Mi a go lef tiday.
Páginas
terça-feira, 28 de agosto de 2007
E a memória
E a memória, esta mesma que me empurra para o presente, a mesma que me ajuda a reviver episódios tão remotos como a procissão dos farricocos em Braga, três anos teria então, ou a ida do homem à lua. A memória através da qual escrevo, a mão que desenha as letras encaminhadas pela reminiscência do que foi. E é essa mesma memória que hoje me cutuca no ombro e me faz reviver o momento último em que vi o meu pai, atraiçoado pela doença, refém de um corpo que o traiu, prisioneiro da vida naquela cama de hospital. Dois anos. Dois anos passam e a memória, tu ali, o teu olhar em mim e eu impotente e traidora de ti que não te pude libertar, e eu com o corpo tolhido pela dor sem nome, sem palavras, sem explicação, metáforas que me valham, caso defini-la fosse possível. Dois anos e eu a sair por aquela porta. Dois anos e nunca mais te ver.
segunda-feira, 27 de agosto de 2007
Statements of art
Quando Marcel Duchamp se lembrou de usar um urinol e transformá-lo em obra de arte, o mundo reagiu estarrecido e dividiu-se entre ofendidos e seguidores, ultrajados e admiradores, injuriados e idólatras e assim se foi prosseguindo por esse mundo fora. Joseph Beuys também era um rapaz dado a metamorfose dos objectos do quotidiano em obras de arte e Warhol é o exemplo acabado do que pode acontecer a um mera lata de sopa, que lá andava tranquila na sua vidinha. Nada contra. Mas o que me encanita, enfurece e revolta é a quantidade de artistas anónimos que povoam este Portugal de lés a lés e, porque não têm nomes nem amigos, estão votados ao abandono, esquecimento e anonimato, quiçá, morrerão numa valeta entre o betão e a brita. Aqui à porta, por exemplo, assisto a estas manifestações artísticas amiúde.
Tudo começou quando bem à porta de casa me foi plantada uma betoneira em adiantado estado de decomposição, pobrezita, uns buracos aqui e ali, as marcas do cimento e da massa, testemunho indelével das horas infindas de laboração. Nessa altura era fácil indicar aos amigos e visitantes a casa de onde vos teclo estes episódios da vida quotidiana, ao entrarem na rua, a casa é que tem à frente uma betoneira. Assim foi durante uns meses. Depois veio cá o engenheiro, como se sabe os engenheiros não são dados à arte, e ao olhar para o objecto vetusto estrategicamente colocado à porta de casa, viu uma betoneira a cair de velha. Sacou do telemóvel, contactou o autor e, sem qualquer sensibilidade, ordenou a retirada imediata do statement of art. Derramei uma lágrima por trás dos cortinados, enquanto a betoneira era arrastada e afastada para sempre. Tinha ganho afecto ao objecto que de intruso passara a ser decorativo e jamais voltaria a fazer tão boa figura perante os convidados familiarizados com estes meandros e princípios da criação artística.
A partir de então passei a ter de indicar a minha casa pelo número da porta, como o mais comum dos cidadãos, o que neste momento deixou de ter validade, porque agora tenho plantado no jardim um carrinho de mão caduco. Está encostado ao muro, é certo, mais discreto do que a betoneira, mas também tem o seu charme e sempre quebra a monotonia, mas essa, já havia sido quebrada com a cobertura do cerâmico do terraço quando lhe foi sobreposta uma camada espessa de uma gosma elástica, aplicada como o dripping de Pollock mas de uma cor só. E isto é que encanita: tanto artista neste país e porque são apenas Zés ou Maneis pagarão o resto da vida pela sua falta de berço, enquanto semeiam arte nos lares lusos. Não há justiça neste mundo.
Tudo começou quando bem à porta de casa me foi plantada uma betoneira em adiantado estado de decomposição, pobrezita, uns buracos aqui e ali, as marcas do cimento e da massa, testemunho indelével das horas infindas de laboração. Nessa altura era fácil indicar aos amigos e visitantes a casa de onde vos teclo estes episódios da vida quotidiana, ao entrarem na rua, a casa é que tem à frente uma betoneira. Assim foi durante uns meses. Depois veio cá o engenheiro, como se sabe os engenheiros não são dados à arte, e ao olhar para o objecto vetusto estrategicamente colocado à porta de casa, viu uma betoneira a cair de velha. Sacou do telemóvel, contactou o autor e, sem qualquer sensibilidade, ordenou a retirada imediata do statement of art. Derramei uma lágrima por trás dos cortinados, enquanto a betoneira era arrastada e afastada para sempre. Tinha ganho afecto ao objecto que de intruso passara a ser decorativo e jamais voltaria a fazer tão boa figura perante os convidados familiarizados com estes meandros e princípios da criação artística.
A partir de então passei a ter de indicar a minha casa pelo número da porta, como o mais comum dos cidadãos, o que neste momento deixou de ter validade, porque agora tenho plantado no jardim um carrinho de mão caduco. Está encostado ao muro, é certo, mais discreto do que a betoneira, mas também tem o seu charme e sempre quebra a monotonia, mas essa, já havia sido quebrada com a cobertura do cerâmico do terraço quando lhe foi sobreposta uma camada espessa de uma gosma elástica, aplicada como o dripping de Pollock mas de uma cor só. E isto é que encanita: tanto artista neste país e porque são apenas Zés ou Maneis pagarão o resto da vida pela sua falta de berço, enquanto semeiam arte nos lares lusos. Não há justiça neste mundo.
imagem: minha
Também aqui
domingo, 26 de agosto de 2007
Mistérios
E estive lado a lado com o deslindar do mistério. Tinha barriga seca e respingou quando a conversa caiu nessa estrela da música portuguesa que atende pelo nome de Tony Carreira. Falava-se do cartaz das festas populares, alguém terá dito em tom jocoso que Tony Carreira iria estar já nem sei onde, respondi que já me bastara o pequeno Saúl à porta de casa e senti o olhar incisivo e cortante aqui no bicep esquerdo Ai mas não é a mesma coisa. Claramente no território do inimigo. Para mim era a mesma coisa, mas respeitava o gosto de cada um, esclareci – que lindinha e correcta – e adiantei que não entendia por que raio o homem tem aquele sucesso. Seguiu-se uma torrente de razões, que era simpático, atencioso, tinha bom aspecto, blergh, respeitava as fãs, era capaz de estar com elas três horas depois dos espectáculos, - mas quem é que quer estar três horas com aquele homem?- que era um bom comunicador, e, pronto, falava daquelas coisas com as mulheres se identificam. Coisas com que as mulheres se identificam? Serei homem? Tanto amor e lamechice, tanto caso mal resolvido, tanta mágoa a recozer-se no caldo dos amores ressentidos nem me parece saudável. Pois, pois, mas pronto não entendo como é que o mulherio faz quilómetros e quilómetros atrás do verdadeiro artista, insisti. Porque ele fala ao coração, disseram-me, é normal. Normal? Normal desatar-se, desabrir-se por esse país fora e até além fronteiras atrás de um cantor? Normal? Pois. Ora ainda se o senhor tivesse a cor dos trópicos e a ginga do José Eduardo Agualusa, a elegância, cortesia e olhar penetrante de Mia Couto, o sorriso luminoso e infantil de José Luís Peixoto, a rebeldia de Mick Jagger, fosse crescidinho como o Reynaldo Gianecchini, mesmo com aqueles pés tão feios, ou tivesse o torso do Cristiano Ronaldo até compreendia, compreendia bem, compreendia muito bem.
Com uma beijoca à menina das estrelinhas ;-)
sexta-feira, 24 de agosto de 2007
Cobranças difíceis
A mercearia nunca mais foi a mesma desde que a irmã da dona abandonou o mister. Seria a úrsula? Diz-me a irmã, a dona da mercearia, que eram os nervos. Um problema. Disse-lhe que sim, que os nervos são um problema mas que a tinha visto aflita da coluna e assim foi há uns tempos. A mulher insistiu As costas e a cluna era tudo por causa dos nerbos. Pois, pois, parecia-me uma pessoa ansiosa. Bocê, sabe lá… é teimosa a nha irmã. Eu queria levá-la ao massagista, aquilo era três dias e tava boa, mas ela quis ir ao preto de Alcainça… O preto de Alcainça? Sim, o massagista. Ah… Assim foi mais tempo. Ah pois. Mas onte já a bi no balhe, a balhar. Já tá boa! Felizmente. A diferença que faz o preto da Alcainça!
E dado este estado de coisas, a irmã que agora faz uns biscates aí nas casas de umas senhoras por causa dos nerbos na mercearia, a mãe a fazer um pãozinho delicioso e a outra filha num cafei, a dona outro remédio não teve se não pôr lá a filha mais nova, uma garota adolescente, robusta, com as protuberâncias abdominais a saírem-se-lhe pelas calças rebaixadas e para quem, ao contrário do mulherio administrador do estabelecimento, o cliente não é rei. À hora da novela o cliente é até um rapaz intrometido e inconveniente que não a deixa ver calmamente a saga infindoura no canto oposto à caixa resistadora no cocuruto duma estante.
A rapariga tem uma coisa boa no dizer da mãe, tem força, Mais força ca outra confessou-me um dia, e por força, entenda-se a impetuosidade de um panzer que irrompe entre os vegetais e a arca frigorífica, as sacas de cebola, as courgettes e a arca dos iogurtes sempre que necessário. Talvez por isto, uma ocasião, a estante onde se apoiou para chegar ao topo dum armário, certamente para satisfazer os desejos caprichosos de algum cliente, tenha cedido e os fregueses, eu incluída, brindados com uma chuva torrencial de chocolates Regina, Sugus de menta e melão, Conguitos e chupas. A rapariga na se ralou. Enquanto a freguesia ajuntava os chocolates do chão, nem um agradecimento, e a estante olhando-nos ameaçadora, ainda periclitante com uma das esquinas levemente enviesada a indiciar o resvale iminente. Nada a recear. Com esta cabeleira sempre amortecia as sombrinhas de chocolate que tinham resistido ao tombo.
O pesadelo voltou quando lhe pedi duas latas de feijão preto, que por azar me olhavam altaneiras doutra estante. Aí não haveria cabeleira que me salvasse mas, por esta altura, a rapariga já tinha adquirido maior agilidade de movimentos na travessia da mercearia e adquirira uma outra característica curiosa: a de zeladora escrupulosa da carteira dos clientes. A rapariga revirou as latas, leu as receitas nos rótulos, disse-me que gostava de comidas diferentes e por fim, atirou Atão mas porque é que bocê leba duas? Uma das grandes é mais barata que duas, ó, disse apontando para a etiqueta do preço, 50 cêntimos. Preferia duas pequenas, é certo, mas perante a evidência, e sob pena de passar por uma perdulária gastadora e arrasar a minha reputação na mercearia, lá trouxe a lata grande de feijão preto. Nada de mais: duas refeições a eito de feijão tropeiro.
Naquele dia, o queixume era outro: a máquina do Multibanco não funcionava. E que tinha aderido a outro plano e agora aquilo na daba nada e ainda por cima em Agosto, que tá tudo de férias. Uma cliente impacientou-se. E agora? Não tinha dinheiro e não queria ficar a dever. A dona tudo explicou de novo, largou um ou outro comentário pouco elogioso à companhia telefónica e por fim atirou à outra Ó melher, na te rales. A outra disse Ah pois, e se eu morrer? A dona Na te rales, já te disse, melher. Morreu aí uma há uns dias e rasguê logo o papel. Qué lá saber! Nesta altura terei dito algo, lamentando a morte alheia, mas qual quê… Atão, ela na podia ir à praia, foi à praia ca filha... Ah, pronto. E nisto, voltou a cliente à carga. Na te rales, bá, pagas depois. A filha atenta à contenda do paga, não paga, acrescentou Na se rale, se bocê morrer, a gente bai lá ó cemitério e pede o denhêro às pessoas no funaral. Deitei a mão ao bolso. Uma nota de dez euros. O suficiente para pagar os pêssegos e as ameixas. Se algum imprevisto acontecer, cruzes canhoto, pelo menos não terão o panzerzito a cobrar-vos as ameixas e os pêssegos, carecas e felpudos, à porta da derradeira morada. Há dinheiro que vem por bem na algibeira desprevenida.
E dado este estado de coisas, a irmã que agora faz uns biscates aí nas casas de umas senhoras por causa dos nerbos na mercearia, a mãe a fazer um pãozinho delicioso e a outra filha num cafei, a dona outro remédio não teve se não pôr lá a filha mais nova, uma garota adolescente, robusta, com as protuberâncias abdominais a saírem-se-lhe pelas calças rebaixadas e para quem, ao contrário do mulherio administrador do estabelecimento, o cliente não é rei. À hora da novela o cliente é até um rapaz intrometido e inconveniente que não a deixa ver calmamente a saga infindoura no canto oposto à caixa resistadora no cocuruto duma estante.
A rapariga tem uma coisa boa no dizer da mãe, tem força, Mais força ca outra confessou-me um dia, e por força, entenda-se a impetuosidade de um panzer que irrompe entre os vegetais e a arca frigorífica, as sacas de cebola, as courgettes e a arca dos iogurtes sempre que necessário. Talvez por isto, uma ocasião, a estante onde se apoiou para chegar ao topo dum armário, certamente para satisfazer os desejos caprichosos de algum cliente, tenha cedido e os fregueses, eu incluída, brindados com uma chuva torrencial de chocolates Regina, Sugus de menta e melão, Conguitos e chupas. A rapariga na se ralou. Enquanto a freguesia ajuntava os chocolates do chão, nem um agradecimento, e a estante olhando-nos ameaçadora, ainda periclitante com uma das esquinas levemente enviesada a indiciar o resvale iminente. Nada a recear. Com esta cabeleira sempre amortecia as sombrinhas de chocolate que tinham resistido ao tombo.
O pesadelo voltou quando lhe pedi duas latas de feijão preto, que por azar me olhavam altaneiras doutra estante. Aí não haveria cabeleira que me salvasse mas, por esta altura, a rapariga já tinha adquirido maior agilidade de movimentos na travessia da mercearia e adquirira uma outra característica curiosa: a de zeladora escrupulosa da carteira dos clientes. A rapariga revirou as latas, leu as receitas nos rótulos, disse-me que gostava de comidas diferentes e por fim, atirou Atão mas porque é que bocê leba duas? Uma das grandes é mais barata que duas, ó, disse apontando para a etiqueta do preço, 50 cêntimos. Preferia duas pequenas, é certo, mas perante a evidência, e sob pena de passar por uma perdulária gastadora e arrasar a minha reputação na mercearia, lá trouxe a lata grande de feijão preto. Nada de mais: duas refeições a eito de feijão tropeiro.
Naquele dia, o queixume era outro: a máquina do Multibanco não funcionava. E que tinha aderido a outro plano e agora aquilo na daba nada e ainda por cima em Agosto, que tá tudo de férias. Uma cliente impacientou-se. E agora? Não tinha dinheiro e não queria ficar a dever. A dona tudo explicou de novo, largou um ou outro comentário pouco elogioso à companhia telefónica e por fim atirou à outra Ó melher, na te rales. A outra disse Ah pois, e se eu morrer? A dona Na te rales, já te disse, melher. Morreu aí uma há uns dias e rasguê logo o papel. Qué lá saber! Nesta altura terei dito algo, lamentando a morte alheia, mas qual quê… Atão, ela na podia ir à praia, foi à praia ca filha... Ah, pronto. E nisto, voltou a cliente à carga. Na te rales, bá, pagas depois. A filha atenta à contenda do paga, não paga, acrescentou Na se rale, se bocê morrer, a gente bai lá ó cemitério e pede o denhêro às pessoas no funaral. Deitei a mão ao bolso. Uma nota de dez euros. O suficiente para pagar os pêssegos e as ameixas. Se algum imprevisto acontecer, cruzes canhoto, pelo menos não terão o panzerzito a cobrar-vos as ameixas e os pêssegos, carecas e felpudos, à porta da derradeira morada. Há dinheiro que vem por bem na algibeira desprevenida.
foto: minha
Com aquele abraço para o Aventino.
quinta-feira, 23 de agosto de 2007
quarta-feira, 22 de agosto de 2007
S de Salvador, S de Sentimento
Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia.
Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do mercado, nas feiras, nos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus.
O povo de Yemanjá tem muito que contar.
Vinde ouvir essas histórias e essas canções.
Jorge Amado, Mar Morto
Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do mercado, nas feiras, nos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus.
O povo de Yemanjá tem muito que contar.
Vinde ouvir essas histórias e essas canções.
Jorge Amado, Mar Morto
Uma caipirinha com uma carne de sol na Cantina da Lua, longe de ser tranquila, vertiginosa e sensual como o movimento de transeuntes, soteropolitanos e gringos que se deslocavam num vaivém frenético e colorido, ladeiras acima e abaixo até ao Largo do Pelourinho, iluminado pela Igreja do Rosário dos Pretos e a Fundação-Casa Jorge Amado, azuis ambas, ponto obrigatório de qualquer visita à cidade do Salvador, coração negro do Brasil, capital primeira do Brasil. E o movimento que se instala, cada vez mais intenso e vivo, um desfile que foi tomando o seu lugar pelas ladeiras circundantes: os filhos de Gandhi, o Olodum, as baianas como se conhecem por esse mundo fora, Bumba Meu Boi, Iemanjá. E de máquina fotográfica em punho embalada com o ritmo contagiante, o cortejo rodopiou, com o sol a brilhar já cadente por trás da Igreja de São Domingos de Gusmão, o contraste necessário para o fulgor do desfile, que soube depois, seria do Dia do Folclore, celebrado a 22 de Agosto no Brasil, escrito para sempre nos meus 22 de Agosto vindouros.
Mas Salvador é mais do que uma data. Salvador é um sentimento que não se deixa pôr por palavras. É ir ao Bonfim e conversar com a Carol e o Jairson sobre patuás e orixás, Erê, o meu, e ninguém tocou ainda, Carol, e fitinhas coloridas, trazer a pagela do Santo Expedito que todos os dias me olha aqui mesmo ao lado, é ver a cidade lá em baixo, é subir e descer as ladeiras do Pelô, regatear com o Caetano o preço dos colares de sementes, descer o elevador Lacerda com a Baía de Todos os Santos em frente, azul e imensa, e vislumbrar do outro lado Itaparica, berço de João Ubaldo Ribeiro, é passear no Mercado Modelo entre souvenirs e pinturas, comprar o que quase todos os turistas compram, mas não, um berimbau não, sentarmo-nos no Maria de São Pedro com a baía que se estende como um lençol azul prateado até encontrar as nuvens plúmbeas do Inverno baiano, ver os capitães da areia lá em baixo, trocar impressões com os inúmeros artistas que frequentam o restaurante - é sabido que baiano não nasce, estreia- enquanto se saboreia uma moqueca ou se relê mentalmente, sem livro algum à nossa frente, a prosa poética de Jorge Amado, alguma dela escrita no Rio Vermelho, onde se pode provar o acarajé longe do burburinho do Pelô. Salvador é o Recôncavo de Dona Canô e o Reconvexo de Bethânia. É saber ali perto Itapoã, onde Toquinho e Vinicius passaram uma tarde de vagabundagem e onde um dia irei sentir a terra toda a rodar. Sem palavras, portanto.
Mas Salvador é mais do que uma data. Salvador é um sentimento que não se deixa pôr por palavras. É ir ao Bonfim e conversar com a Carol e o Jairson sobre patuás e orixás, Erê, o meu, e ninguém tocou ainda, Carol, e fitinhas coloridas, trazer a pagela do Santo Expedito que todos os dias me olha aqui mesmo ao lado, é ver a cidade lá em baixo, é subir e descer as ladeiras do Pelô, regatear com o Caetano o preço dos colares de sementes, descer o elevador Lacerda com a Baía de Todos os Santos em frente, azul e imensa, e vislumbrar do outro lado Itaparica, berço de João Ubaldo Ribeiro, é passear no Mercado Modelo entre souvenirs e pinturas, comprar o que quase todos os turistas compram, mas não, um berimbau não, sentarmo-nos no Maria de São Pedro com a baía que se estende como um lençol azul prateado até encontrar as nuvens plúmbeas do Inverno baiano, ver os capitães da areia lá em baixo, trocar impressões com os inúmeros artistas que frequentam o restaurante - é sabido que baiano não nasce, estreia- enquanto se saboreia uma moqueca ou se relê mentalmente, sem livro algum à nossa frente, a prosa poética de Jorge Amado, alguma dela escrita no Rio Vermelho, onde se pode provar o acarajé longe do burburinho do Pelô. Salvador é o Recôncavo de Dona Canô e o Reconvexo de Bethânia. É saber ali perto Itapoã, onde Toquinho e Vinicius passaram uma tarde de vagabundagem e onde um dia irei sentir a terra toda a rodar. Sem palavras, portanto.
foto: minha
terça-feira, 21 de agosto de 2007
Erros de cálculo
As manhãs de estio precoce ludibriam sem intenção os amantes fervorosos dos dias ensolarados e felizes. Foi assim que, naquele dia não muito distante, me levantei sorridente e, ao abrir as portadas, me deparei com o céu azul logo pela manhã. E depois a rotina de sempre. Tudo rápido: duche, pequeno-almoço, agarrar nos livros, fechar a porta de casa com as felinas lá dentro e Bom dia, dia! Raros os momentos de boa disposição matinal mas assim ditam os dias de luz, sem que pouco possa fazer para impedir a ligeireza que, de repente, se me toma o corpo e que, neste caso, me adormeceu os neurónios. E nesta insanidade, ter-me-ia vestido à pressa: umas calças castanhas de cintura concordante com os ditames da moda, um blazer cor-de-abóbora, uma camisoleca a mediar as duas, um colar de sementes sussurando-me com sotaque de terras de Vera Cruz e, assim que me sentei no carro, ainda à porta de casa, algo apareceu inesperadamente: uma tarja de carne, imensa e branca pela ausência de sol, a roupa interior a desvelar-se, sem perigo por enquanto, para o banco do carro. E porque quando nada há a fazer, nada se pode fazer, rumei à escola e passei a manhã a declinar educadamente os convites para me sentar à mesa, enquanto partilhava o café com os colegas e dois dedos de conversa inconsequente, a escrever no quadro apenas à altura do ombro, a deslocar-me com esmero entre os alunos, inclinar-me sobre as carteiras com o cuidado de uma dama vitoriana que tenta ocultar a aparição despudorada do tornozelo e a desejar ardentemente o regresso a casa para me poder sentar descansada e mandar às urtigas o pedaço de carne que tentei esconder com sucesso uma manhã inteira.
domingo, 19 de agosto de 2007
Umarmung
Cidades são como pessoas. Têm vida, carácter e personalidade, bons e maus humores. Acordares suaves e delicados, agitados e estremunhados. Têm sonhos e pesadelos. Cores e aromas e sabores vários. Cidades são mulheres e são homens. E se se fala do pulsar da cidade, do coração da cidade ou das artérias da cidade, é porque vida têm, como os homens que nela habitam.
Desta feita a cidade era Viena, cidade da cultura erudita, da valsa de Strauss, da música clássica, de grandes filósofos e pensadores que modelaram e transformaram o século XX, a cidade de Freud, de Canetti ou de Karl Kraus. E lá parti à descoberta da cidade, palco de inolvidáveis acontecimentos políticos, berço de uma gente delicada no trato mas distante nos afectos. Gente polida, proferindo constantes Grüss Gott, Danke schön!, Bitte schön!. Gente educada que por via da sua reconhecida deferência usa o conjuntivo com uma frequência surpreendente. Gente culta e letrada, permanentemente a braços com a sua orientação ideológica e cujos líderes, presentes e passados, partilham ironicamente a inicial de seus apelidos: o mesmo H, hediondo de Horror ou Holocausto. Gente preocupada em digerir o seu passado e gerir o seu presente.
Na centro da cidade sobressaía o odor forte a excrementos de cavalos das charretes perto do Stephansdom, incomparável no telhado reluzente com a águia bicéfala e os sons que pairavam nas ruas circundantes, ao lado da contrastante e moderna Haas Haus, espelho surpreendente do Stephansdom, distavam da valsa de Strauss ou da música clássica, banda sonora possível de uma cidade que se me afigurava pretérita. Indicavam a mudança e gente de outras paragens soltava música como gotículas de uma efémera alegria: música andina, tocada por peruanos de cabelos negros de noite e ponches coloridos e imigrantes do Leste cantando convictamente em trajes rubros e dourados.
E passear pela cidade pode ser também um trilho de volúpia materializado numa Sachertorte, deleite de qualquer fervoroso amante de chocolate, acompanhada por um café, em milhentas variedades apresentado, e saboreado em elegantes salões de chá ou cafés, tradição vienense por excelência, cultivada com carinho, tertúlias de outrora preservadas em memória do pulsar cultural duma cidade inexistente.
E a cidade era grande e monumental em oposição ao tempo de que dispunha. O Belvedere seria, portanto. Contemplar Klimt, sentar-me de frente para Schiele e, por instantes, sentir que também eu era beijada e abraçada por aquela belíssima cidade.
Desta feita a cidade era Viena, cidade da cultura erudita, da valsa de Strauss, da música clássica, de grandes filósofos e pensadores que modelaram e transformaram o século XX, a cidade de Freud, de Canetti ou de Karl Kraus. E lá parti à descoberta da cidade, palco de inolvidáveis acontecimentos políticos, berço de uma gente delicada no trato mas distante nos afectos. Gente polida, proferindo constantes Grüss Gott, Danke schön!, Bitte schön!. Gente educada que por via da sua reconhecida deferência usa o conjuntivo com uma frequência surpreendente. Gente culta e letrada, permanentemente a braços com a sua orientação ideológica e cujos líderes, presentes e passados, partilham ironicamente a inicial de seus apelidos: o mesmo H, hediondo de Horror ou Holocausto. Gente preocupada em digerir o seu passado e gerir o seu presente.
Na centro da cidade sobressaía o odor forte a excrementos de cavalos das charretes perto do Stephansdom, incomparável no telhado reluzente com a águia bicéfala e os sons que pairavam nas ruas circundantes, ao lado da contrastante e moderna Haas Haus, espelho surpreendente do Stephansdom, distavam da valsa de Strauss ou da música clássica, banda sonora possível de uma cidade que se me afigurava pretérita. Indicavam a mudança e gente de outras paragens soltava música como gotículas de uma efémera alegria: música andina, tocada por peruanos de cabelos negros de noite e ponches coloridos e imigrantes do Leste cantando convictamente em trajes rubros e dourados.
E passear pela cidade pode ser também um trilho de volúpia materializado numa Sachertorte, deleite de qualquer fervoroso amante de chocolate, acompanhada por um café, em milhentas variedades apresentado, e saboreado em elegantes salões de chá ou cafés, tradição vienense por excelência, cultivada com carinho, tertúlias de outrora preservadas em memória do pulsar cultural duma cidade inexistente.
E a cidade era grande e monumental em oposição ao tempo de que dispunha. O Belvedere seria, portanto. Contemplar Klimt, sentar-me de frente para Schiele e, por instantes, sentir que também eu era beijada e abraçada por aquela belíssima cidade.
Egon Schiele, Umarmung, 1915.
Porque Viena é uma cidade que também não esquecerei.
sábado, 18 de agosto de 2007
Uma margarida talvez
O rapaz era conhecido por chegar atrasado aos compromissos. A dificuldade em respeitar horários e compromissos não seria nunca por falta de respeito por aqueles com quem se comprometia, apenas o seu modo de passear pelo mundo. A rapariga não entendia as delongas frequentes. Que faria ele para não chegar a horas? Apesar desta peculiaridade irritante para a pontualidade da rapariga, o rapaz era um ser atencioso e doce. Resguardava-se por trás dos óculos, algo tímido, e embora raramente deixasse os demais avistar a sua perspicácia, era atento e arguto. Tinha algo de deliciosamente boémio, umas mãos de criança, com os dedos rechonchudos, as unhas roídas como um garoto nervoso, possuía a bonomia dos gorduchos, mesmo sem gargalhares estridentes nem palavras exaltadas, como outros gorduchos, e sempre alguma dispersão no pensar. Amiúde o ar absorto de quem se perdeu entre notas e acordes, absorvido pelo jazz e a bossa nova, errante entre o contrabaixo e uma voz feminina. Voava sem aviso, elevava-se num voo alto e libertador, num céu só seu. Regressava depois, tal como se tinha momentaneamente ausentado, e retomava a conversa.
Ela e ele partilhavam um mesmo gosto pela noite, onde o dia toma refúgio e as palavras se tornam descomplicadas, os sorrisos mais inconsequentes e, por isso, à luz do dia mais perigosos. Um jantar agradável e sobriamente requintado, um copo num sítio aprazível, uma conversa serena salpicada com humor ou um café fugaz no bar do seu local de trabalho.
Era crepúsculo, ainda com umas réstias de dia, e, como os crepúsculos, continha o bulício que anuncia o dia a adormecer e o burburinho suave que indicia a noite a acordar, ainda lânguida e preguiçosa, ainda a bocejar e a estender os braços com que abraça e embala a cidade, o chilrear dos pássaros num miradouro ali bem perto e o cauteleiro tão dinâmico e tão estático no largo do ponto de encontro. A rapariga chegou em cima da hora dessa vez, quase atrasada. Umas voltas depois, continuava sem encontrar lugar algum para estacionar o carro, a inquietação a tomar conta dela, o relógio impavidamente marcando a passagem dos minutos. Uma volta, viu-o no ponto de encontro. Ao contrário do habitual, neste dia de Maio tardio, o rapaz chegara a horas. Ela abrandou, ele entrou, um beijo na face e, enquanto a rapariga engatava a mudança para iniciar a marcha, o rapaz sacou de um pedacito de papel da carteira, rabiscou algo e disse-lhe suave e afectuoso Não tive tempo. Desculpa! estendendo-lhe, tímido, o papel rectangular de dimensões reduzidas. No verso de um bilhete de metro, uma flor, fresca ainda pelo desenhar recente, perfumada como nenhuma pela imaginação ternurenta do seu autor. Por baixo escrito Um beijo, seguido da sua assinatura singela. Atentou bem, atentou bem na flor e pensou, rendida pelo exotismo da oferta, que seria uma margarida talvez.
Ela e ele partilhavam um mesmo gosto pela noite, onde o dia toma refúgio e as palavras se tornam descomplicadas, os sorrisos mais inconsequentes e, por isso, à luz do dia mais perigosos. Um jantar agradável e sobriamente requintado, um copo num sítio aprazível, uma conversa serena salpicada com humor ou um café fugaz no bar do seu local de trabalho.
Era crepúsculo, ainda com umas réstias de dia, e, como os crepúsculos, continha o bulício que anuncia o dia a adormecer e o burburinho suave que indicia a noite a acordar, ainda lânguida e preguiçosa, ainda a bocejar e a estender os braços com que abraça e embala a cidade, o chilrear dos pássaros num miradouro ali bem perto e o cauteleiro tão dinâmico e tão estático no largo do ponto de encontro. A rapariga chegou em cima da hora dessa vez, quase atrasada. Umas voltas depois, continuava sem encontrar lugar algum para estacionar o carro, a inquietação a tomar conta dela, o relógio impavidamente marcando a passagem dos minutos. Uma volta, viu-o no ponto de encontro. Ao contrário do habitual, neste dia de Maio tardio, o rapaz chegara a horas. Ela abrandou, ele entrou, um beijo na face e, enquanto a rapariga engatava a mudança para iniciar a marcha, o rapaz sacou de um pedacito de papel da carteira, rabiscou algo e disse-lhe suave e afectuoso Não tive tempo. Desculpa! estendendo-lhe, tímido, o papel rectangular de dimensões reduzidas. No verso de um bilhete de metro, uma flor, fresca ainda pelo desenhar recente, perfumada como nenhuma pela imaginação ternurenta do seu autor. Por baixo escrito Um beijo, seguido da sua assinatura singela. Atentou bem, atentou bem na flor e pensou, rendida pelo exotismo da oferta, que seria uma margarida talvez.
sexta-feira, 17 de agosto de 2007
Semântica do corpo
Deitei-me de maminhas. Acordei com pernas, braços, barriga. Quando cheguei ao ginásio tinha peito e tríceps e bíceps e abdominais e gémeos e glúteos. Resgato as maminhas, troco a barriga pelos abdominais e ponho pernas ao caminho. E por tudo isto gosto da linguagem: com ela somos múltiplos de nós próprios e, ao sermos múltiplos de nós, somos nós próprios múltiplos.
imagem: Botero. Who else?
quinta-feira, 16 de agosto de 2007
Agenda
De 13 de Setembro de 2007 a 8 de Abril de 2008 vai estar patente no Museu Britânico uma exposição temporária e única dos guerreiros de terracota, um dos maiores achados arqueológicos do século XX. A exposição compreende doze guerreiros bem como outros objectos encontrados no imenso mausoléu do Primeiro Imperador, Qin Shihuangdi, unificador da China. O exército de terracota foi descoberto em 1974 e conta com cerca de 8.000 peças, incluindo cavalos e armas. Todos os guerreiros são diferentes, têm tamanho real e expressões faciais únicas.
Se desaparecer por um tempo, já sabem onde me encontrar.
Can´t take my eyes off you
Isto de se nascer filho único nada tem a ver com ser filho único. Assim foi comigo. Primeiro os primos, depois os alunos, depois os amigos, os amigos dos amigos, os amigos dos alunos, o filho que acompanhou o meu pai até ao fim e que é o guardião dedicado da minha mãe e a atenção e o carinho dos meus pais sempre repartidos generosamente por todos. E como se todos estes fossem ainda insuficientes, juntou-se, de há cerca doze anos a esta parte, o meu mano gato, com nome de inspiração real – obrigada, D. Duarte.
O meu mano gato é como todos os gatos: voluntarioso, teimoso, obstinado, impassível e inabalável na sua vontade. Disputou com o meu pai o sofá durante um tempo. Fitava-o enquanto ele lá estava, paulatino entre os livros e uma sonequita que apelidava de reflexão, e acompanhou-o até ao fim dos seus dias, sempre em casa. O meu mano gato tem uma predilecção pela minha mãe. Se ela se ausenta de casa, o gato mia aflito de boca aberta e com um miado agudo até ela voltar, caso ela se levante para ir à cozinha, o gato segue-a fielmente, às vezes ultrapassando-a na porta e, nos últimos tempos, é o mais fiel e devotado admirador da minha mãe. Põe-se à frente dela enquanto vê televisão, com olhinhos doces e atentos, e, ultimamente, exige sentar-se ao lado dela na cadeira do computador, enquanto ela está tranquilamente no sofá. O gato fica inquieto se assim não é e, quando hoje me sentei no sofá, o gato pisgou-se de imediato para ficar mais perto da minha mãe, olhando-a embevecido mas vigilante enquanto ela jantava, e é por isso que desconfio que o meu querido pai lhe sussurra a espaços, na calada da noite talvez, quando não se sabe, Duarte, toma conta da nossa donita! E o Duarte assim faz, que olhos daqueles e tanta dedicação só podem vir de um coração transbordante.
O meu mano gato é como todos os gatos: voluntarioso, teimoso, obstinado, impassível e inabalável na sua vontade. Disputou com o meu pai o sofá durante um tempo. Fitava-o enquanto ele lá estava, paulatino entre os livros e uma sonequita que apelidava de reflexão, e acompanhou-o até ao fim dos seus dias, sempre em casa. O meu mano gato tem uma predilecção pela minha mãe. Se ela se ausenta de casa, o gato mia aflito de boca aberta e com um miado agudo até ela voltar, caso ela se levante para ir à cozinha, o gato segue-a fielmente, às vezes ultrapassando-a na porta e, nos últimos tempos, é o mais fiel e devotado admirador da minha mãe. Põe-se à frente dela enquanto vê televisão, com olhinhos doces e atentos, e, ultimamente, exige sentar-se ao lado dela na cadeira do computador, enquanto ela está tranquilamente no sofá. O gato fica inquieto se assim não é e, quando hoje me sentei no sofá, o gato pisgou-se de imediato para ficar mais perto da minha mãe, olhando-a embevecido mas vigilante enquanto ela jantava, e é por isso que desconfio que o meu querido pai lhe sussurra a espaços, na calada da noite talvez, quando não se sabe, Duarte, toma conta da nossa donita! E o Duarte assim faz, que olhos daqueles e tanta dedicação só podem vir de um coração transbordante.
foto: minha
terça-feira, 14 de agosto de 2007
Reduce, reuse, recycle
A empregada cá de casa é uma mulher trabalhadeira, arrumadeira e empreendedora, com energia de furacão no que toca à velocidade de limpezas e arrumações e com o seu toque de génio no que respeita à reutilização de tupperwares e caixas. Uma qualquer situação em que seja necessário raciocínio rápido e uma solução imediata, aí está ela e, foi por isso que, um destes dias, dei com um pacote de arroz fechado com uma mola de roupa e as estantes da despensa amarradas com sacos de plástico de uma grande superfície, enquanto tardava o arranjo efectivo e duradouro. Caso não se encontre o tupperware amarelo, aquele exactamente onde cabem os queixos frescos encaixadinhos como peças de puzzle é porque estará certamente algures a servir de continente para uns quaisquer objectos. Uma coisa é certa, raramente fica sem reacção e para qualquer mal que se lhe ponha ao caminho nesta cruzada doméstica, encontrará uma solução rápida e aparentemente eficaz. Vive inconsolável com o facto de não haver lixívia cá em casa, é certo, e, a espaços, vai largando o queixume, que pronto, com lixívia é que aquilo ficava bem limpo. Pois ficava, mas não temos e não temos pena.
Quando lhe peço para ter cuidado com o aspirador, porque foi o meu pai que mo ofereceu, ela não se dá por achada e responde-me com ar doce e carinhoso, regra geral acompanhado por um pequeno suspiro lamuriento que o meu pai me deu também a possibilidade de poder comprar outro, sortuda eu, o que não sendo totalmente mentira, me fez pensar que valor estimativo não é sequer um conceito para este ser peculiar. A prova dos nove veio quando me contou que alguém tinha perdido um anel, mas que não era como os meus, era um dos outros, sendo que um dos outros é de ouro amarelo e transbordante de brilhantes, presumo. Os que habitualmente ela vê cá em casa espalhados entre o prato da balança e a mesa-de-cabeceira têm formas voluptuosas, detectam-se à légua, mas materiais refulgentes não são a sua característica distintiva, logo não valem coisa nenhuma.
Estaria cá não há muito, quando, um belo dia de limpezas, cheguei ao meu quarto e vi a Senhora do Ó do Mestre José Franco, oferecida pela minha mãe e pela Dinha, a servir de amparo para os cortinados, entalados que estavam entre a parede e a santa, orgulhosamente afagando a barriga rotunda com as mãos beatíficas. Fiquei lívida, com palpitações, as veias a latejar nas têmporas e uma voz interior obrigava-me a soltar uns quantos impropérios. Serenei a voz e delineei uma estratégia. Nomear a minha mãe e a Dinha, dizer que aquela peça é única e que tem um valor estimativo incalculável de nada serviria, portanto, disse-lhe apenas que era uma peça caríssima e pedi-lhe para não mais usar a Senhora do Ó como suporte para cortinados. A mesma sorte não teve o cesto das molas. Não tendo sido oferecido por ninguém, certamente por o meu pai me ter dado a oportunidade de poder comprar outro, quando se resvalou no chão por artes de berliques e berloques, foi liminarmente deitado no lixo e a substitui-lo tenho agora um saquinho de papel duma perfumaria conhecida. Imaginação não se pode dizer que lhe falte. É melhor assim do que ter a Senhora do Ó no parapeito da cozinha com as molas pregadas no manto, mesmo à mão de semear, prontas a utilizar.
Quando lhe peço para ter cuidado com o aspirador, porque foi o meu pai que mo ofereceu, ela não se dá por achada e responde-me com ar doce e carinhoso, regra geral acompanhado por um pequeno suspiro lamuriento que o meu pai me deu também a possibilidade de poder comprar outro, sortuda eu, o que não sendo totalmente mentira, me fez pensar que valor estimativo não é sequer um conceito para este ser peculiar. A prova dos nove veio quando me contou que alguém tinha perdido um anel, mas que não era como os meus, era um dos outros, sendo que um dos outros é de ouro amarelo e transbordante de brilhantes, presumo. Os que habitualmente ela vê cá em casa espalhados entre o prato da balança e a mesa-de-cabeceira têm formas voluptuosas, detectam-se à légua, mas materiais refulgentes não são a sua característica distintiva, logo não valem coisa nenhuma.
Estaria cá não há muito, quando, um belo dia de limpezas, cheguei ao meu quarto e vi a Senhora do Ó do Mestre José Franco, oferecida pela minha mãe e pela Dinha, a servir de amparo para os cortinados, entalados que estavam entre a parede e a santa, orgulhosamente afagando a barriga rotunda com as mãos beatíficas. Fiquei lívida, com palpitações, as veias a latejar nas têmporas e uma voz interior obrigava-me a soltar uns quantos impropérios. Serenei a voz e delineei uma estratégia. Nomear a minha mãe e a Dinha, dizer que aquela peça é única e que tem um valor estimativo incalculável de nada serviria, portanto, disse-lhe apenas que era uma peça caríssima e pedi-lhe para não mais usar a Senhora do Ó como suporte para cortinados. A mesma sorte não teve o cesto das molas. Não tendo sido oferecido por ninguém, certamente por o meu pai me ter dado a oportunidade de poder comprar outro, quando se resvalou no chão por artes de berliques e berloques, foi liminarmente deitado no lixo e a substitui-lo tenho agora um saquinho de papel duma perfumaria conhecida. Imaginação não se pode dizer que lhe falte. É melhor assim do que ter a Senhora do Ó no parapeito da cozinha com as molas pregadas no manto, mesmo à mão de semear, prontas a utilizar.
segunda-feira, 13 de agosto de 2007
Cidades que a cidade tem
Cruzo-me com o mais recente trabalho dos Orishas, corro ao encontro de Mi sueño de Ibrahim Ferrer, e acabo por aterrar em O nosso GG em Havana de Pedro Juan Gutiérrez, o livro do escritor que inicia uma nova fase, encerrado que está o ciclo de Centro Habana. E assim é: a Havana dos Orishas não é a de Ibrahim Ferrer, a de Pedro Juan Gutiérrez não é a de Leonardo Padura, a de Zoé Valdés não é a de Ana Menéndez. Cada uma mais áspera do que a outra, mais suave, mais devassa, suja ou nostálgica, mas todas são Havana. Se, para Zoé Valdés, Havana é hoje um museu de vítimas complacentes, de oportunistas; para negociantes e turistas ignorantes*, para Pedro Juan Gutiérrez o melhor do mundo é passear pelo Malécon sem rumo, debaixo de um ciclone furioso** e à magia de Havana não fica indiferente Leonardo Padura porque quem conhecer a cidade tem de admitir que possui uma luz própria, a um tempo densa e leve, e um colorido exultante que a distingue entre milhares de cidades do mundo***.
E, pese embora a idiossincrasia de Havana, assim são todas as cidades: únicas no olhar de quem por lá passa, tantas quantos os turistas, tão diversas como os viajantes, ímpares como os seus habitantes, tanto mais coloridas quanto os seus artistas e escritores. As cidades são apenas o centro do caleidoscópio colorido por sons e letras de quantos a sentem, vivem e visitam e que, a cada visita, deambulação ou périplo, se transformam num mosaico colorido em permanente mutação.
E, pese embora a idiossincrasia de Havana, assim são todas as cidades: únicas no olhar de quem por lá passa, tantas quantos os turistas, tão diversas como os viajantes, ímpares como os seus habitantes, tanto mais coloridas quanto os seus artistas e escritores. As cidades são apenas o centro do caleidoscópio colorido por sons e letras de quantos a sentem, vivem e visitam e que, a cada visita, deambulação ou périplo, se transformam num mosaico colorido em permanente mutação.
*Zoé Valdés, (2002), Os Mistérios de Havana, Lisboa, Dom Quixote.
** Pedro Juan Gutiérrez, (2000), Trilogia Suja de Havana, Lisboa, Dom Quixote.
*** Leonardo Padura, (2005), O Romance da minha vida, Lisboa, Dom Quixote.
** Pedro Juan Gutiérrez, (2000), Trilogia Suja de Havana, Lisboa, Dom Quixote.
*** Leonardo Padura, (2005), O Romance da minha vida, Lisboa, Dom Quixote.
foto: prata da casa
domingo, 12 de agosto de 2007
Cântico
Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora
Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.
Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida.
Miguel Torga
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora
Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.
Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida.
Miguel Torga
Estação tola
Os nossos governantes andam tão ocupados que se lhes varreu o centenário de Miguel Torga.
sexta-feira, 10 de agosto de 2007
quinta-feira, 9 de agosto de 2007
Sem acentos
Postar de terras de Sua Majestade tem este problema, os acentos voaram todinhos, por isso, escolho cautelosamente as palavras, de forma a que consiga prescindir dos mesmos.
sexta-feira, 3 de agosto de 2007
Checking
When a man is tired of London, he is tired of life; for there is in London all that life can afford.
Samuel Johnson
Samuel Johnson
quarta-feira, 1 de agosto de 2007
Temos pena
O telemóvel estava aborrecido. Mas que me queres agora? perguntou ao Cartão Galp. O cartão Galp respondeu-lhe amargo Ora, que hei-de querer? Mas que maçada! disse o telemóvel Já não te mandei ir ter com o cartão Cortefiel? Já, respondeu assertivo o cartão Galp, Mas já que estás aí com coisas, diz-me, achas que compram mais roupa ou falam mais ao telemóvel? O telemóvel admitiu Sim, pronto, falam mais ao telemóvel! Então vês, tu é que tens mais pontos. O telemóvel estava enfurecido. O visor incendiou-se-lhe colérico. Porra! Mas já não te disse que não quero essa porcaria? Vá, vá, vai mas é ter com o cartão Fnac, há malta que compra livros que se desunha… Tás parvo?! disse-lhe o cartão Galp, Nem penses nisso! Preferem falar do que ler e tu és a prova disso. A malta fala em casa, fala na rua, fala na casa-de-banho, fala no cinema, fala no teatro, fala a comer, fala a dormir, fala a sonhar, fala na igreja, fala em casamentos, enterros e baptizados, fala, fala, fala. O cartão Galp estava visivelmente irritado, até lhe se doía a fita magnética e gritou ao telemóvel Tomara eu ser como tu, nem precisas de preocupar-te…. E vais mandar naquela malta toda. O telemóvel arrumou-lhe E quem te disse a ti que eu gosto de mandar? Nisto apareceu o cartão Corte Inglês E eu também tenho pontos… e tenho aqui uns de uns saldos de há três anos. E achas que isso te conta para alguma coisa, ó cartão da moda? Pois não sei, vou ver… Ah pois, vai lá ver, vai... disse-lhe o cartão Galp, o telemóvel retorquiu Esses pontos não contam nada, não vês que já passou tanto tempo. O cartão Corte Inglês não se ficou, Pois, olha, não sei, vou ver. O Tibúrcio apareceu de mansinho e disse Eu tenho pontos, eu tenho mais pontos do que vocês todos. Ó Tibúrcio, mas tu andaste a contar os pontos para quê? O Tibúrcio continuou E eu tenho pontos e eu sou grande e tenho mais pontos do que vocês. Os cartões entreolharam-se, entretanto apareceu o cartão Fnac, que confirmou ter alguns pontos, e o Tibúrcio continuou Eu, eu é que tenho pontos. Enquanto os cartões assumiam os seus lugares, o Tibúrcio insistia Eu é que sou bom e eu é que tenho pontos e eu tenho muitos pontos. Tibúrcio, tu não tens pontos, tu não vês que não foste chamado? O Tibúrcio continuou Mas eu tenho pontos, eu tenho mais pontos do que vocês e eu é que sou bom e é de mim que gostam. O telemóvel irritou-se com o raio dos pontos Ó Tibúrcio, vê se entendes, tu não concorres, logo tu não tens pontos. Temos pena. Temos muita pena, Tibúrcio. Que pena que nós temos.
Subscrever:
Mensagens (Atom)