Quando a canícula do Estio se abateu sobre a aldeia, a mercearia não foi excepção. Exalava um calor infernal vindo das profundezas do estabelecimento. Lá dentro, numa tarde de Sábado paulatina, apenas a irmã da dona da mercearia. Nestes raros momentos de silêncio apenas entrecortado com o silvo da ventoinha no tecto e uma de pé junto ao expositor de batatas fritas e outras tentações do demo das enfermidades cardiovasculares, a conversa envereda por caminhos mais íntimos, característicos da esfera menos pública de cada um dos frequentadores do local. Foi assim que fiquei a saber, por exemplo, que homens, gajos, para a dona é só uma vez, uma vez por semana, disse, e que duma outra, na incapacidade de enganchar um pau recurvo na ponta com o laço pendurado da ventoinha para fazer a mesma funcionar, estava já há um mês à míngua de se abandonar sem reservas e sem culpa nos braços de Eros com um colito no regaço de Baco. Surpreendeu-me nesse dia. Não pela franqueza do seu comentário, o desabafo sincero e natural, mas porque nesse mesmo dia a minha mãe estava também presente e não sendo propriamente desconhecedora dos mistérios e pulsões do corpo, passaria de certo muito bem sem tal confissão pungente. Duma outra vez ter-me-á dito que os homens, quanto mais despachadas as mulheres, pior, fogem logo, referindo-se a quem anteriormente tinha designado por Eh pá, agora tenho um gajo lá em casa que me faz o almoço. Que havia eu de dizer? Ah pois, pois, um sorriso aqui outro ali e vá de sair da mercearia. Foi assim também que saí nesta tarde escaldante de Agosto.
A irmã da dona refogava-se de calores. Quando me aproximei da ventoinha de pé para escolher uns bolinhos secos dentro de uma cesta sobre a arca frigorífica, a mulher perguntou-me é adbogada de quê? omitindo o bocê tão característico. Confesso que ainda hesitei e me revi em Robert deNiro no filme "Analyse this", Are you talking to me? Para nos entendermos na mercearia não basta apenas dominar a língua, tem de se partilhar um estado de espírito, um certo modo de perspectivar a realidade. Foi isso que me sucedeu naquela tarde de Agosto.
Expliquei à mulher que não era advogada, era professora. E a conversa começou a fluir assim que me aproximei da caixa. No ambiente intimista, confessei-lhe que ia pela primeira vez fazer sangria. Ah… respondeu ê na gosto muito, ê bebo é muita água acrescentei que também eu. Ela disse memo à noite lebo uma garrafão de água pró pé de mim pois, eu também tenho uma garrafa de água sempre, e ela disse inda onte, bebi uma pinguinha de cerbêja e começou logo a fazer-me mal ao estômago pois, pois na posso, nem ice tea nem nada Conclui que seriam mesmo problemas de estômago, até porque anteriormente, e isto de uma vez que eu e o H. esperávamos que ela nos fizesse a conta, a mulher tomou-se de esgares e esfreganços no abdómen de frente para a caixa registadora, soluços e quase regurgitanços de lado para a montra dos queijos e refrigerados. Oferecemos-lhe ajuda. Recusou-a, recompondo-se de seguida. E a mulher continuou Isto é… Olhou-me fixamente à espera que lhe providenciasse a palavra em falta e o inexplicável aconteceu, como um empurrão ou uma voz que me gritasse ao ouvido, saiu-me irremediavelmente a palavra pululante na minha cabeça ÚRSULA. A mulher visivelmente satisfeita pelo entendimento comum disse Pois, é uma úrsula Ainda acrescentei E deve ser de origem nervosa... Ela concordou com o meu diagnóstico Ah pois! Despedi-me e sem mais abandonei a mercearia, envergonhada de mim mesma, preocupada com este linguajar inesperado, perdida de riso de mim própria mas incapaz de desfazer o equívoco. Bem sei que várias vezes sou intérprete da minha própria mãe quando ela arrisca a falar nortês e pronunciar palavras indecifráveis aos ouvidos saloios: manco para coxo, testo para tampa da panela, sertã para frigideira, cresceu para sobrou, cruzeta para cabide. Este episódio, no entanto, foi longe demais nos anais da minha história de tradutora-intérprete. Temo agora as consequências do mesmo. Mesmo sabendo que os professores não têm prestígio algum, consigo prever uma discussão à antiga na mercearia Ó pá, mas já na te disse que né assim que se diz… e a proprietária da Úrsula Mas né assim o quê? Né assim o quê? Tens a mania que sabes mais cós outros. Até aquela qué professora disse quera úrsula e tu tas a dizer que na é? Ah pois é.
foto: minha