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segunda-feira, 30 de julho de 2007

A cidade e a aldeia

Viver na aldeia é giro. Viver na aldeia é saudável. Viver na aldeia é giro, saudável, divertido, tranquilo, didáctico, colorido. Da minha aldeia vejo o mar, cheiro a flor das nespereiras algures antes da primavera, aprendo quando podar as hortênsias, semear a batata mesmo que batata não semeie, sei quando é o tempo dos alperces, se aquele foi um ano de alperces assim aparecerá à minha porta a vendedora com o cesto. Por viver na aldeia tenho as crianças à porta no dia de Pão-por-deus, cantam-me as Janeiras quando o Natal se despediu e pedem ajuda para a quermesse lá para Julho. Viver na aldeia faz bem à saúde. Viver na aldeia faz bem à alma. Às vezes faz-me falta a cidade, o burburinho e o bulício, o movimento, a gente que vai e vem. Às vezes faz-me falta ser quem fui para continuar a ser a cidade.

domingo, 29 de julho de 2007

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Vida boa

O que eu queria mesmo era estar aqui
esticada ao sol
com a carícia do calor a castigar-me o corpo
a beber uma caipirinha ou uma água de coco
a comer uma espetadinha de camarão
ou um pastelinho
ou um queijo assado
sem nada para fazer
nada para pensar
só com o marulhar fininho das ondas na areia
e o gemido do coqueiros

Maceió
foto: minha

Parabéns Dinha!


Sempre a meu lado para me ralhar, repreender, criticar aqui e ali, apoiar, incentivar, ajudar, mimar muito, acarinhar, amar. Faz hoje anos e, como por ela tenho mais sentimento que estas pequenas palavras, aqui ficam os meus parabéns, querida Dinha!

quinta-feira, 26 de julho de 2007

A minha casinha

Eu gosto da minha casinha. A minha casinha é amarela com portadas verdes. A minha casinha tem um jardim. Da minha casinha vejo o mar. A minha casinha fica a meio caminho entre o mar e a cidade. E, na minha casinha, posso fazer o que quero. Na minha casinha posso escrever, ler, ouvir música, cozinhar, dormir, descansar, cantar, rir e falar. Na minha casinha as palavras são bem-vindas. Na minha casinha posso ver televisão. Na minha casinha posso ver televisão e adjectivar a contento a entrevista do primeiro-ministro. Na minha casinha posso perorar sobre a entrevista do primeiro-ministro, classificar o desempenho do primeiro-ministro, aplicar uns impropérios libertadores, adjectivar abundantemente o primeiro-ministro, socorrer-me de vocábulos eloquentes e variados, recorrer a estruturas sintácticas e construções semânticas politicamente incorrectas e/ou socialmente reprováveis – só as felinas o poderão avaliar- e dizer exactamente o que quero e o que penso, dentro da minha casinha. A minha casinha é amarela com portadas verdes. A minha casinha tem um jardim. Gosto muito da minha casinha.

também no GR

Oberammergau


foto: minha

terça-feira, 24 de julho de 2007

Doze letrinhas apenas

Se se for daqui para aqui é muito provável que se passe por aqui. E este aqui, além de uma aldeola curiosa com os Alpes em pano de fundo, é uma palavra com doze letrinhas apenas: OBERAMMERGAU, duas menos do que Neuschwanstein, Carlos.
Oberammergau é uma terrinha abençoada pelo turismo que acorre em massa para ver as pinturas exteriores nas fachadas das casas – Lüftlmalerei- mais uma dúzia de letritas, testemunho do passado barroco financeiramente favorecido e catolicamente devoto, comprar uns souvenirs, regra geral, objectos em madeira talhados manualmente – Holzschnitzerei- quinze letras apenas, figuras de caminhantes ou apenas um Edelweiss.
De dez em dez anos, Oberammergau é palco da representação da paixão de Cristo em agradecimento à graça divina concedida com o desaparecimento da peste e do sofrimento causado pela Guerra dos 30 anos. Os actores são todos amadores, os homens, diz-se, não cortam as barbas e cabelos durante muito tempo para serem fisicamente mais fiéis ao tempo que retratam. No ano 2000 teve lugar a 40ª representação, a próxima será portanto em 2010, os preparativos já começaram, e, estima-se, que as barbas a crescer também. Tudo isto pela módica quantia de doze letrinhas apenas:

O B E R A M M E R G A U.

foto: minha

sexta-feira, 20 de julho de 2007

lichtung

manche meinen
lechts und rinks
kann man nicht velwechsern
werch ein illtum


Ernst Jandl

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Ingratos insensíveis

O meu terraço é uma obra de arte. Tem a pincelada vigorosa e espessa de Van Gogh, a violência cromática de Kandinsky, eventualmente com um laivo de Gabriele Münter, uma inclinação que mais parece coisa do Hundertwasser, esporadicamente uma garrafa de cerveja a indiciar que Warhol passou por aqui - a sopa ainda não chegou à construção civil - e a coroar tudo isto uma tira amarela por cima do rodapé que bem podia ter sido da autoria de Piet Mondrian - como odeio aquelas riscas-, isto para não falar nos dias em que até o Botero se celebra no espaço, quando a balzaquiana contempla o feito. E depois ainda há gente que telefona ao vendedor, um tal engenheiro, e reclama, que isto e que aquilo, que só cá põem sapateiros a trabalhar, que aquilo é uma vergonha e é inadmissível e que se se põem ali ao sol, só podem olhar para o céu, que se olham para o pavimento ainda têm uma coisinha má e tal e ainda lhe enviam a conta do psiquiatra e o engenheiro põe-se Ó sodotora para cá, sodotora para lá, e que pronto não sabem de onde vem a infiltração e que fazem o melhor que podem e ela atira-lhe que o melhor é muito mau e que não quer cá mais sapateiros e outros caceteiros metidos a pedreiros e construtores e outros pantomineiros. Anda uma pessoa a esforçar-se por lhes proporcionar acesso directo à arte, apenas com a janela do quarto a separar-se-lhes, e ainda se queixam. Ingratos, é o que é.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Da ilegibilidade das cidades

Se o amor acabasse, pensaram saindo do táxi com as malas e partilhando ainda o mesmo guarda-chuva antes de partirem para destinos diferentes, se o amor acabasse, todas as cidades se tornariam ilegíveis.

Teolinda Gersão,(2007), A Mulher que prendeu a chuva, Lisboa, Sudoeste Editora.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Excursionistas, uni-vos!

Que tinham vindo de Teixoso, de Cabeceiras de Basto. A convite de quem? perguntou-se. Do Partido Socialista, pois. A seguir dois entrevistados. Vieram a Mafra de excursão e depois, antes do regresso ao Alandroal, fizeram um desvio à capital para saudar António Costa. Felizmente não faço excursões e doravante nem me atreverei a pensar em tal. É que os motoristas são uns rapazes voluntariosos e sabe-se lá a quem acabaria a dar vivas.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Página 161a

Procurei uma citação por motivos estritamente profissionais e deparei-me com a página 161:

No fundo, o dever de educar consiste em ensinar as crianças a ler, iniciando-as na Literatura, em dar-lhes os meios de julgarem correctamente se sentem ou não «a necessidade dos livros». Porque, se se pode perfeitamente admitir que alguém rejeite a literatura, é intolerável que seja – ou julgue ser- rejeitado por ela. Ser excluído dos livros - mesmo daqueles que nos fazem falta-, é uma enorme tristeza, uma solidão dentro da solidão.

Daniel Pennac, Como um Romance.

Página 161

E respondendo a este desafio, cá vai a minha página 161. Hoje o livro que tenho aqui mesmo ao ladinho é Morte em Veneza do Thomas Mann, mas na altura em que a Cenourinha do Lado lançou o desafio, o livro era o Guia American Express da Grã-Bretanha. A Morte em Veneza atinge apenas as 96 páginas e o guia era o que, de facto, aqui estava e continua. Por isso aqui vai:

Os jardins barrocos, com alamedas radiais ladeadas de majestosas tílias, plantas raras e canteiros formais foram cuidadosamente restaurados.

...e isto dizem eles de Hampton Court, um palácio de Henrique VIII, perto de Londres.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Catorze letrinhas apenas


Inteiramente dedicado ao Carlos, com carinho.

As partidas de Mercúrio

Um burburinho constante vindo daquele lado da sala. Não que fosse muito estridente ou sequer perturbador. Indiciava porém alguma impaciência. Com o decorrer do tempo e depois de algumas chamadas de atenção, e também porque partilhávamos o mesmo espaço à mesma hora, fui-me apercebendo de onde vinha a inquietude.
Uma rapariga, não recém-chegada à escola pelo aparente à-vontade com que se deslocava, as calças sempre um palmo abaixo da linha de cintura, amiúde visíveis as réstias de roupa interior, o cabelo ora pelos ombros, ora apanhado e sempre, mas sempre, alguma inquietação e ansiedade na procura do computador disponível que lhe permitisse navegar por esse mundo fora. A impaciência frente a frente com o ecrã era presença habitual nas suas estadias no Centro de Recursos. Inicialmente identifiquei-me com a rapariga Caramba! Tamanha lentidão! Dá para adormecer aqui! Com a passagem do tempo e mesmo em dias em que a net voava pelas auto-estradas virtuais do espaço cibernético, a impaciência da jovem mulher em botão não debandava. O coração, o coração talvez, pensei, que o coração é um bicho matreiro e prega partidas aos prevenidos, quanto mais aos ainda jovens, carecidos de escudo afectivo contra as malvadezas do dito. E como também o coração tem os seus limites, cedo arrumei na estante a hipótese das partidas do órgão sentidor. Não, o coração não era.
Certo dia, quando estava com uma aluna minha, a rapariga voltou aos acessos de intemperança. A amiga a seu lado sorriu e sorriu-me e, dado o à-vontade, perguntou que raio significava aquela palavra. Respondi. A outra suspirou de alívio. Dias e dias à volta com a palavra mas nada de se figurar um sentido, um significado que fosse.
Abeirei-me delas. A rapariga, nos seus dezassete anos, sabia-o agora, tinha dificuldades hercúleas em decifrar vocábulos que lhe apareciam vezes sem conta no ecrã à sua frente. Entabulámos conversa, tocou para a entrada entretanto e cada uma foi à sua vida. Na semana seguinte o mesmo problema e o meu auxílio foi solicitado como tábua de salvação. E se eu não estivesse aqui? A rapariga respondeu Mas está e retorqui E se estivesses em casa sozinha? A rapariga encolheu os ombros, desta vez, resignada com a incapacidade de processar a informação que corria lampeira e sem vergonha no ecrã à sua frente.
Uma ocasião, questionou-me A Setora anda sempre com livros? Quase sempre. Porquê? A rapariga foi lesta na resposta Odeio ler! Como odeias ler? Passas a vida a ler aí no computador! Sim, retorquiu, Mas é diferente. A Setora já viu o camalhaço que são Os Maias? Não só vi, como li, respondi-lhe. Que cena! Disse-me. Aproveitei a deixa Então, mas o teu problema é o tamanho do livro? Até é, não tenho tempo de ler aquilo. Procurei o O nas estantes da literatura lusófona e estendi-lhe Os da minha rua do Ondjaki. Assim está melhor? Ela riu-se Mas isso presta? Tão fininho? Ri-me. Na adolescência raramente nos satisfazemos com algo. Leva e lê.
Para a semana falamos.
Na semana seguinte a rapariga não apareceu. Tinha sido acometida de um catarro forte que a obrigara à reclusão do lar, a acrescer a isto, o Mercúrio estava retrógrado e, portanto, o computador de casa finou-se com um chiar fininho para nunca mais dar conta de si. É sabido que o Mercúrio é um péssimo conselheiro de todas as maquinarias, engenhocas e aparelhagens eléctricas e electrónicas.
Quando regressou, estendeu-me o livro Já li! E então? Questionei É muita louco! Quem é este Ondjaki? Aconselhei Vais à net e fazes uma pesquisa. Ah mas esta malta dos livros não está na net. A Net é muito à frente!!!! disse convicta. Deixei-a sossegada e esperei pela semana seguinte. Veio ter comigo Eh, ganda cena, setora! Já sei quem é o Ondjaki! Boa! respondi. Afinal, estava ou não estava na net? Regressei ao trabalho e perto do toque a rapariga veio ter comigo. Setora? Sim! Há mais livros destes?

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Wonder

Nisto do viajar as pessoas distinguem-se como na vida: há os mais entusiastas e excitados, logo no check-in da Portela, há os rabujentos, também evidentes logo no check-in da Portela, e que prolongam as reclamações, reparos e remoques entre o ir e o vir até à recolha de bagagem também na Portela, há os mais recatados e discretos, poucos é certo, os contemplativos, os que querem apenas acrescentar um visto à sua lista de locais a visitar antes da partida definitiva, os que tratam os monumentos e cidades por tu e também aqueles para os quais o local de visita presente é sempre pior do que quase todos os anteriores que visitaram.
Não sei exactamente onde me coloco mas sei que ao visitar um local que me agrada gosto de tirar uma fotografia no dito. Quando se viaja a dois, falta sempre um que tire a fotografia aos dois, portanto há que recorrer à simpatia dos estranhos. Na era das máquinas digitais, a coisa corre bem. Os fotógrafos mais tímidos pedem para ver se a fotografia ficou bem aos fotografados, os mais precavidos avisam apenas Vou tirar outra. A vida facilitou-se imenso com o ocaso das máquinas analógicas e, caso tivesse uma máquina digital daquela vez em que fizemos a travessia de ferry para a Estátua da Liberdade, nada daquilo teria acontecido e hoje podia contemplar a perspectiva perfeita a três, tal como a tinha idealizado.
À medida que deixamos Manhattan e lentamente nos aproximamos de Liberty Island, a Estátua vai adquirindo outra beleza pela proximidade, pela rotação. Acima de tudo, porém, pela imponência que surge de repente ali tão perto, e se vista de terra a estátua é um ponto de exclamação verde contra o azul do rio, estrategicamente colocada tão perto de Ellis Island, a porta de entrada de milhões de imigrantes também em procura da liberdade, a aproximação deixa bem clara a expressão, as vestes e o movimento do corpo, a tão famosa coroa e o facho flamejante. Nesse dia o barco estava carregado como sempre, com particular incidência num gurpo de mulheres asiáticas qu ao ritmo do deslizar mais veloz sobre o rio, se movimentavam como formiguinhas excitadas acorrendo ora de um lado ora de outro, aproveitando vorazmente a fugacidade com que Miss Liberty se oferecia, comportamento absolutamente compreensível por parte das asiáticas, de resto: não é todos os dias que nos encontramos frente a frente com um dos mais famosos ícones do mundo carregado de símbolos, a coroa com sete pontas e vinte e cinco janelas, a luz e a tábua com a data da Independência dos Estados Unidos, a imagem feminina iluminando os recém-chegados, libertados das amarras da velha Europa, pelo trilho da liberdade em sintonia com as palavras que não vemos mas sabemos existir no interior do pedestal. Abeirei-me de uma das turistas asiáticas e pedi-lhe que nos tirasse a fotografia, a tal a que me faz falta ali na estante da sala. A rapariga foi lesta, agarrou na máquina, Smile, Cheese, e outra vez, Smile mais cheese e duas fotos tiradas, agradeci, ela rumou para outro lado do barco e cada uma foi à sua vida. A minha, por exemplo, inclui duas fotografias com dois cromos sorridentes, ela num cantinho com meio rosto mal medido dentro do rectângulo, ele em grande plano e a Estátua da Liberdade a espreitar-lhe sobre o ombro. Mais artístico é impossível.


Se encontrarem uma jovem asiática que tenha feito a travessia de ferry para a Estátua da Liberdade algures pelo fim da manhã num Julho pretérito, já sabem a quem atribuir os créditos da foto.