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sexta-feira, 31 de março de 2006

Vamos fugir...

Paraty, 31 Março 2005

pra esse lugar, baby
pra outro qualquer lugar ao Sol
outro lugar ao Sul*

*inspiração no Vamos Fugir de Gilberto Gil

quinta-feira, 30 de março de 2006

Balanço

Mesmo sem Primavera à vista, apenas o céu cinzento, começo hoje a ter a sensação de dever cumprido. Começará dentro de uma hora o meu último dia de aulas do segundo período e embora tenha sempre, e sempre tenha tido, a sensação de que mais e melhor se pode fazer quando se é professor, tenho desta vez uma discreta satisfação por, apesar das vicissitudes, ter conseguido chegar até aqui com todos os cansaços do mundo, angústias e mágoas e não me ter deixado derrotar. Estou certa de que lá onde estará o meu querido pai ficará também satisfeito com a sua filhota. Dou graças portanto a esta força que me veio não sei de onde mas que se alicerça na ajuda inestimável da minha querida mãe, do meu mais-que-tudo, da minha querida D. e de todos os colegas e amigos que se chegaram a mim e mesmo sem palavras me emprestaram a sua solidariedade e carinho e a todos vós que me leram ao longo destes meses e que de igual forma me deram alento para que a vida me voltasse a sorrir.

imagem: Vincent Van Gogh, Amendoeira em Flor

terça-feira, 28 de março de 2006

Primavera


Primavera
lenta e longa
é
a espera.
Sem
raio de sol
céu azul
margarida
girassol
malmequer
ou
gerbéra.
Primavera
longa
e
lenta.
Primavera?
Quem espera
desespera.

imagem, Gustav Klimt

segunda-feira, 27 de março de 2006

Contrabandista de Almas

O escritor é um ser que deve estar aberto a viajar por outras experiências, outras culturas, outras vidas. Deve estar disponível para se negar a si mesmo. Porque só assim ele viaja entre identidades. E é isso que um escritor é — um viajante de identidades, um contrabandista de almas. Não há escritor que não partilhe dessa condição: uma criatura de fronteira, alguém que vive junto à janela, essa janela que se abre para os territórios da interioridade.

Mia Couto, Pensatempos

imagem: marcador de livros

Por isso gosto tanto da escrita.

sábado, 25 de março de 2006

Muitos Parabéns!

A Patrícia que eu conheci aqui

num encontro Bookcrossing organizado por mim com o apoio do meu mais-que-tudo num longínquo e tórrido dia de Setembro, esteve hoje na rádio com o seu blogue.
Viva a tecnologia que nos permite galgar distâncias e um beijo ENORME de saudades, querida Patrícia!
E uma beijoca à Fantasma por ter acreditado que o blogue da Patrícia dava um programa de rádio.

Crepúsculo

Morro Dois Irmãos, Rio de Janeiro, Março 2005

sexta-feira, 24 de março de 2006

Sonhos

Há sonhos que têm data marcada, contrariamente aos pesadelos que batem à porta sem aviso prévio. Assim foi, portanto, que acalentando ao longo de meia vida o sonho de um dia ver o Rio de Janeiro consegui pois exactamente há um ano realizá-lo. Li há pouco que ir ao Brasil e não ir ao Rio de Janeiro é como ir ao Vaticano e não conhecer Roma. Acredito que o Brasil estará cheio de lugares belos e misteriosos, mas para mim, assim era, e por assim ser, prometera a mim mesma que a primeira vez que pisasse as Terras de Vera Cruz teria de ser o Rio de Janeiro, a cidade que me acompanhara desde sempre, onde se refugiava a minha alma errante e onde residia parte da minha identidade.
A minha avó paterna era paulista, paulistana de nascimento, não perdeu nunca o sotaque doce e melódico desse português tão quente falado do lado de lá desse mar imenso. Dizia quêbrou, mêlão, isso sê faz e pronunciava o nome do meu pai como ninguém Fernandinho cheio de sotaque carioca, mesmo sendo ela própria o antagonismo desse doce falar. Com ela vieram também os hábitos gastronómicos, a feijoada à brasileira, com farofa, couve mineira, arroz branco e laranja, o queijo com goiabada e outras receitas mais, parte integrante de mim e das quais a minha mãe é a guardiã mais dedicada e talentosa. Ao longo da minha infância eram frequentes as vistas da Titia Didê, irmã da minha avó e tia do meu pai. Era algo extravagante e desinibida para os padrões lusos, tinha uma vida pouco convencional e esbanjava charme mesclado com o exotismo do linguajar e fisionomia voluptuosa.
E foi portanto que extasiada me passeei pela minha própria essência, pela imensidão da minha alma híbrida e mestiça ao calcorrear essa cidade verdadeiramente maravilhosa, para a qual as palavras me são curtas e pequenas, breves e encarquilhadas, tolhidas pela magnitude da tanta beleza e foi por isso que chorei de emoção quando vi do alto a cidade a meus pés e foi por isso que me enleei na nostalgia da chuva carioca sobre o mar de Ipanema e que ouvia as Águas de Março apenas na minha imaginação perante três dias de chuva que fechavam o Verão e que vi em sonhos passar a Garota em Ipanema e sentados no Veloso lá estavam Tom Jobim e Vinícius de copo de whisky na mão, mesmo sabendo que tudo isso é mito e que a tão famosa garota foi escrita longe daquele boteco. E imaginava Chico Buarque com os seus olhos límpidos cor de mar pousando nostálgicos sobre o oceano e ele passeando-se displicente pelo calçadão no Leblon. Foi assim também que ouvia em surdina o som da bateria no Carnaval e o Samba descendo dos morros para ser a própria cidade. E, vivendo no meu sonho também o sonho do meu pai, desce-me a tranquilidade de saber que também tudo isso ele viu através de meus olhos e coração escancarado. Há coisas que só o coração pode entender...

Foto: Rio de Janeiro, Março 2005

terça-feira, 21 de março de 2006

Ainda a poesia

Na verdade, a escrita não é uma técnica e não se constrói um poema ou um conto como se faz uma operação aritmética. A escrita exige sempre a poesia. E a poesia é um outro modo de pensar que está para além da lógica que a escola e o mundo moderno nos ensinam. É uma outra janela que se abre para estrearmos outro olhar sobre as coisas e as criaturas. Sem a arrogância de as tentarmos entender. Apenas com a ilusória tentativa de nos tornarmos irmãos do universo.

Mia Couto, Pensatempos

Poesia

o teu sono anoiteceu mais que a noite
e hei-de escrever-te sempre sem que nunca
te escreva sei as palavras que fechaste
nos olhos mas não sei as letras de as dizer
ensina-me de novo se ensinares-me for
ir ter contigo ao teu sorriso ensina-me
a nascer para onde dormes que me perco
tantas vezes numa noite demasiado pequena
para o teu sono num silêncio demasiado fundo
dormes e tento levantar a pedra que te
cobre maior que a noite o peso da pedra que
te cobre e tento encontrar-te mais uma vez
nas palavras que te dizem só para mim
o teu sono anoiteceu mais que as mortes
que posso suportar e hei-de escrever-te
sempre e mais uma vez sozinho nesta noite

José Luís Peixoto, A Criança em Ruínas

domingo, 19 de março de 2006

Dia do Pai

A língua é uma floresta densa e labiríntica que tanto nos acolhe como nos responde com ciladas ardilosamente dissimuladas nas suas profundezas. Vem isto a propósito do Dia do Pai, não o primeiro que passo sem estar com o meu querido pai mas o primeiro que não posso fisicamente partilhar com ele. Quando num destes dias de bombardeio intenso de publicidade ao dito dia dei por mim a pensar lamuriosamente Dia do Pai… do Pai que já não tenho, recuei de imediato perante a falta de acuidade linguística, a minha própria falta e por ter caído numa das armadilhas da língua. Recompus-me e dei-lhe para trás, à língua, que me impunha esta premissa falsa. Na verdade, não creio que pai ou mãe se possam deixar de ter apenas por terem partido. Ter pai ou mãe situa-se além da condição efémera encerrada no verbo e das contingências da sua autoria biológica. Gente há que não teve nunca pai, não porque se lhes ausentasse, apenas porque mais não foi do que procriador, obedecendo às leis básicas da natureza para de seguida procurar uma outra fêmea que desse continuidade à espécie, votando ao abandono os filhos, primeiros, segundos, terceiros, ignorando, desprezando a sua existência e continuando por essa vida, cheios com o seu próprio vazio.
Hoje, portanto, apenas não poderei abraçar o meu querido pai,
tê-lo-ei para sempre, não obstante.

sexta-feira, 17 de março de 2006

Aller Anfang

Os alemães dizem "aller Anfang ist schwer" que é como quem diz, todos os começos são difíceis ou no princípio é sempre difícil. Nada mais certo e mais penoso. Os inícios são travessias dolorosas do presente, uma ponte alicerçada na margem do passado sobre a qual se caminha lentamente rumo à margem do futuro, do outro lado da ponte. No começo desta minha vida nova todos os dias são alvoradas de habituação à ausência, de certificação da saudade, todos os dias me levam a dias novos em que chega essa altura que desejámos antes que não chegasse nunca e, por isso, quando hoje fui à florista encomendar flores para o meu querido pai senti o corpo fora de mim a pedir as flores e um estranhamento inominável pelo gesto, pelas palavras, pelas flores, descrendo ainda no que se já sabe e que vai descendo devagar por mim nesta travessia rumo não sei onde.

Bela é a noite que fica

Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento...
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural...

Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva...

O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...
Assim é e assim seja...

Alberto Caeiro

imagem: Vincent Van Gogh, The Starry Night

quarta-feira, 15 de março de 2006

Pobrezinhos

Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram os pobres. Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida. (…)
O plural de pobre não era «pobres». O plural de pobre era «esta gente». No Natal e na Páscoa as tias reuniam--se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio em que os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de Reis Magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre. Os pobres surgiam das suas barracas, alvoroçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:
- Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.
Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer moedas aos pobres, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto
(- Esta gente, coitada, não tem a noção do dinheiro) (…)
Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros
- O que é que o menino quer, esta gente é assim
e eu entendi que ser pobre, mais que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.
António Lobo Antunes, Livro de Crónicas

Sou uma amante confessa da escrita de António Lobo Antunes. As suas palavras acompanham-me quase sempre e, a espaços, quando uma oportunidade surge, saltam-me a correr pela memória, casando na perfeição com a realidade à minha frente. Hoje foi um desses dias.
Pergunto-me se as inúmeras campanhas para angariar fundos para África não serão mais do que um exercício de caridade de pacotilha, uma afirmação de superioridade, um paternalismo bacoco para com os pretinhos, coitadinhos… e um exercício de afirmação social perante os incautos, resquícios talvez do passado colonialista.

terça-feira, 14 de março de 2006

Da Memória do Corredor

Um dia destes dei comigo passeando sem destino específico ou objectivo concreto no corredor de casa dos meus pais. Não gosto particularmente de corredores nas casas, não servem objectivo algum, apenas o de nos levar para outras divisões da casa como se fossem caminhos. São apenas estações intermédias que adiam a intimidade familiar. Na casa dos meus avós paternos havia e ainda há um corredor imenso, largo e comprido, onde eu e os meus primos brincávamos de quando em quando. Nunca foi sítio onde me sentisse confortável. O tecto era alto a largura imensa e a completar tudo isto havia também por lá pendurado um quadro sinistro de uma santa com os olhos numa bandeja que segurava nas mãos. Ainda hoje, caso me cruzasse com o dito quadro, estou certa de que me não seria indiferente. Talvez o ar sereno mas ascético, a Santa Luzia com a compostura dos santos e a resignação dos sagrados, indiferente e plácida, com os olhos a boiar na bandeja.
Na casa dos meus pais o corredor não é sinistro. Guarda memórias imensas. Logo à esquerda encontramos uma estante imensa recheada de livros de outras eras e completamente diferentes uns dos outros. Dos que mais gosto são os que pertenceram à minha avó, que embora tivesse apenas a terceira classe por ser a única mulher dos três filhos e somente os homens pudessem ter acesso a uma educação formal, era uma leitora ávida de romances como ela dizia e sempre aberta a aprender. Também ela cresceu no meio dos livros. Conta a minha mãe que o meu bisavô, seu pai, comprara uma biblioteca inteira a alguém que dela se queria desfazer. Talvez por isso tenhamos a primeira edição portuguesa d´A Cabana do Pai Thomaz, datada de 1853 e que tem como subtítulo A VIDA dos PRETOS na AMÉRICA. Romance Moral. A minha avó acompanhava-nos com gosto à Feira do Livro e comprava a seu gosto os livros de literatura cor-de-rosa. Na verdade, eu é que os acompanhava a eles, aos meus pais e à minha avó, uma vez que mesmo de tenra idade nunca fui excluída dos périplos habituais pela Feira do Livro. Os livros estão amarelados alguns, a gramagem do papel é diferente assim como a textura, algumas capas ainda decoradas com alguns arrebiques.
Também no corredor estão os troféus de pesca do meu pai, não que fosse um pescador de alta competição, apenas desportivo. De resto, a competição como motor da vida era algo que abominava. Participou pontualmente em concursos de pesca e aqui e ali trazia para casa uma medalha ou uma taça, certificativa da sua participação Foi também no corredor que se travou a Guerra do Camilo e naquele corredor está um dos quadros que o meu pai mais valorizava, não por ter sido pintado pelo meu tio ou por ser particularmente belo do ponto de vista plástico. Lembro-me de como foi parar lá a casa. Algures num passado remoto, o meu pai e a minha mãe foram ao teatro, ritual muito comum nesses tempos. Era uma peça de Strindberg Um Sonho. No final os actores distribuíram pela plateia um pequeno poster enroladinho apenas com um cordel em seu torno. A minha mãe conta que o deles lhes foi oferecido pela mão da actriz Ana Paula. Os meus pais trouxeram-no para casa com todo o carinho ou não fossem inomináveis devotos dos pequenos grandes gestos do quotidiano. O meu querido pai resolveu mandá-lo emoldurar perpetuando o gesto e o ensinamento e hoje continua pendurado no corredor, bem visível, como um memorando para os nossos dias presentes e futuros. A preto e branco lê-se

A Beleza da Vida
é
gratuita.
.

domingo, 12 de março de 2006

Visitas intrometidas

A saudade é uma visita intrometida que chega sem avisar, sem tão pouco se anunciar, apenas um toque na campainha e a entrada de rompante pelo hall da nossa vida, pelo corredor da nossa existência, pela sala do nosso coração Olá! Vim cá passar uns tempos. Instala-se sem pedir licença, sem cortesia ou cerimónia, abandonando-se no sofá de pés descalços, com os dedos abanicando um a um, as pernas estendidas sobre a mesinha de apoio em frente da televisão, de comando na mão, fazendo zapping furioso à nossa vida passada que vemos então correr em séries no pequeno ecrã à nossa frente, sem podermos sequer mudar de canal, apagar os episódios e prosseguir com o que resta e nós ali a olhá-la e ela a acomodar-se Que bem estou aqui! dando um suspiro fundo, ajeitando-se mais uma vez, sem data de partida, impondo a sua presença sem qualquer delicadeza e, quando damos por ela, sentou-se à nossa mesa, estendeu-se pela casa e percorre-a familiarmente descalça como se não existíssemos, como se nada mais pudéssemos ser do que ela própria e mais não pudéssemos respirar e mais espaço não houvesse do que o halo cortante que espalha pelo ar à sua passagem.

sexta-feira, 10 de março de 2006

Memorando

Isto começou há umas duas semanas quando, ao fazer a ronda aos livros numa grande superfície, pousei o olhar inadvertidamente no autocolante pespegado nas capas dos ditos.
Anunciava o Dia do Pai, nada de novo, portanto, nada que eu não soubesse que se aproximava.
Agradecia, contudo, que não me fosse tão despudoradamente declarado.
Hoje da montra duma loja, as letras, espalmadas e definitivas,
gritaram-me
NÃO SE ESQUEÇA DO SEU PAI!
Como se fosse possível.

imagem: Edvard Munch, O Grito

quarta-feira, 8 de março de 2006

Coisas de gaja

E porque hoje é dia da Mulher lembrei-me deste texto muito prosaico, apenas mais um do baú:

A rapariga não tinha casado cedo para os padrões convencionados. Primeiro, porque nunca antes se tinha cruzado com alguém com quem fosse capaz de partilhar a cinzentude do quotidiano, segundo, porque se achava incapaz de suportar a rotina do dia-a-dia, dividida entre detergentes e branqueadores, tachos e panelas, terceiro, e também pelas razões já apresentadas, o mundo era imenso, grande e vasto, e estava à sua espera para ser redescoberto. Vislumbrava sem esforço algum uma imensa panóplia de actividades mais interessantes, mais criativas, mais produtivas do que as desgastantes tarefas domésticas, que apenas desperdiçando tempo, nada de profícuo e extraordinário produzem.
Será que imaginam as horas perdidas na arrumação de tralhas, atoalhados e toalhas, na selecção e triagem de jornais e suplementos, revistas e panfletos? Nas lavagens sucessivas e infindáveis de roupa? Os minutos preciosos desperdiçados à procura da meia condizente com a desirmanada que sobrou? Há sempre uma que sobra, uma que falta, até parece que a máquina da roupa as esconde de propósito, para as mostrar na lavagem seguinte, triunfante Era esta que procuravas? Imaginam os momentos esbanjados a dobrar boxeurs, cuequinhas, tangas e soutiens e outras peças que, quando vestidas, fazem as delícias de tanto quem as veste como quem as contempla, mas uma vez despidas, se metamorfoseiam em cargas de trabalho entediante?
Primeiro separar por cores: brancos só lavam com brancos, vermelhos só com outros tons análogos – carmins, cerises, encarnados, talvez fúchsia, bordeaux –, depois uma máquina de gangas: calças de ganga, vestidos de ganga, tops de ganga e ainda a compra de detergentes antidebotantes e mais uma pastilha anti-calcário a rematar. De seguida, pendurar! Tudo do avesso que o sol come as cores e todos sabemos do buraco do ozono, e por fim, apanhar e ainda dobrar, arrumar e, caso necessário, o recurso ao indispensável ferro de passar. Quantas, mas quantas coisas aprazíveis, poderiam ser feitas neste mesmo tempo de negregura doméstica, de escravidão caseira, de subjugação servil? Quantos momentos de lazer, quantos livros lidos?
E a rapariga, que suspeitava de tudo isto, manteve-se tranquila até ceder aos desígnios de Cupido e consequentemente ser arrastada pela fome voraz das tarefas domésticas e assim amontoaram-se os momentos, multiplicaram-se os minutos, somaram-se as horas com a roupa, com a louça, com a arrumação. E se, ao recostar-se no sofá, avistava um novelito de cotão, adoptava duas atitudes: ou o ignorava ou agarrava na vassoura ou no aspirador, fazendo sumir o dito. Regra geral, adoptava a segunda atitude. Aparecia outro cotãozito mais ou um lixito ainda, como se a presença dos referidos instrumentos de limpeza só por isso, apenas por se apresentar nos locais a limpar, produzisse mais pó, mais lixo, o esterco reproduzir-se, e lá ia mais uma aspiradela, mais uma varredela. De modo que, quando o consorte regressava ao lar, a rapariga estava à beira da cólera. Maldizia veementemente a sua vida de acessório doméstico e praguejar surgia-lhe como uma hipótese plausível lavei a p?#@%& da roupa. Só havia m#§@& por baixo do sofá e os c%#@»!?* dos jornais já se podem levar para reciclar.
Certo é que a rapariga gostava da casa e preferia ser ela, contraditoriamente, a lavar a sua roupa do que prescindir dessa tarefa, que a nossa roupa é a nossa intimidade também e quem a conhece exerce um poder perverso sobre nós. Cada estendal conta a história da família a que pertence, desvelando despudoradamente a sua privacidade, as suas preferências e, quem estende a sua roupa para a rua, oferece-se sem rodeios aos demais transeuntes e vizinhos. Uma nudez preocupante, essa: Olha ali! Já viste a cinta da D. Aurélia? Ainda é pior que os slips tigresse do Sr. Simplício…! Quando o encontrei na escada só conseguia pensar nisso. Já para não falar nas toalhas encardidas da D. Francelina… Uma badalhoca é o que ela é! Cada prédio suburbano salpicado de estendais desavergonhados é uma história a ser contada, um livro à espera de ser escrito.
Amiúde decorava a casa com flores e um belo dia comprou um rotundo molho de gerbérias áureas e luminosas, ofereceu-lhes um lugar de destaque e, qual Pigmalião, contemplou embevecida a combinação algo extravagante, paradoxalmente harmoniosa, das flores douradas com os ramos indomáveis do eucalipto, a única verdura existente na loja. O consorte, ao ser questionado retoricamente sobre a beleza das flores, respondeu beneplácito São lindas, paixão! Tão lindas como as gerbérias de Van Gogh! E a rapariga sorriu, feliz, esquecendo as meias, as cuecas, os detergentes, os branqueadores e as toalhitas, o esterco por baixo do sofá, as pastilhas anti-calcário, os jornais e garrafas para reciclar. Afinal não é todos os dias que se é comparado a um génio, mesmo que este não tenha nunca pintado gerbérias.

sábado, 4 de março de 2006

Sempre os girassóis

O Girassol


De oiro e negro se veste o girassol
Que símbolo mais fiel poderia eu encontrar?
Por mais que olhe para o sol
Metade da sua vida na sombra há-de passar.

José Juan Tablada in A Religião do Girassol

sexta-feira, 3 de março de 2006

Do coração

A D. é das pessoas mais generosas que conheço. Na verdade, como outros amigos dos meus pais e meus, não por afinidade mas por coração, lembro-me dela desde sempre e lembro-me dela sempre da mesma maneira, sempre pronta a ajudar, sem falsas subserviências ou palavras tantas vezes vãs os amigos são para ocasiões. Para a minha querida D., os amigos são para sempre. Não pergunta se queremos ajuda, ajuda, não pergunta se quer que façamos algo, faz. Esteve ao lado da minha querida mãe durante os últimos momentos lúcidos do meu pai, ajudou-a abnegadamente, ajudou-o no seu último caminho. Quando um dia, já longínquo, o meu pai precisou de sangue, ela respondeu que estaria pronta a doá-lo não escondendo nunca que tinha um medo horrível de agulhas. Sempre tomei esse gesto como nobre e generoso. Não se rodeou de silêncios, como outros, de evasivas por esta ou por outra razão. Prontificou-se de imediato, admitindo o seu medo mas colocando-o, sem sequer pensar, em segundo plano. Este será provavelmente dos textos mais difíceis que algum dia escrevi. Não sei como a descrever e jamais terei palavras, actos mesmo, que agradeçam tamanha generosidade e grandeza de alma.
A D. é uma pessoa muito especial também porque apenas quem a conhece bem, sabe como é, não apregoa, não diz que fez, não se tem como boa e generosa. Ela e o meu pai tinham contendas longas em torno do português, às vezes encontrava-os de dicionário em punho, um contradizendo o outro, a D. dizendo-lhe Mas também se pode dizer assim..., facto que dificilmente aceitaria. O meu querido pai lá andava em torno dos seus canhenhos para lhes esclarecer as dúvidas ou simplesmente para alimentar mais um pequena discussão. Não concordavam facilmente ou não fossem ambos detentores de feitios especiais, ambos teimosos, ambos respondões e impulsivos, se necessário fosse. No aniversário do meu pai, porém, não faltava nunca pão-de-ló, feito com todo o carinho pela D. e isto não porque o meu pai tivesse trazido consigo esta tradição da casa de sua mãe, mas porque o meu pai adorava pão-de-ló com queijo da Serra e porque a D. o sabia, brindava-o sempre com esse bocadinho de amor.
Levava-me para a praia em criança como o seu A., também ele uma pessoa tão especial, ambos se lançaram pelos campos para me oferecerem um enorme bouquet de alcachofras no meu aniversário, ambos me fizeram assim como hoje sou e me ajudaram a crescer, a ambos devo experiências únicas, carinhos indizíveis, e ambos são capazes de tudo guiados por esse coração tão grande mas que ambos escondem tão bem, mesmo um do outro. Foi com enorme emoção, portanto, que me foram padrinhos nesse dia escaldante de Setembro. A D. cobre-se de cuidados e carinhos para com os outros, sem lamechice, não se agarra a nós aos beijos, não diz que nos ama, não se debulha em lágrimas ou se derrama em prantos. A sua linguagem é a dos gestos e o seu caminho o do coração. Para que são necessárias palavras quando os gestos falam assim?

quinta-feira, 2 de março de 2006

Datas

E hoje que seis meses passam, continuo a achar que te vou encontrar no sofá, ainda hesito quando pergunto à mamã como está, o plural ameaça-me quase diariamente, continuo a pensar que vais surgir de um qualquer canto, que foste ali à loja e já voltas, continuo a ter o impulso de perguntar E o Papá? quando chego a casa, continuo a lembrar-me de ti ao cheiro da carne seca a espraiar-se pelo corredor e o coração parece ter um garrote que me tolda o falar, o pensar. O sentir oscila-me na presença da tua ausência. Hoje que passam seis meses continuamos unidos a perpetuar a tua memória, a celebrar quase diariamente a tua passagem pela vida e a lutar com a mágoa que nos puxa pelos pés e nos rouba a luz e a tentar andar, devagar, para quem sabe um dia sorrir.

quarta-feira, 1 de março de 2006

Desabafos

Entre outras pérolas deste cantinho à beira-mar plantado tão orgulhosamente prenhe de brandos costumes, como o assassinato do transexual no Porto, as cerimónias de trasladação de Lúcia, a pastora e as transmissões do Carnaval português deram-me uma enorme vontade de partir.
O meu querido pai concordaria.
Fico à espera de melhores dias.