
A vida é assim mesmo: umas coisas vão piorando, outras melhorando, o passado já foi, o futuro não existe, vamos viver o melhor do presente, e pronto.
Danuza Leão, Quase Tudo
Pois naquele dia de Janeiro o H. chegou a casa já ao entardecer. Vinha carregado de coisas, nem me lembro exactamente com quê, apenas a imagem dele afobado a entrar pela casa dentro, empurrado pela invernia acutilante e obstinada. Deitou o correio para cima da mesa e disse apenas está aí uma viagem a Nova Iorque para concorreres… e dito isto debandou para a cozinha, onde abandonou os carregos e arremessou a canseira do dia de trabalho, pesado, denso, húmido e cinzento. Nesse tempo morávamos numa casa feita de humidade e frio e, por assim ser, e mais não aguentarmos, uma bela noite de Novembro decidimos dali sair. Um mês depois fazíamos a promessa de compra e venda desta e dois meses depois fechámos com felicidade a porta desse capítulo recheado de invernia. A cusca, a senhoria, uma saloia cilíndrica, tisnada e intrometida, ficara para trás com as suas casas de aluguer, o seu vastíssimo património, o seu filho encalhado e as vidas alheias de vizinhos, não-vizinhos e outras criaturas mundanas do reino vegetal e animal para espiolhar. E dessa data passam hoje, precisamente hoje, três anos recheados de vivências temperadas com ternura e salpicadas de inevitáveis mágoas e desprazeres esporádicos.
Estávamos então à mesa, saboreando paulatinamente o almoço quando o H. disse Olha, está a nevar! ao que respondi céptica e absolutamente convicta Está nada! Coisa assim seria mais rara que aparição de santo. Mas estava mesmo. Primeiro calmamente, um floco aqui, outro ali misturado com uma chuva miudinha a abanar os pinheiros do lado de lá da rede, depois mais forte e mais forte, com flocos grandes e a euforia instalou-se: porta da frente, porta de trás, janelas e terraço tudo foi percorrido com alegria pueril, nós na rua, os vizinhos na rua, todos de máquina fotográfica em punho tentando agarrar a magia daquele momento e a afirmação mil vezes repetida entusiasticamente Está a nevar!!!! Das alturas caíam farrapinhos alvos e rapioqueiros, dessas mesmas alturas onde julguei ver o sorriso aberto do meu pai pela alegria incontida da minha querida mãe.
Escrito há uns anos para um passatempo de uma publicação de viagens, aqui fica outro texto do baú nos 250 anos do amigo Wolferl.
Num dezanove de Janeiro, Elis Regina morria aos trinta e seis anos deixando o universo musical todo pela sua frente e uma carreira avassaladora por trás. O Brasil chorou. O mundo chorou. A música chorou enquanto se despedia de umas das suas mais talentosas e emblemáticas presenças.
Ontem voltei a ouvir o meu querido pai a propósito disto "Se for eleito Presidente da República me empenharei..." Mas que raio de português é este? Me empenharei? Me empenharei? disse indignado Ai Santo Deus, mas ninguém ensina essa gente a falar? Ainda por cima um professor doutor. Isso vai de mal a pior! Pois vai, Pápá. Se empenhará e se empenhará também em dar cabo dos funcionários públicos. Segundo o dito do empenho só lhe resta esperar que morramos todos, a bem da nação, como se diria noutros tempos.
E a preta? Quando é que levas a preta? Eu não queria trazer a preta mas o meu pai inicialmente a sério depois a brincar insistia para que eu a trouxesse. Isto começou quando pensei em me casar e continuou após me ter efectivamente casado. Sempre que dizia gosto muito daqueles castiçais, por exemplo, o meu pai respondia-me Gostas, filha? Leva para tua casa! e foi assim que alguns dos objectos decorativos dos meus pai vieram parar cá a casa. A preta, no entanto, continua em casa deles. Não sei se algum dia a trarei. Estou certa que se tal acontecer é apenas para satisfazer postumamente a vontade do meu querido pai. Não acredito porém que se deva cumprir na morte o que se não cumpriu em vida. Se vida houver do outro lado da vida, sei que o meu pai ficará felicíssimo, acima de tudo por lhe ter sido feito o gosto e secretamente por afinal ter ganho a contenda da preta. A manutenção de crenças irracionais sobre o que se passará do outro lado do rio serve também o intuito de apaziguar a dor e acalmar a saudade. Não sei, portanto, o que farei. A preta continua em vossa casa, Papá.
Às vezes tenho ideias, felizes,
Na verdade começo a acreditar que entre mim e Van Gogh existe uma ligação de fascínio, algo hipnótica até, muito embora e a bem da minha sanidade mental, não seja recíproca.
Quando eu era criança, o meu pai era muito rigoroso nos modos e maneiras à mesas. Não sei muito bem porque me lembro de ser ele a fazer esta admoestação. Tanto ele como a minha mãe eram pais presentes e atentos. Não sei, portanto. Rezam as crónicas que eu até era uma rapariga calma, de não engendrar grandes disparates, comer sossegada à mesa sem fazer porcarias nem envergonhar o meu pai e a minha mãe. Conta-se também, conta-me a minha mãe, que gostei de comida de adulto muito cedo. Para mim tem toda a lógica e explica perfeitamente porque odeio mixórdias repassadas tipo açorda, como explica, de resto, esta minha paixão pelo mais simples prato da gastronomia portuguesa: sardinhas assadas. E é a minha mãe quem diz que eu não teria ainda completado o meu primeiro aniversário e que do carrinho lhe pedi insistentemente sardinha assada na extinta Feira Popular, no tempo em que as crianças podiam apanhar micróbios, poeiras e fumos sem contraírem viroses ou qualquer outra coisa acabada em -ose.
Assim que decidi regressar a Munique e desta feita para ver e olhar o que não se consegue quando se vai em trabalho, decidi que havia de os lá levar. Na verdade, aquele sítio está carregado de significado para mim. Tinha uns quinze ou dezasseis anos a primeira vez que fui a Munique e à Alemanha, de resto. Aos olhos de uma adolescente portuguesa no início dos anos oitenta, a Alemanha apresentava-se como o paradigma da arrumação e da limpeza, da organização e do desenvolvimento. Lembro-me de que quando regressei a Portugal, um mês mais tarde, achei o meu país sujo e pobre, nos confins do quadragésimo mundo.
A C. sentou-se mesmo à frente como sempre faz, do lado esquerdo junto à janela. Chegou já o ano lectivo tinha começado e insistiu veementemente em incluir o Alemão no seu currículo, embora nunca tenha tido a língua na sua terra natal. A espaços, trocamos impressões sobre o dia-a-dia cá neste cantinho. Pergunto-lhe como vão as coisas quase todos os dias. Diz-me que gosta de aqui estar e que não quer voltar para o seu país natal. Tem feito progressos notáveis no desempenho do português, embora maioritariamente falemos em inglês e me socorra também do inglês para lhe explicar expressões em português ou em alemão, língua em que continua com dificuldades. Tem uma voz doce e modos delicados, um rosto redondo e traz muitas vezes consigo a alegria da descoberta e a frescura da adolescência. Lamento que a integração não se tenha dado ainda na sua plenitude, mas gosto de a ter connosco naquele grupinho de alunas que muitas vezes me distrai nos dias negros e discretamente me vai apoiando, aqui e ali, sem grandes conversas. A saudade do meu pai é algo que lhes mantenho distante por motivos óbvios, éticos e outros, também primeiro por achar que a vida privada dos professores assim deve ficar e que a vida da professora, neste caso, é absolutamente irrelevante, desnecessária e supérflua ao contexto de sala de aula, segundo, por estar certa de que se devem manter longe desta mágoa e continuar a viver a sua vida familiar sem o espectro da morte a rondar-lhes os sonhos, caso algum dia o assunto surgisse no horizonte. Apesar de tudo isso, a partida do meu pai não lhes é desconhecida.
Maldito hábito, esse que me reside no existir de fixar datas, datas, datas sem fim, datas disto, datas daquilo e não conseguir passear-me por elas incólume e leviana apenas como uma brisa afaga os canaviais que vejo da janela que, uma vez ondulados pela aragem, regressam ao que antes eram, sem mácula nem lágrima e os melros retornam também indiferentes, esvoaçando indeléveis de cana em cana. E assim será, portanto, que sempre que o calendário marcar o segundo dia de um qualquer mês, mais uma vez recordarei aquela tarde soalheira de Setembro em que tudo ficou como agora está, doloroso e sombrio, hoje igual a ontem, ontem igual a anteontem, Janeiro igual a Dezembro, Dezembro igual a Novembro, Novembro igual a Outubro, Outubro igual a Setembro.
O ano passado não passou,