qualquer um de nós, a bem do equílibrio e bem-estar das crianças. Com menos espanto verifiquei que o dejecto em forma de livro, assim e muito bem o classificou Miguel Sousa Tavares, ia já em quarta edição. Que há leitores para tudo nunca houve qualquer dúvida, que há editoras para tudo também já havia pouca margem de dúvida, que afinal as editoras não têm um nome a defender constitui alguma novidade. À semelhança da profissão anterior da autora do livro, a editora tem um critério óbvio, quem lhe der mais dinheiro é quem a tem. Agora digam-me que Portugal até tem coisas boas, que nos outros países também é assim e tal. Pode até ser, mas nada disso retira uma vírgula ao longo texto de idiotices de nível execrável e abjecto com que nos deparamos aqui neste Portugal cada vez mais de pequeninos de espírito.

Natal

Mercado de Natal
Budapeste

Foto: minha

quarta-feira, 13 de dezembro de 2006

Factor acessório

Diz-me a C. que não entende as pessoas de quarenta anos. Que não compreende, que não entende, que as pessoas quando chegam aos quarenta anos deixam de fazer sentido. Ressalva, genuína, que a mim não se aplica a convicção, provavelmente por não me conhecer bem ou apenas por eu ser sua professora. Continua com o ar de quem se mantém aquém desse conhecimento dos adultos, embrenhada nos livros, perseguindo como nunca vi antes o seu objectivo. Há dias em que apenas não quer saber e é sorridente como as restantes garotas da sua idade. Diz-me apenas a Setora é amiga e brinda-me com um sorriso. Tivesse eu dezoito anos, a mãe na Moldávia permanentemente deixando ao critério da filha o que fazer, mudando de opinião, hoje vou, hoje fico, amanhã não sei, pensaria exactamente da mesma forma. Há pessoas que não fazem sentido, os quarenta anos são um mero factor acessório.

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

segunda-feira, 4 de dezembro de 2006

O rosto e os cargos

Dizia há pouco Marques Mendes a propósito da morte de Sá Carneiro que tinha morrido um Primeiro-Ministro e um Ministro das Finanças. Nada que me leve muita preocupação. Os homens devem ser mais importantes do que os cargos.

Bater no ceguinho

Nem sempre os professores conseguem medir com exactidão ou prever com rigor o que está para acontecer nas suas aulas. Na verdade, acredito que este será também um dos encantos de se ser professor, a total ausência de rotina e a surpresa que cada minuto, hora ou aula encerra.
Desta feita, estávamos na aula a ler uma entrevista com a
Wangari Maathai, a propósito das questões ambientais. Não obstante as alterações bruscas de clima e as inúmeras advertências em torno deste tema, os alunos continuam a pensar que aquilo é coisa dos livros, muito provavelmente inventada pelos professores para lhes moerem o juízo. Um desses dias quando lhes falei no vórtex de lixo no Pacífico, arregalaram bem os olhos e foram questionando o que acabara de dizer Mas isso é mesmo verdade, stora? Do tamanho do Texas? Sim, sim é verdade, sim é do tamanho do Texas. Estou certa que este assunto não se enquadra nas tipo coisas fixes que eles tanto querem, legitimamente talvez, e, portanto, torná-lo num assunto interessante mesmo com filmes, documentários e uma panóplia infindável de materiais autênticos não se apresenta como tarefa fácil. Na escola aprende-se o que vem nos livros, não o que se passa na vida, logo, tudo o que se situa além da sala de aula está sempre distante e aparentemente não é chamado para dentro daquelas quatro paredes.
Algures, lá para o fim da entrevista, Waangari Maathai reafirma uma tomada de posição controversa relativamente ao VIH/Sida. Ao debatemos a opinião, aproveitei a para chamar a atenção dos alunos pela enésima vez acerca dos perigos de contágio do VIH e reiterei o que sempre reitero junto deles, que nos devemos proteger sempre, e sempre é sempre, sem qualquer excepção. Aprender é também aprender a viver. Eles acataram, disseram que sim, que sabiam, sim, já sabiam, certamente aquela seria também a enésima vez que ouviriam o conselho. Sim, stora sabemos, mas mesmo antes de eu ter tempo para pensar fosse no que fosse, um deles virou-se para o colega e disse, recriminador, Ouviste, João*? O João ouvira. Esboçou um sorriso meio tímido e eu com ele um meio amarelo. O pobre João é o único dentro da sala de aula que consegue destacar-se dos restantes, até de mim própria. Foi pai, já neste ano lectivo, obviamente não por vontade própria, mas por não se ter protegido sempre, tal como eu acabara de acentuar. Tamanha prontidão no processamento de informação deixou-me sem resposta. A mim e ao João.

*nome fictício

sábado, 2 de dezembro de 2006

O maior do mundo

A maior feijoada do mundo, a maior broa do mundo, o maior cachecol do mundo, o maior desfile de Pais Natal do mundo, a maior salada de fruta do mundo, a maior paella do mundo, o maior gaspacho do mundo, o maior Pai Natal articulado do mundo. Em breve Portugal será o maior do mundo a fazer as coisas mais inúteis do mundo.