Há quem queira ter vivido noutros tempos e noutras paragens. Pois eu, que valorizo acima de muitas coisas o prazer de ser livre, regozijo-me por ter tido a oportunidade de presenciar a libertação do meu país, de modo que o ser agora menos jovem é o tesouro mais valioso do meu ser português. Foi em Abril, como se sabe. O dia estava cinzento e chuvoso. A minha mãe corria pela casa bem cedo ainda em camisa de noite, agitada e feliz, pela boa nova: a liberdade estava a chegar por aqui, por ali e eu, pequena perante a imensidão do momento, assistia ao virar dessa página da nossa história sem que muito bem o entendesse, contudo. Só o futuro nos ajudará a entender a amplitude do passado. Não houve escola nesse dia, fiquei em casa, portanto, com os meus pais e a minha avó, ouvindo a voz grave de Luís Filipe Costa Aqui posto de comando das Forças Armadas e seguindo atentamente a chegada da tão esperada liberdade, comentada em surdina em conversas passadas dos meus pais. Daqueles momentos guardo o alvoroço da minha mãe, a expectativa de um devir livre e ensolarado, sem palavras proibidas, um entusiasmo pela nova era. A mudança anunciava-se incontida.
Portugal era como um livro de colorir. A preto e branco, como todos os livros de colorir. Apenas com contornos desenhados à espera de ser colorido, como todos os livros de colorir. E como se cada um com seu lápis de cor tivesse colorido sua parte, cada espaço em branco desde tempos imemoriais era finalmente preenchido com as cores do prazer libertador. E assim se coloriu meu país e as cores eram muitas, de todos os arco-íris do mundo, e todos falavam e riam e as ruas encheram-se de gente e a gente trazia mais gente que trazia flores, rubras e exuberantes de pétalas como folhos atadas a um caule verde esperança. Havia música no ar. Música cantando a recém-nascida liberdade deste país. O sussurrar dava lugar ao gritar. No ar pairavam cânticos e palavras agitadas como imensas bandeiras coloridas. E surgiram mais palavras, palavras novas, existentes até então em vocabulários escondidos, guardados nos confins da clandestinidade e que agora se podiam pronunciar alto. Palavras belas como liberdade e igualdade. Palavras feias como fascismo e repressão. Todas elas finalmente permitidas e pronunciáveis à luz do sol. No meu país já não havia palavras proibidas.
Abril chegou de novo, distante no tempo daquele Abril de 74, sempre perto no meu sentir e vívido na memória, não obstante, e ritualmente comemorado pela minha mãe com um ramo de cravos vermelhos, agora também vibrantes na última morada do meu querido pai.
imagem: Vieira da Silva
Páginas
terça-feira, 25 de abril de 2006
domingo, 23 de abril de 2006
Dia do Livro
Cada livro, cada volume que vês, tem alma. A alma de quem o escreveu e a alma dos que o leram e viveram e sonharam com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém desliza o olhar pelas suas páginas, o seu espírito cresce e torna-se forte.
Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento.
imagem: Gabriele Münter, Jawlenski und Werefkin.
Carlos Ruiz Zafón, A Sombra do Vento.
imagem: Gabriele Münter, Jawlenski und Werefkin.
sábado, 22 de abril de 2006
Livros e almas
Os livros têm a característica não só de unir o leitor com o universo de um autor, de criar laços entre o leitor e as personagens mas também a de unir pessoas em seu redor. Somos assim almas com livros convergentes, universos partilhados e que, então libertas dos livros, se unem além desse gosto comum. E por ter finalmente conhecido as feições, o falar, a bonomia e a delicadeza de quem apenas conhecia a escrita e os gestos carinhosos que nas páginas de livros atravessam esse Atlântico imenso, tenho hoje a alma cheia de sol.
quinta-feira, 20 de abril de 2006
Estórias
Diz-se que há males que vêm por bem.
Não sou adepta desta premissa. Tenho uma dificuldade imensa em encontrar bem algum nos males que foram assolando ao longo dos tempos, sendo o mesmo válido para a costumeira conversa de que o que não nos mata torna-nos mais fortes, que nas adversidades é que crescemos e por aí fora. Ficaria bem mais feliz ignorante, insciente dessas capacidades ocultas, descobertas apenas face aos contratempos. De que me servirá afinal conhecer os meus limites? Demarcar as fronteiras da sanidade? Marcar os limiares da dor? As cicatrizes perdurarão quando as feridas sararem.
Atrevo-me, no entanto, a considerar que este mal inicial, menor diga-se em abono da verdade, acabou por se transformar mesmo numa mais-valia. Caso naquele Agosto de 1998 tivesse apanhado o voo directo de Munique para Lisboa sem uma escala de seis horas em Zurique, ter-me-ia passado ao lado, melhor dizendo eu teria passado literalmente por cima do acontecimento. Assim não foi. Depois de envidados todos os esforços para conseguir um voo mais cedo, não tive mais remédio senão conformar-me. Ajudou-me também o facto de ter este vício de levar o passaporte sempre que viajo, mesmo na União Europeia, à excepção de Espanha. No aeroporto, após mais uma tentativa infértil, questionaram-me Tem o passaporte? Então vá à cidade que há lá uma festa. Pensei pois Sim… lá estão eles a beber cerveja e a comer salsichas… mas entre ver os suíços, na minha mente associados sem piedade aos alemães, e ficar seis horas arrastando o rabo pelas incómodas cadeiras do aeroporto, depois de ter feito pelo menos três rondas e visitas em cada loja, ter já fixado preços e localização dos items expostos, olhar o relógio centenas de vezes na esperança que o tempo fugisse e as seis horas se transformassem em seis fugazes minutos, e testemunhar o divertimento alheio, entre cervejas e salsichas, escolhi o segundo, dificilmente pararei se puder partir, e apanhei o comboio rumo à cidade, grata por ter o passaporte comigo.
Na estação tinha o anjo a acolher-me pendurado das alturas, como convém aos alados seres etéreos, embora a singularidade das cores e volúpia das formas sacudisse o estereótipo do querubim assexuado. Pela cidade espalhava-se uma multidão exuberante de cabelos fluorescentes e plumas, abanando-se ao som de música tecno, os corpos brilhantes pelo calor exsudado no estio helvético. Criaturas andróginas ondulavam os corpos em cima de trios eléctricos e eu, vestida apenas de mim própria, pasmei na extravagância do Street Parade, onde tinha ido parar por mero acaso, pura coincidência e agradeci secretamente a quem me encaminhou para a cidade povoada de vacas exuberantes como a própria urbe em êxtase. As seis horas voaram pois e deste episódio não me resta senão a memória: a máquina fotográfica dentro da mala, perdida nalgum hangar, e eu só, acompanhada da minha própria solidão. A linguagem inútil na ausência de destinatário. Nem uma alma para partilhar o momento, alguém com quem trocar uma opinião, um outro a meu lado que comigo palmilhasse a fantasia da cidade. Palavras, pois, palavras escritas me restam apenas contra a inconstância da memória.
imagem: Cowparade, Zurique, 1998
Não sou adepta desta premissa. Tenho uma dificuldade imensa em encontrar bem algum nos males que foram assolando ao longo dos tempos, sendo o mesmo válido para a costumeira conversa de que o que não nos mata torna-nos mais fortes, que nas adversidades é que crescemos e por aí fora. Ficaria bem mais feliz ignorante, insciente dessas capacidades ocultas, descobertas apenas face aos contratempos. De que me servirá afinal conhecer os meus limites? Demarcar as fronteiras da sanidade? Marcar os limiares da dor? As cicatrizes perdurarão quando as feridas sararem.
Atrevo-me, no entanto, a considerar que este mal inicial, menor diga-se em abono da verdade, acabou por se transformar mesmo numa mais-valia. Caso naquele Agosto de 1998 tivesse apanhado o voo directo de Munique para Lisboa sem uma escala de seis horas em Zurique, ter-me-ia passado ao lado, melhor dizendo eu teria passado literalmente por cima do acontecimento. Assim não foi. Depois de envidados todos os esforços para conseguir um voo mais cedo, não tive mais remédio senão conformar-me. Ajudou-me também o facto de ter este vício de levar o passaporte sempre que viajo, mesmo na União Europeia, à excepção de Espanha. No aeroporto, após mais uma tentativa infértil, questionaram-me Tem o passaporte? Então vá à cidade que há lá uma festa. Pensei pois Sim… lá estão eles a beber cerveja e a comer salsichas… mas entre ver os suíços, na minha mente associados sem piedade aos alemães, e ficar seis horas arrastando o rabo pelas incómodas cadeiras do aeroporto, depois de ter feito pelo menos três rondas e visitas em cada loja, ter já fixado preços e localização dos items expostos, olhar o relógio centenas de vezes na esperança que o tempo fugisse e as seis horas se transformassem em seis fugazes minutos, e testemunhar o divertimento alheio, entre cervejas e salsichas, escolhi o segundo, dificilmente pararei se puder partir, e apanhei o comboio rumo à cidade, grata por ter o passaporte comigo.
Na estação tinha o anjo a acolher-me pendurado das alturas, como convém aos alados seres etéreos, embora a singularidade das cores e volúpia das formas sacudisse o estereótipo do querubim assexuado. Pela cidade espalhava-se uma multidão exuberante de cabelos fluorescentes e plumas, abanando-se ao som de música tecno, os corpos brilhantes pelo calor exsudado no estio helvético. Criaturas andróginas ondulavam os corpos em cima de trios eléctricos e eu, vestida apenas de mim própria, pasmei na extravagância do Street Parade, onde tinha ido parar por mero acaso, pura coincidência e agradeci secretamente a quem me encaminhou para a cidade povoada de vacas exuberantes como a própria urbe em êxtase. As seis horas voaram pois e deste episódio não me resta senão a memória: a máquina fotográfica dentro da mala, perdida nalgum hangar, e eu só, acompanhada da minha própria solidão. A linguagem inútil na ausência de destinatário. Nem uma alma para partilhar o momento, alguém com quem trocar uma opinião, um outro a meu lado que comigo palmilhasse a fantasia da cidade. Palavras, pois, palavras escritas me restam apenas contra a inconstância da memória.
imagem: Cowparade, Zurique, 1998
terça-feira, 18 de abril de 2006
Cofre
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero
(...)
Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem outro ponto qualquer,
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas...
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero
(...)
Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem outro ponto qualquer,
Resolver a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas...
Álvaro de Campos, in Passagem das horas
foto: minha, Maldivas, 2001.
segunda-feira, 17 de abril de 2006
sábado, 15 de abril de 2006
Fruta da época
O meu fim-de-semana tem quase sempre destas coisas. Acredito que também aos outros dias da semana acontecem coisas extraordinárias mas é no fim-de-semana que me deparo mais com elas. Felizmente hoje chamei o H. para vir presenciar, não vá a notícia desaparecer como daquela vez em que o advogado do pedófilo confesso foi escorraçado pela porta dum prédio da capital. Ninguém mais viu. Desta vez, estava eu tranquila, bebendo a habitual chávena de café, quando vi uma mulher a queixar-se de ter levado porrada, tareia, pancada, trolhada, bordoada, cachaporrada, dentro da igreja. Mostrava inclusive as marcas arroxeadas no rosto e isto, ao que parece, porque o padre da paróquia não quis fazer a costumeira procissão em virtude das condições atmosféricas adversas e o povo, claro está, revoltou-se, e já se sabe que o povo, mesmo um rebanho pacífico, não escolhe local para se envolver numa cena de pancadaria à moda antiga. Quem é que precisa do Bud Spencer com filmes destes? Isto de ser dentro da igreja até traz as suas vantagens. O confessionário é logo ali, sempre poupam a deslocação e quem sabe se uma confissão conjunta não sairá mais em conta, que essa dos trinta dinheiros e vendilhões do templo foi já há tanto tempo que prescreveu. Dizia um paroquiano que o pároco já tinha reduzido o percurso, desta vez, porém, recusou-se a sair, descontente com os desígnios de São Pedro. Ver se nenhum dos fiéis se lembra de morrer em dia de chuva, senão terá de ir sozinho, não vá o senhor padre apanhar chuva na moleirinha e montar-se uma cena de porrada a caminho do cemitério.
cartoon: Quino, Mafalda, a Contestatária.
sexta-feira, 14 de abril de 2006
Upgrade
Pensando bem, sou obrigada a concordar em certa medida com o Vaticano: se é para ligar a televisão, vir à net, ler jornais e descobrir que foi feito um verdadeiro upgrade dos pecados mortais, e que agora, para além dos conhecidos, até um reles jornalito pode ser preocupação eclesiástica e razão para arder nos infernos, seja lá isso onde for, em verdade vos digo que mais vale ficar na ignorância de televisão apagada, sem jornais e muito menos net. Pelo menos assim até me esqueço de que estou no século XXI e a coisa passa mais despercebida, faz-me menos mal, portanto.
A televisão tem andado renitente, no Sábado passado vimo-nos aflitos para a convencer a funcionar, o que me leva a pensar se não seria já um sinal. Quanto à net, particularmente à noite, tem prestado um serviço pouco eficaz. Começo a achar tudo isto muito estranho... A seguir estou a pensar arrancar os botões da roupa para não ceder à soberba e comprar uma saca de cinquenta quilos de batatas para não sucumbir à gula. Desconfio que mais dia menos dia ainda vou acordar mormon...
Cartoon: Gerhard Haderer, Think Positive.A televisão tem andado renitente, no Sábado passado vimo-nos aflitos para a convencer a funcionar, o que me leva a pensar se não seria já um sinal. Quanto à net, particularmente à noite, tem prestado um serviço pouco eficaz. Começo a achar tudo isto muito estranho... A seguir estou a pensar arrancar os botões da roupa para não ceder à soberba e comprar uma saca de cinquenta quilos de batatas para não sucumbir à gula. Desconfio que mais dia menos dia ainda vou acordar mormon...
quinta-feira, 13 de abril de 2006
O gato
Há dias, sabes, em que gostava de ser como o gato e que me tocasses sem desejar encontrar quaisquer sentimentos a não ser o que se exprime num espreguiçar muito lento - um vago agradecimento? - e que depois me deixasses deitado no sofá sem que nada pudesses levar da minha alma, pois nem saberias o que dela roubar.
Pedro Paixão, Viver todos os dias cansa.
Este é decididamente um dos meus textos preferidos do Pedro Paixão.
quarta-feira, 12 de abril de 2006
Gaguez não mora aqui
A minha mãe é uma conversadora nata. Jamais se calará se puder falar e jamais engolirá um despautério se o puder recusar com oportunidade e frontalidade. Admiro profundamente esta sua característica. Acredito que também ela a tem ajudado a superar a ausência do meu querido pai. Não que se debulhe em palavras. É comedida e sóbria na sua dor. Trocamos amiúde palavras íntimas e carregadas de cumplicidade se o Papá visse isto agora…, o Papá é que gostava muito de… e assim comunicamos neste espaço único em que ambas somos ainda mais uma para a outra e uma com a outra. Dispensamos mais palavras.
No seu poder insondável de conversação incluem-se também conversas com ela própria em voz alta, mensagens em telefones e telemóveis e conversas com o felino senior de lá de casa e meu mano. O lugar de destaque imposto por ele mesmo no seio da família conferiu-lhe o estatuto privilegiado dentro da mesma. Às vezes quando estava lá em casa com o meu pai e a ouvia conversar na cozinha, perguntava Diz, Mamã. Queres alguma coisa? O meu querido pai acrescentava apenas Não é nada. Deve estar a falar sozinha… e com o gato? É cada diálogo entre os dois… Nem imaginas! Assim era e assim continua a ser. O gato é um incondicional apaixonado pela sua dona, segue-a como um cão o faria e agora, desde que o meu pai partiu, planta-se-lhe mesmo em frente à cara aos serões, rogando-lhe a satisfação dos seus caprichos acima das necessidades. A minha mãe não é rapariga de se ficar e, portanto, reprime-o e admoesta-o, pois claro. O gato, por seu turno, não é um rapaz flexível e jamais desistirá da sua vontade.
Neste poder de resposta, relembro o momento em que as duas fomos a uma loja de noivas com roupa também para convidados e que a empregada, com um manifesto deficit estético e absoluta ausência de oportunidade, apresentou-nos um vestido rodado logo a partir do peito e com umas alcinhas de lantejoulas. Entreolhámo-nos de imediato e antes de mais, a minha mãe questionou a rapariga Olhe bem para mim! Acha que EU vou vestir um vestido desses? acompanhando a pergunta com um gesto esclarecedor apontando para o seu corpo. De facto. O vestido era por completo desajustado à minha mãe, até um míope veria coisa assim. Incompetência devia pagar imposto.
Um destes dias, estava eu lá em casa e ouvi uma conversa imensa ao telefone. A minha mãe tinha toda a razão, andava irritada já há uns dias com a incompetência de um serviço mal prestado. Quando a ouvi falar e pela desenvoltura da conversa, pensei que finalmente que lhe haviam ligado para dar uma satisfação. Questionei Ligaram-te, Mamã? respondeu Não, nem me atendem… estava a deixar-lhes uma mensagem no telefone, o que me fez relembrar um outro episódio. Certo dia após as aulas, liguei o telemóvel. Tinha uma mensagem e era da minha mãe. Nem me lembro do assunto, mas era com toda a propriedade uma mensagem completa com entoação, expressão, afirmações e interrogativas e tudo o mais que se pode imaginar. Tudo ouvi, atenta, e quando dei por mim, estava a responder-lhe convictamente Tá bem, mamã! Recuei aflita perante a minha prosápia com a máquina, preocupada com algum distúrbio oculto que agora se manifestava, para descansar logo a seguir, rendida ao poder comunicativo da voz na gravação. Hesitação e gaguez são felizmente duas entradas em branco no vastíssimo dicionário da minha querida mãe.
No seu poder insondável de conversação incluem-se também conversas com ela própria em voz alta, mensagens em telefones e telemóveis e conversas com o felino senior de lá de casa e meu mano. O lugar de destaque imposto por ele mesmo no seio da família conferiu-lhe o estatuto privilegiado dentro da mesma. Às vezes quando estava lá em casa com o meu pai e a ouvia conversar na cozinha, perguntava Diz, Mamã. Queres alguma coisa? O meu querido pai acrescentava apenas Não é nada. Deve estar a falar sozinha… e com o gato? É cada diálogo entre os dois… Nem imaginas! Assim era e assim continua a ser. O gato é um incondicional apaixonado pela sua dona, segue-a como um cão o faria e agora, desde que o meu pai partiu, planta-se-lhe mesmo em frente à cara aos serões, rogando-lhe a satisfação dos seus caprichos acima das necessidades. A minha mãe não é rapariga de se ficar e, portanto, reprime-o e admoesta-o, pois claro. O gato, por seu turno, não é um rapaz flexível e jamais desistirá da sua vontade.
Neste poder de resposta, relembro o momento em que as duas fomos a uma loja de noivas com roupa também para convidados e que a empregada, com um manifesto deficit estético e absoluta ausência de oportunidade, apresentou-nos um vestido rodado logo a partir do peito e com umas alcinhas de lantejoulas. Entreolhámo-nos de imediato e antes de mais, a minha mãe questionou a rapariga Olhe bem para mim! Acha que EU vou vestir um vestido desses? acompanhando a pergunta com um gesto esclarecedor apontando para o seu corpo. De facto. O vestido era por completo desajustado à minha mãe, até um míope veria coisa assim. Incompetência devia pagar imposto.
Um destes dias, estava eu lá em casa e ouvi uma conversa imensa ao telefone. A minha mãe tinha toda a razão, andava irritada já há uns dias com a incompetência de um serviço mal prestado. Quando a ouvi falar e pela desenvoltura da conversa, pensei que finalmente que lhe haviam ligado para dar uma satisfação. Questionei Ligaram-te, Mamã? respondeu Não, nem me atendem… estava a deixar-lhes uma mensagem no telefone, o que me fez relembrar um outro episódio. Certo dia após as aulas, liguei o telemóvel. Tinha uma mensagem e era da minha mãe. Nem me lembro do assunto, mas era com toda a propriedade uma mensagem completa com entoação, expressão, afirmações e interrogativas e tudo o mais que se pode imaginar. Tudo ouvi, atenta, e quando dei por mim, estava a responder-lhe convictamente Tá bem, mamã! Recuei aflita perante a minha prosápia com a máquina, preocupada com algum distúrbio oculto que agora se manifestava, para descansar logo a seguir, rendida ao poder comunicativo da voz na gravação. Hesitação e gaguez são felizmente duas entradas em branco no vastíssimo dicionário da minha querida mãe.
terça-feira, 11 de abril de 2006
Dispersos II
Nos momentos em que o optimismo que me vai empurrando por trás anda! Vá! Que fazes aí parada? se perde na multidão ou se detém no caminho, entretido com uma qualquer outra coisa, é como se, de repente, me fugisse o amparo e, numa fracção de instantes, perdesse o equilíbrio para o recuperar de novo no corpo flutuante que nem um caniço à mercê do vento forte.
Quando o optimismo se me despede por instantes ou dias Já volto, sim? Vou só ali fazer uma coisa… regressa-me uma saudade pesada, o pessimismo de um Inverno infindável, um turbilhão de interrogações sem resposta, a ausência de um sentido para o próprio existir. Quando o optimismo diz vou só ali ao café cambaleio um pouco, o corpo inclina-se-me para trás e até retomar o fôlego e a firmeza nos dois pés bem assentes na terra, invade-me a revolta imensa pela partida tão antecipada do meu querido pai, um inconformismo pelas ausências sucessivas que coleccionei.
Quando o optimismo se me despede por instantes ou dias Já volto, sim? Vou só ali fazer uma coisa… regressa-me uma saudade pesada, o pessimismo de um Inverno infindável, um turbilhão de interrogações sem resposta, a ausência de um sentido para o próprio existir. Quando o optimismo diz vou só ali ao café cambaleio um pouco, o corpo inclina-se-me para trás e até retomar o fôlego e a firmeza nos dois pés bem assentes na terra, invade-me a revolta imensa pela partida tão antecipada do meu querido pai, um inconformismo pelas ausências sucessivas que coleccionei.
segunda-feira, 10 de abril de 2006
Mar
E porque hoje só consigo pensar além mar, aqui fica o último capítulo de uma novela minha encafuada na gaveta:
Todos os dias cumpria o mesmo ritual. Levantava-se estremunhada e, sacudindo fantasmas e angústias dos sonhos nocturnos que lhe povoavam o dormir, descia as escadas e dirigia-se à cozinha. Espreguiçava-se e bocejava, um bocejo grande e revigorante, de seguida, puxava o estore e procurava, entre a névoa do sono e a aurora do acordar, a tarja de mar ao fundo na paisagem. Os fantasmas desapareciam.
Uns dias, era imensa e azul a linha desenhada no horizonte, outras apenas uma risca cinzenta e outras ainda uma pequena tarja prateada. Dias havia em que o sol reflectia na água a sua grandeza e esplendor. Eva observava, atenta, a mescla das cores, maldizendo a sua inaptidão para transpor em arte o cenário observado. Quando contava o mar que vira, muitos a descriam, não que o verbalizassem, ela entendia pelo olhar. Mas que via o mar da sua casa, via, e que esse mar lhe tornava a existência mais feliz, era um facto insofismável.
Uma ocasião, quando dava um passeio virtual no espaço cibernético, alguém perguntou o que cada um tocava pela manhã, a rapariga respondeu que tocava a orla de mar da janela da cozinha e um qualquer rapaz, sem rosto nem nome, concordou que havia de ser belo esse ver, esse tactear matinal. Acreditava na rapariga.
Porque lhe era o mar tão caro, questionava-se com frequência. Sim, porquê? Entre a quietude da aldeia, feita de silêncios, entrecortados com o cantar dos melros e o chilrear dos pardais, e o bulício da urbe, feita de ruídos e vozes, interrompidos por silêncios inaudíveis, havia um caminho de água, imenso e brilhante que levava a outras aldeias e a outras urbes, outros oceanos até. Às vezes fixava o olhar e julgava ver alguém acenando, do outro lado do mar… do outro lado do mundo?
Era Primavera de novo. E a rapariga virou-se para o rapaz e disse “Vês, que lindo que é…”. Saíram pela porta da cozinha e, no horizonte, desenhava-se uma enorme esfera incandescente, laranja e avermelhada, que descia paulatina até beijar o mar, ao longe, tranquilo e belo, pronto para o acolher no seu ventre. Pareceu-lhe ver outra vez o aceno… E do quintal tudo era tão pleno. E a rapariga virou-se para o rapaz e disse “Vês o mar na minha aldeia, que lindo que é"
in O Mar na Minha AldeiaTambém com o pensamento neste além mar.
Todos os dias cumpria o mesmo ritual. Levantava-se estremunhada e, sacudindo fantasmas e angústias dos sonhos nocturnos que lhe povoavam o dormir, descia as escadas e dirigia-se à cozinha. Espreguiçava-se e bocejava, um bocejo grande e revigorante, de seguida, puxava o estore e procurava, entre a névoa do sono e a aurora do acordar, a tarja de mar ao fundo na paisagem. Os fantasmas desapareciam.
Uns dias, era imensa e azul a linha desenhada no horizonte, outras apenas uma risca cinzenta e outras ainda uma pequena tarja prateada. Dias havia em que o sol reflectia na água a sua grandeza e esplendor. Eva observava, atenta, a mescla das cores, maldizendo a sua inaptidão para transpor em arte o cenário observado. Quando contava o mar que vira, muitos a descriam, não que o verbalizassem, ela entendia pelo olhar. Mas que via o mar da sua casa, via, e que esse mar lhe tornava a existência mais feliz, era um facto insofismável.
Uma ocasião, quando dava um passeio virtual no espaço cibernético, alguém perguntou o que cada um tocava pela manhã, a rapariga respondeu que tocava a orla de mar da janela da cozinha e um qualquer rapaz, sem rosto nem nome, concordou que havia de ser belo esse ver, esse tactear matinal. Acreditava na rapariga.
Porque lhe era o mar tão caro, questionava-se com frequência. Sim, porquê? Entre a quietude da aldeia, feita de silêncios, entrecortados com o cantar dos melros e o chilrear dos pardais, e o bulício da urbe, feita de ruídos e vozes, interrompidos por silêncios inaudíveis, havia um caminho de água, imenso e brilhante que levava a outras aldeias e a outras urbes, outros oceanos até. Às vezes fixava o olhar e julgava ver alguém acenando, do outro lado do mar… do outro lado do mundo?
Era Primavera de novo. E a rapariga virou-se para o rapaz e disse “Vês, que lindo que é…”. Saíram pela porta da cozinha e, no horizonte, desenhava-se uma enorme esfera incandescente, laranja e avermelhada, que descia paulatina até beijar o mar, ao longe, tranquilo e belo, pronto para o acolher no seu ventre. Pareceu-lhe ver outra vez o aceno… E do quintal tudo era tão pleno. E a rapariga virou-se para o rapaz e disse “Vês o mar na minha aldeia, que lindo que é"
sábado, 8 de abril de 2006
sexta-feira, 7 de abril de 2006
Almas intranquilas
Há dias em que sinto o apelo da partida mas há dias, ciclicamente presentes, em que apenas me apetece ficar em casa no aconchego do lar, à lareira, saltitando entre o sofá e o cadeirão, pululando entre livros e revistas, fazendo zapping entre um e outro canal televisivo e ficar assim tranquila com esta inquietude, com este desassossego de ser exactamente como sou, ficar assim peripatética neste vaivém entre poisos e lugares, este ínfimo viajar entre livros e folhetos de viagens, este viandar miudinho entre sons e imagens. As almas intranquilas encontram no mais pequeno bulício a placidez do seu espírito.
imagem: Marc Chagall, Le Quai de Bercy.
quarta-feira, 5 de abril de 2006
Atrasadeco
Nos degraus da padaria
Em minha casa, sempre suscitei grandes dúvidas sobre a minha sanidade mental. Meus familiares me chamavam de «atrasado». Melhor (ou será pior?): «atrasadeco». E sem dúvida, mais grave: chamavam-me assim com a maior ternura. E eu até gostava desse tratamento, a palavra me atingia como uma carícia. Meus irmãos eram convocados a cumprir tarefas caseiras. Eu estava dispensado: «Não lhe peçam para fazer nada que ele estraga, perde, parte». Passei a encontrar nessa inabilidade uma vantagem: eu estava dispensado dos serviços infantis obrigatórios. Vago para perder tempo que era o meu único modo de ter tempo. Certa vez, em desespero de causa, mandaram-me comprar pão. Duas horas depois - e como eu não regressasse - enviaram uma delegação em meu encalço. Encontraram-me sentado no degrau da padaria. Que fazes aqui? - O pão acabou, respondi eu. Estava à espera da nova fornada. Que só estaria pronta dentro de umas horas.
Aquilo para a minha família era a confirmação, o teste decisivo. Como se pode estar horas, parado num degrau de uma padaria? Contudo, para mim, a espera não me afligia, a rua era um desfile infindável de histórias. Passavam as pessoas, cada um com seu tom de existência e eu criava uma razão para cada sombra triste, uma narrativa para cada sorriso encoberto. Eu estava apurando esse que é ainda hoje a minha predilecção maior: degustar o mundo como um lugar inacabado, cheio de personagens a quem podemos emprestar um enredo.
Mia Couto in “Jornal de Letras”, 15-28/03/06
Se o Mia Couto era considerado atrasadeco como é que algum dia poderão acreditar em mim?
Em minha casa, sempre suscitei grandes dúvidas sobre a minha sanidade mental. Meus familiares me chamavam de «atrasado». Melhor (ou será pior?): «atrasadeco». E sem dúvida, mais grave: chamavam-me assim com a maior ternura. E eu até gostava desse tratamento, a palavra me atingia como uma carícia. Meus irmãos eram convocados a cumprir tarefas caseiras. Eu estava dispensado: «Não lhe peçam para fazer nada que ele estraga, perde, parte». Passei a encontrar nessa inabilidade uma vantagem: eu estava dispensado dos serviços infantis obrigatórios. Vago para perder tempo que era o meu único modo de ter tempo. Certa vez, em desespero de causa, mandaram-me comprar pão. Duas horas depois - e como eu não regressasse - enviaram uma delegação em meu encalço. Encontraram-me sentado no degrau da padaria. Que fazes aqui? - O pão acabou, respondi eu. Estava à espera da nova fornada. Que só estaria pronta dentro de umas horas.
Aquilo para a minha família era a confirmação, o teste decisivo. Como se pode estar horas, parado num degrau de uma padaria? Contudo, para mim, a espera não me afligia, a rua era um desfile infindável de histórias. Passavam as pessoas, cada um com seu tom de existência e eu criava uma razão para cada sombra triste, uma narrativa para cada sorriso encoberto. Eu estava apurando esse que é ainda hoje a minha predilecção maior: degustar o mundo como um lugar inacabado, cheio de personagens a quem podemos emprestar um enredo.
Mia Couto in “Jornal de Letras”, 15-28/03/06
Se o Mia Couto era considerado atrasadeco como é que algum dia poderão acreditar em mim?
segunda-feira, 3 de abril de 2006
Aparências
Não sei exactamente porquê mas, na verdade, ninguém dá nada por mim e, portanto, quando digo que fiz isto ou aquilo, as pessoas que me conhecem apenas a aparência e muitas vezes o rompante das palavras, descrêem que eu seja capaz de feitos que não os que se esbarram contra os olhos de toda a gente. Decidi pois adoptar outra estratégia e agora aviso de imediato que fui eu que fiz, adianto que sim que tenho cara de estarola, que já sei que pareço meio destravada mas que até dou uns toques, modéstia à parte, e que sei cozinhar e tricotar e sei lá mais o quê. Nada de extraordinário, de resto, nada que os demais não consigam fazer. A questão é que me parece que aparento uma total incapacidade quanto às lides domésticas e/ou tarefas que impliquem alguma destreza manual ou sensibilidade dita feminina. Às vezes acrescento em tom irónico que sou uma rapariga muito prendada, uma verdadeira fada do lar, o que perpetua apenas a desconfiança dos presentes e em nada altera a opinião inicial. Há tempos fiz uma camisolinha para a filhota da P. Ofereci-lha na escola por falta de tempo, estava com medo que quando a camisolinha chegasse a minha sobrinha emprestada estivesse já grandota. Passou uma colega nesse preciso momento e abeirou-se de nós. A história repetiu-se. Disse fui eu que fiz! Ela olhou-me e disse ah, foste nada… a P. reiterou Foi ela pois! E acrescentou mais umas quantas deixas. Passados uns cinco minutos a outra colega ainda insistia Mas foste mesmo tu? Lá desfiei o rosário de sempre e como sempre lá se riram do relato das minhas capacidades ocultas. Uma coisa é certa, se há coisa que não consigo mesmo ser é convincente. Posso provar que sou capaz mas não consigo convencer ninguém.
Dispersos
Estava no aeroporto Charles de Gaulle, após dez horas de voo, quando comecei a tentar decifrar os títulos dos jornais em francês. Perdida nas subtilezas da língua e tendo em conta os meus parcos conhecimentos de francês, ainda oscilei perante a notícia. Uns títulos depois, e isto porque os nossos amigos franceses mesmo num aeroporto internacional pautam pela quase ausência de livros, periódicos ou revistas noutras línguas que não a francófona, percebi que o Papa João Paulo II tinha de facto morrido. Durante os últimos anos da doença de João Paulo II, o meu pai mostrava-se chocado e indignado, não tanto pela imagem de decadência progressiva mas, acima de tudo, pelo sofrimento notório e por achar que João Paulo II, como qualquer homem no ocaso da sua vida, devia ter o direito a morrer descansado e, por conseguinte, retirar-se da vida pública para em paz esperar pelo seu momento, recolher-se para aguardar em serenidade, longe dos holofotes do carpir colectivo e de algum voyeurismo perverso, a libertação do corpo a que a doença condenara. A grandeza dos homens não reside no desvelar da intimidade da sua dor.
domingo, 2 de abril de 2006
Cantinho Escondido
Dentro de cada pessoa
Tem um cantinho escondido
Decorado de saudade
Um lugar para o coração pousar
Um endereço que frequente sem morar
Ali na esquina do sonho com a razão
No centro do peito, no largo da ilusão
Coração não tem barreira, não
Desce a ladeira, perde o freio devagar
Eu quero ver cachoeira desabar
Montanha, roleta russa, felicidade
Posso me perder pela cidade
Fazer o circo pegar fogo de verdade
Mas tenho meu cantinho cativo pra voltar
Eu posso até mudar
Mas onde quer que eu vá
O meu cantinho há-de ir
Dentro
Tem um cantinho escondido
Decorado de saudade
Um lugar para o coração pousar
Um endereço que frequente sem morar
Ali na esquina do sonho com a razão
No centro do peito, no largo da ilusão
Coração não tem barreira, não
Desce a ladeira, perde o freio devagar
Eu quero ver cachoeira desabar
Montanha, roleta russa, felicidade
Posso me perder pela cidade
Fazer o circo pegar fogo de verdade
Mas tenho meu cantinho cativo pra voltar
Eu posso até mudar
Mas onde quer que eu vá
O meu cantinho há-de ir
Dentro
Marisa Monte, Universo ao Meu Redor
sábado, 1 de abril de 2006
Crónica da Carne Seca
Lembrei-me pois que das duas únicas vezes que fui ao Brasil trouxe para o meu querido pai carne seca. Na verdade nunca foi pessoa de grandes exigências e sempre que eu viajava sorria-me feliz e dizia-me apenas para me divertir e aproveitar tudo, tudinho mesmo. Quase sempre ele e a minha mãe iam buscar-me ao aeroporto e quase sempre ele estava nas primeiras filas em frente à porta de desembarque de mão no ar para se fazer ver no meio da multidão, sempre feliz por me/nos ter de volta, ansioso pelo nosso regresso. Qualquer ausência era grande e ao fim de sete ou oito dias ele próprio, meio a sério meio a brincar, se afirmava saudoso. Quando regressei da última vez e vi o seu espaço vago diante dos meus olhos, o prenúncio do seu iminente afastamento súbito e inesperado e abracei a minha querida mãe sozinha, senti, ainda sem saber, que aquela tinha sido infelizmente a primeira vez, de todas as seguintes que me esperarão, que tal acontecia. A saudade não espera pela partida definitiva, impõe-se ao menor sinal do coração.
Mas contava eu que, embora o meu querido pai não fosse exigente e se contentasse com os pequenos prazeres da vida, não era homem de sucedâneos ou substitutos em termos gastronómicos, logo, a feijoada à brasileira para fazer jus ao seu epíteto tinha de ter carne seca impreterivelmente. Assim terá sido habituado também pela sua mãe, a minha avó brasileira. Este seu desejo não foi ao longo dos tempos fácil de realizar. Lembro-me de apenas um local em Lisboa vender a dita carne que, diga-se em abono da verdade, sempre me repugnou um pouco em virtude do cheiro intenso que exala aquando da sua cozedura. O próprio feijão preto era igualmente difícil de encontrar. Várias pessoas foram trazendo carne seca ao meu pai, directamente do Brasil, e sei que lhes ficou grato até ao último dos seus dias.
Quando lhe perguntei o que queria que eu lhe trouxesse do Brasil, chegada que era a minha vez de lá ir, a resposta foi categórica: carne seca, pois claro. Obviamente o desejo foi satisfeito de ambas as vezes, embora da última ele não tenha já podido provar, mas de ambas senti um calafrio ao pensar que na alfândega, ao pedirem-me para abrir a mala, poderiam confiscar-me a carne seca, repousada que estava bem no fundo da mala, escondida com a roupa desalinhada e uns quantos pares de havaianas de cores e padrões diversos. A sensação de prevaricação não se comparava ao desgosto de depois de termos carregado quatro ou cinco quilos de carne seca a abandonarmos mesmo às portinhas da liberdade e de chegar ao pé do meu pai de mãos a abanar, despojada da tão desejada iguaria. Dispor-me-ia até a ir a Fátima a troco da carne seca, jamais poderia desiludir o meu querido pai dessa forma. Sei, contudo, que me diria Deixa lá, filha. Há coisas piores... sobrepondo sempre a felicidade do reencontro à falta da carne seca. Por graça não se sabe de quem, do acaso certamente, sempre cheguei com a encomenda e aqui entendi melhor a dimensão que as coisas aparentemente pequenas podem tomar quando não existem perto de nós.
*Recomenda-se a leitura desta crónica ao som da Feijoada Completa de Chico Buarque acompanhada de uma caipirinha.
Mas contava eu que, embora o meu querido pai não fosse exigente e se contentasse com os pequenos prazeres da vida, não era homem de sucedâneos ou substitutos em termos gastronómicos, logo, a feijoada à brasileira para fazer jus ao seu epíteto tinha de ter carne seca impreterivelmente. Assim terá sido habituado também pela sua mãe, a minha avó brasileira. Este seu desejo não foi ao longo dos tempos fácil de realizar. Lembro-me de apenas um local em Lisboa vender a dita carne que, diga-se em abono da verdade, sempre me repugnou um pouco em virtude do cheiro intenso que exala aquando da sua cozedura. O próprio feijão preto era igualmente difícil de encontrar. Várias pessoas foram trazendo carne seca ao meu pai, directamente do Brasil, e sei que lhes ficou grato até ao último dos seus dias.
Quando lhe perguntei o que queria que eu lhe trouxesse do Brasil, chegada que era a minha vez de lá ir, a resposta foi categórica: carne seca, pois claro. Obviamente o desejo foi satisfeito de ambas as vezes, embora da última ele não tenha já podido provar, mas de ambas senti um calafrio ao pensar que na alfândega, ao pedirem-me para abrir a mala, poderiam confiscar-me a carne seca, repousada que estava bem no fundo da mala, escondida com a roupa desalinhada e uns quantos pares de havaianas de cores e padrões diversos. A sensação de prevaricação não se comparava ao desgosto de depois de termos carregado quatro ou cinco quilos de carne seca a abandonarmos mesmo às portinhas da liberdade e de chegar ao pé do meu pai de mãos a abanar, despojada da tão desejada iguaria. Dispor-me-ia até a ir a Fátima a troco da carne seca, jamais poderia desiludir o meu querido pai dessa forma. Sei, contudo, que me diria Deixa lá, filha. Há coisas piores... sobrepondo sempre a felicidade do reencontro à falta da carne seca. Por graça não se sabe de quem, do acaso certamente, sempre cheguei com a encomenda e aqui entendi melhor a dimensão que as coisas aparentemente pequenas podem tomar quando não existem perto de nós.
*Recomenda-se a leitura desta crónica ao som da Feijoada Completa de Chico Buarque acompanhada de uma caipirinha.
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