
Na verdade começo a acreditar que entre mim e Van Gogh existe uma ligação de fascínio, algo hipnótica até, muito embora e a bem da minha sanidade mental, não seja recíproca.
A primeira vez que me causou uma situação embaraçosa foi como
aqui foi contado, mas, enfim, era muito jovem então e hoje ao retornar ao local verifiquei que o quadro se encontrava já protegido com um espesso vidro. Não sei se não terão à
Neue Pinakothek chegado rumores da minha visita. Sei que foi lá que concluí, caso não o soubera antes, que não se deve perder oportunidade alguma e que este meu indicador direito, além de me ter escrito uma tese inteirinha de mestrado com cento e sessenta páginas, tocou também a pincelada do grande mestre do pós-impressionismo, façanha que muito dificilmente se repetirá.
Estávamos então em Paris, num dos mais belos e luminosos museus que conheço. Dessa feita, tal como na outra éramos muitos, mas, ao contrário da outra e em virtude da passagem do tempo, os papéis invertiam-se e eu já não era aluna, mas sim professora. Relembro com muito carinho essa viagem e Paris desses dias é-me uma cidade querida e doce. Comigo tinha a P., minha amiga e colega, agora também afilhada de casamento, presente em muitos momentos bons e maus da minha vida, tal como devem ser os amigos. Presente também era o LR, meu querido colega, agora presente apenas na memória e relembrado sempre com saudade. A vida pode a espaços sorrir-nos e acenar-nos rapioqueira e ligeira, tal como a meses e anos inteiros pode apenas mostrar-nos uma carranca sisuda sem esboçar o menor dos sorrisos e apresentar-se como um Inverno cinzento e frio sem fim à vista.
Tínhamos então percorrido uma distância enorme a pé, contámos sete pontes e finalmente chegámos ao
Musée d´Orsay . O objectivo era acima de tudo a ala dos impressionistas e pós-impressionistas. Confesso que fiquei maravilhada pelo museu, a luminosidade do átrio, as rosáceas do tecto e o pensamento que de ali haviam partido e ali haviam chegado milhares de pessoas outrora. Agrada-me pensar um museu como uma viagem. Quando chegamos já não somos quem partiu.
Lembro-me bem que o LR se deteve junto da
Igreja de Auvers do nosso amigo Vincent e que eu fiquei sozinha diante do
Quarto de Arles e que estava sozinha à altura deste episódio. Saquei da máquina fotográfica, analógica pois claro, e retirando-lhe cuidadosamente o flash, fotografei o dito quarto. Tal como acontecera antes os redemoinhos da tinta e a intensidade da cor impeliam-me para dentro da pintura. A seguir, não muito longe, julgo, estava um auto-retrato e aí claro, o confronto foi directo com o olhar inquieto, a expressão perturbada do próprio pintor, ele tal como se via a si próprio, ele espelho de si mesmo. E sem mais pensar, saquei da máquina de novo e de novo premi o botão, só que desta vez uma luz esbranquiçada e brilhante invadiu a sala, estremunhando os demais visitantes da sua fruição silenciosa. Alguém ao meu lado olhou-me indignado e refilou-me severamente
That damages the paintings, you know! Eu lá saber sabia, mas esquecera-me de retirar o flash da máquina e sem mais retirei-me eu mesma com o rabinho entre as pernas. O homem era alto e parecia que crescia para mim na imensidão do museu.
A versão da P. não coincide. De longe presenciava a conversa e concluiu, usando para tal o conhecimento aprofundado do meu temperamento
Olha, lá está ela a dar uma descasca ao homem por causa do flash… Nada mais errado. O homem dava-me uma descasca a mim e o Vincent permanecia impassível lá na sua moldura, olhando-me de revés. Recriminando-me, em suma.
Como já fui ao
Museu Van Gogh , já vi a
Starry Night no MoMA, não vou arriscar mais Van Goghs, não vá o diabo tecê-las e dar por mim abandonada num
campo de trigo com corvos.