Páginas

segunda-feira, 31 de outubro de 2005

Despedida

A princípio, ainda pensámos que seria do calor. Estavam uns dias escaldantes. Recomendei ao meu pai incessantemente “Papá, tens de beber água, olha que podes desidratar”. Depois veio a notícia dos níveis de ozono, muito altos para esta área. O facto é que ele não saia de casa. Dias e dias, o gato permanecia em casa, às vezes, no corredor, perto do meu pai, outras vezes na sala da frente. Não me lembro sequer de o ter ouvido miar durante aqueles quinze dias.
Este gato habita a casa e faz parte da família há dez anos e meio. Foi para casa dos meus pais mínimo, tão mínimo que a minha mãe o trouxe no porta-luvas do carro que tinha então. Escolheu-o ela própria de uma ninhada de três ou quatro que nasceram no quintal da D.. O gato, com o passar do tempo, transformou-se num felpudão, lindo e grande, absolutamente imponente. Como nessa época se assistia nas televisões ao enlace matrimonial do D. Duarte de Bragança e uma vez que se mostrava difícil encontrar um nome para o bichano, baptizei-o eu mesma com o real nome, Duarte. Com o Duarte dormi umas sornas inesquecíveis e com o Duarte aprendi o significado da palavra inveja. É um gato real e com uma vontade de ferro. Impõe-se regra geral no meio da mesa à noite e dorme umas sonecas beatíficas, ora de patas nos olhinhos, ora oferecendo a barriga para lhe fazermos umas festa. Nas manhãs de Inverno o gato estendia-se e espreguiçava-se na minha cama para se enrolar de novo, lançando-me uma olhadela, enquanto eu pegava em mim e ainda com os olhos inchados do sono invernoso me arrastava para a escola. Daria o meu reino então para me enrolar com ele e nos espreguiçarmos ambos na quietude matinal.
Certo dia o gato desapareceu. Não se lhe sabia o paradeiro. Por mais que o chamássemos, nada. Ao terceiro dia e quando o meu pai, depois de terem posto o carro na garagem, se encaminhava para casa, encontrou o bichano aos seus pés. Tinha sido atropelado e veio pedir auxílio. O meu querido pai jamais esqueceu tal cena e frequentemente largava um sentido coitadinho, como ele estava ali ao fundo das escadas… relembrando o momento em que todos respirámos de alívio por o Duarte finalmente aparecer após dias de angústia. Acredito que o meu pai sentia que o gato o tinha escolhido para pedir auxílio, embora o meu mano gato nutra com a minha mãe uma relação de absoluta dependência e de um afecto inominável. Foi tratado como um verdadeiro rei, o Duarte, mas ficou coxo em consequência do acidente. Quando a minha mãe inquiriu ao veterinário “ele vai ficar manco, sr. Dr?”, tivemos que correr em seu auxílio e traduzir “Se ele vai ficar coxo…”.
Comecei a ficar ainda mais apreensiva nos últimos quinze dias de agravamento do estado de saúde do meu querido pai. Não sabíamos da gravidade da sua doença, embora sentíssemos que era grave, muito grave. Julgo que de todos nós, apenas um tinha a certeza da iminente partida do meu pai: o Duarte. Acompanhou-o sempre. Não saiu à rua e pairou pela casa sem se fazer notar durante esse tempo. O gato terá sido o único que verdadeiramente se despediu do meu pai. Na véspera e no dia da sua partida, o Duarte retomou a sua rotina. Quando mais não podemos fazer, só nos resta continuar vivendo.

domingo, 30 de outubro de 2005

Memória


It doesn´t matter who my father was; it matters who I remember he was.
Anne Sexton

sexta-feira, 28 de outubro de 2005

Medo

Um dia desses, depois de ter aqui passado, a minha mãe perguntou-me por este texto. Lembro-me de o ter escrito num sábado de manhã há uns bons cinco anos e de o ter oferecido ao meu pai de seguida. Aqui fica a pedido da minha mãe a quem ofereço esta rosa de porcelana com um beijo GRANDE:

Hoje que a psicologia fala em inteligência emocional, todos podem e devem ter medo. O medo foi recuperado, já não é coisa má que nos tolhe o pensamento e o andar. Pelo contrário, ele ajuda-nos a pensar e a andar. O homem pós-moderno tem medo. Afinal ele é um ser civilizado, esclarecido, literato e culto.
No tempo da minha infância não existia nada disso. Medo era medo, inibidor de uma vida independente e autónoma, e era isso, meu pai, que te preocupava. Por isso, quando a altura chegou, decidiste, eu acho, que tal como as outras crianças deviam ter uma Nancy ou uma Cindy, eu havia de ter algo que quando a Nancy e a Cindy se tornassem em pedaços de plástico moldado com fios de nylon cor de palha a sair pelas cabeças, me seria muito mais útil. Nada que se pudesse comprar, e que nem sequer constava nos livros. Era algo que vinha de ti, meu pai, uma ferramenta para a vida, um suporte para o futuro, e se aquilo não fizesse de mim uma mulher forte e decidida, ajudar-me-ia de certo. E ajudou-me mesmo. Tinhas decidido a ensinar-me a não ter medo.
O quintal era imenso e escuro. Nós caminhávamos, não de mão dada, talvez lado a lado e tu dizias-me ”o medo não existe! As pessoas é que fazem o medo!! ” e dizias-me ainda para ir sozinha, continuar andando, aventurando-me pelo quintal escuro. “Encontras alguma coisa?” perguntavas, certo da resposta negativa que te daria. Não, de facto, não encontrava nada, nada que me assustasse. A tua presença era mais forte que o escuro. Era firme e terna e essa eu sentia.
Bom professor foste tu, meu pai! Ensinaste-me a não ter medo do escuro e a perceber que o medo é fabricado em nossas cabeças. Não tenho medo do escuro, não tenho medo de andar sozinha, não tenho medo de conduzir pela cidade quando ela adormece. Há algo, porém, que não me ensinaste porque ninguém o pode fazer: a perder o medo de ter medo de te perder...


... e por isso continuei com este medo.

quinta-feira, 27 de outubro de 2005

Escreves-me?

Há textos que nos pedem para ser escritos. Foi o caso deste. Quem escreve sabe disso. Não garanto até que não tenha ouvido esta frase antes. E há textos que ganham vida própria empertigando-se perante o seu autor “Obrigada sim, mas agora tenho de ir andando. Tenho os leitores lá fora à minha espera…” Esta segunda premissa não se aplica a este, embora se tenha também mostrado caprichoso e voluntarioso e seguido um caminho não previsto antes.
Esta parece uma frase lapidar muito bonita e composta, pronta a ser debitada numa qualquer situação adequada de preferência com assistência para ter mais impacto e mais sucesso como toda a gente hoje em dia quer: um carro maior, uma casa melhor, por vezes também palavras mais cheias de uma douta sonoridade e vãs no significado. Acho que isto me ocorreu porque também na educação chegou esta onda de sucesso e algures ao abrir um mail ou ao chegar à sala de professores me terei cruzado com esta palavra sucesso e o texto, este mesmo, de imediato a pedinchar-me escreves-me? O que importa é educar para o sucesso. Será que alguém se terá questionado, se para além desses sinais exteriores de sucesso, existem equivalentes interiores de satisfação e plenitude? O meu pai sim.
O sucesso nunca constou na sua lista de preocupações. Pouco lhe interessavam os estigmas exteriores dessa coisa chamada sucesso. Marcas, carros, casas passavam-lhe literal e metaforicamente ao lado. O que lhe ocupava todos os seus dias não se media numa escala de mensuráveis bens exteriores. Cultivava os gestos pequenos do quotidiano, a doçura ou aspereza das palavras, a companhia da minha mãe sempre, 51 dos seus 69 anos de vida, e a nossa logo a seguir. Acredito por exemplo que a “Tarde em Itapuã” de Vinícius e Toquinho só poderia ter ocorrido aos seus criadores decorrente da capacidade imensa de apenas conseguir sentir e captar os momentos, a languidez e a beleza de uma tarde despreocupada, passeando à beira-mar, tal como o próprio Vinícius conta. O mesmo se aplica a outros sucessos da música brasileira. Sem pensar no sucesso, ele surge, batendo primeiro mansinho à porta de trás.
Não me interessa que o meu pai não me tenha educado para o sucesso, não me interessa que o meu pai no seu espólio não tenha incluído bens quantitativos perecíveis ao tempo, carros, casas, dinheiro. Do que mais gosto naquilo que o meu pai me legou é a capacidade de admirar os pequenos gestos do dia-a-dia, o sol e mar da janela da cozinha, as bolinhas vermelhas que começam a despontar no azevinho, a capacidade de sentir as palavras e as coisas fantásticas que elas podem fazer acontecer e a capacidade de ser feliz apenas com isso.

terça-feira, 25 de outubro de 2005

Entretanto

As palavras hibernaram. Olho os melros na vedação, voando entre a rede e os limoeiros, escondendo-se no pinhal, regressando ao canavial e passando de novo pela rede. Assim me parecem as palavras numa trajectória indomável. Estão longe, por vezes inatingíveis e selvagens. Noutras, passam-me aqui tão perto que seria capaz de as agarrar, assim tivesse eu a destreza e a astúcia. São livres as palavras e agora que tanta falta me faziam não as consigo apanhar.

segunda-feira, 24 de outubro de 2005

Com palavras

Com palavras se fazem coisas
com elas se desfazem.
As palavras não decifram
são enigmas
matéria obscura
luminosa.
Com palavras se navega
com palavras se naufraga.

Com palavras.


As palavras de Manuel Alegre a quem dedicou toda a sua vida às palavras...

domingo, 23 de outubro de 2005

Pequeno-almoço

Há dias em que a saudade me oprime as palavras na garganta. Acredito que não a saudade mas o sofrimento e a angústia terão tido o mesmo efeito sobre o meu pai naquele dia em Madalena. O sofrimento dos outros fazia-o sofrer.
Na verdade, São Tomé foi o seu primeiro e único contacto com África e desses dias ficou mais do que o episódio em Madalena, uma terra perdida no interior da ilha. De Madalena ficou a África da televisão. A África das crianças atropelando-se para chegar a uma qualquer coisa, ansiosas e andrajosas. Vi o meu pai encostado a uma árvore com as palavras presas na garganta e a angústia solta no olhar. Jamais repetirei algo assim. Não se distinguindo a necessidade da curiosidade tudo nos parece tristemente necessidade, pobreza, e a culpa de tanto possuirmos, mesmo quando tão pouco temos, é uma inevitabilidade conformada.
De São Tomé ficou também o perfume do café acabado de fazer, o aroma do pão torrado e o colorido do mamão. A emoldurar os sentidos, uma vegetação luxuriante, o calor húmido tropical e o mar em frente, vasto, decorado com uma ilhota no meio a recortar a linha do horizonte e nós os três tranquilos, olhando o mar, trocando palavras plácidas, saboreando as torradas e o mamão, bebendo o café pela manhã, perguntando-nos se viveria mesmo ali uma moreia imensa como nos haviam contado.
Há momentos que não cabem em palavras.

São Tomé

Estivemos juntos aqui

e aqui

sexta-feira, 21 de outubro de 2005

Guerras Camilianas

Chove. Olho pela janela e vejo a chuva a cair sobre o azevinho.
A minha avó materna com quem partilhei toda a minha vida até à sua morte, contou, também durante o mesmo período de tempo, que quando o pai lhe morreu e surgiram as primeiras chuvas, ela chorava à janela, pensando nele, pensando que ele estava à chuva, sozinho. Tinha uns olhos escuros, ainda mais escuros nestes momentos. Fez lutos prolongados e constantes: o pai, a filha, a mãe e o marido. Falava inúmeras vezes dessa tristeza, dessa saudade, recontava os episódios e vestiu todos os dias da sua vida uma única cor: preto. Contam-me que em criança e dormindo eu no mesmo quarto que ela, certo dia me terei aproximado da D. e questionado por que é que a vóvó à noite se vestia de branco se de dia se vestia de preto.
Continuo com a falta do meu querido pai. A chuva não me incomoda. Incomoda-me o sofá vazio. Incomoda-me chegar a casa dele e da minha mãe e haver silêncio, um silêncio tão grande que nem me apetece chorar e em cima da mesa repousar um livro tão propositadamente intitulado A Casa Quieta . O que a morte nos provoca não se deixa explicar pela razão.
A minha avó e o meu pai estão juntos na mesma sepultura. Ao longo da vida discutiram algumas vezes e cobriram-se de carinhos outras tantas. Poucos dias antes de morrer, a minha avó agarrou o rosto do meu pai entre as suas mãos e disse-lhe um terno e carinhoso “És tão lindo!” Recordo antes, muito antes disso, alguns refilanços recorrentes. Tendo a minha avó nascido em 1900, vivia revoltada com a morte do rei e soltava, a espaços, desabafos sentidos “Não há direito o que fizeram ao rei…” A implantação da República deixara-lhe marcas que pouco tinham a ver com a política mas mais com a tragédia dos acontecimentos daquele 5 de Outubro de 1910. Claro que meu pai não achava nada que o rei tivesse sido um coitadinho. Claro que o meu pai, a troco de uma resposta rápida da minha avó, seria sempre um republicano convicto.
Nesse tempo a casa era cheia. Também de bibelots. Pairava lá por casa um pequeno busto do Camilo Castelo Branco. Não havia unanimidade quanto ao sítio do mesmo. Ora aqui, ora ali, o Camilo lá se ia passeando por entre os livros nas estantes do corredor. O meu pai achava que ficava melhor ali. A minha avó discordava e dava-lhe uma nova morada. O meu pai ao passar no corredor mudava-o um pouco mais para a esquerda ou levemente para a direita, apenas para brincar com ela. Obviamente ali não, pensaria a minha avó e, quando íamos ver, o Camilo já tinha ido dar mais uma voltita. Enquanto houvesse estantes, subsistiria sempre a certeza da discórdia quanto ao paradeiro do busto do escritor. Assim era a Guerra do Camilo, sem dúvida o bibelot mais viajado da casa e também embora sendo dos mais feios, senão o mais feio, o que mais diversão e risada nos provocava. Espero que o Camilo não leve a mal…
Tranquiliza-me saber o meu pai e a minha avó juntos, na vida e na morte. Quem se ama assim, ama-se sempre. Gosto de os sentir talvez num outro local, refilando um com o outro por causa da morte do rei, provocando-se por causa do Salazar e das estradas, a minha avó evocando o tempo do Nero para a pouca-vergonha contemporânea, o meu pai indignando-se com a candidatura de Mário Soares e ambos mudando sistematicamente de lugar o busto do Camilo na estante do corredor lá do eterno descanso.

quarta-feira, 19 de outubro de 2005

sem título

O que o meu pai gostaria de ter visto

Amigos e pessoas

O H. disse "Ligou a X.. Queria saber se havia de ligar..." Resmunguei qualquer coisa intempestiva como "ou liga ou não liga, se quer falar comigo que ligue!". Ligar para saber se há-de ligar? A casa começava a encher-se de amigos e, de uma das vezes que fui à porta da rua, encontrei a minha mãe agarrada a alguém. Agarrou-se a mim também e debulhou-se em lágrimas. Que pensara muito em mim, que gostava muito de mim, que era muito minha amiga. Não percebi quando tinha sido cada uma das coisas que acabava de afirmar e muito menos entendi porque o deixara de ser. Mostrou-se pesarosa.
A X. afinal decidira não ligar e, como manda o bom-senso, aparecer simplesmente. É assim que devem ser os amigos, acho. Foi assim que foram os amigos. Desapareceu após a missa de sétimo dia. Outros ficaram. Há amigos que nos marcam pela sua presença e pessoas que nos dizem mais na sua ausência.

terça-feira, 18 de outubro de 2005

Iniciais

Na sexta-feira ou talvez sábado, a minha mãe ligou-me e, com jeitinho e depois de ter dito algo antes, comunicou-me que o F. tinha tido um AVC. Estava bem na medida do possível. Descansei. O F. partilha com o meu pai a inicial do nome e foram também personagens principais de algumas curtas-metragens das suas vidas. O F. tal como o meu pai é beirão convicto e, tal como a minha mãe, amante de teatro e poesia. Um sonhador, um homem de afectos e emoções. Fala com o sotaque beirão, os ss mais sibilados, a entoação meio cantada e tem a frontalidade e o coração hospitaleiro das gentes nortenhas.
Conta-se que, antes de ir para o então Ultramar, parou por aqui nas manobras de preparação para o combate contra os turras e conta-se que durante esse mesmo período era visita assídua da casa dos meus pais, com outro amigo , também F. de primeiro nome. Nessa altura, eu era apenas perceptível pelo volume na barriguita da minha mãe. Todos os dias, assim o permitisse a instituição militar, podia encontrar-se lá em casa para uma troca de ideias, um encontro salutar e descontraído, sempre acompanhado por um bolo feito pela minha avó e uma garrafa de brandy para aconchegar a alma do inferno que os esperava.
O convívio foi longo e ilustre ao longo destes mais de quarenta anos. Certa noite, na Feira Franca, após um jantar opíparo e bem regado, o F. tomou-se de exaltações aparentes com alguém que passava, tal como esse alguém que passava com ele. Amigos de ambas as partes encarregaram-se de não os deixar sequer aproximar, temendo uma altercação. Nenhum cedeu. Continuavam vociferando e gesticulando, tentando livrar-se de quem os agarrava. Ambos procuravam o contacto físico, contacto físico esse que ficou posteriormente provado ser apenas um cumprimento. Conheciam-se bem, os dois intervenientes deste episódio, gostariam apenas de se cumprimentar cordialmente e não se sabe porquê, não se soube até hoje por que razão alguém havia de ter pensado que ambos se quereriam agredir. Acredito que o jantar opíparo não estará propriamente inocente neste caso. Lembro-me de ver alguém com a gravata de F. na mão e relembro as risadas fortes e sonoras nos dias e anos posteriores. O meu pai saberia com toda a certeza preencher com mais pormenores este episódio rocambolesco.
O F. ficou inconsolável com a partida do meu pai. O F. chorou connosco o vazio, embora longe. Felizmente está a recuperar do AVC. A debilidade do corpo é a linguagem da saudade quando nos secaram as lágrimas.

segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Da morte

Requiem
Há mortos que demoram a morrer
é inútil sepultá-los eles voltam
demoram-se por vezes numa sombra
num braço de cadeira ou no rebordo partido
de uma chávena. Ou então escondem-se
em pequenas caixas sobre as mesas.
Há objectos que ficam cheios deles
são como o rosto transmudado dos ausentes
sua marca na casa e no efémero.

Por isso custa tanto retirar o prato e o talher
arrumar os fatos desfazer
a cama. Há mortos
que nunca mais se vão embora.
Há mortos que não param de doer.


Manuel Alegre

sábado, 15 de outubro de 2005

Tanta fartura e tanta falta

"Sempre conheci esta menina assim. Tem uma fartura de cabelo!" Virei-me. Reconheci uma cara algo familiar mas cujo nome desconheço. Sorri, meio encabulada e à guisa de justificação alinhavei "Hoje saí de casa a correr, nem tive tempo de lhe pôr qualquer coisa para o amansar..." A minha mãe sorriu. A senhora continuou “mas é verdade, que cabelo e que fartura… e foi sempre assim”, rematou com um ou outro comentário elogioso e aos sorrisos cordiais abandonámos a loja. Não lhe mentira. Ao sair de casa depois de concluídas as inúmeras tarefas domésticas apenas tivera tempo para dar uma penteadela fugaz ao cabelo, o que regra geral me torna algo semelhante ao Struwwelpeter, personagem dos contos infantis alemães, mas em versão morena, feminina e de unhas rentes.
A senhora sempre me conheceu desta forma mas nem sempre tive esta fartura. Conta a minha mãe que embora ao nascer a tenha logo brindado com uma cabeleira preta e um remoinho no meio da testa, o meu cabelo nem sempre foi volumoso e rebelde. A minha avó paterna, a brasileira, sempre dizia, que o meu cabelo iria transformar-se na mudança de idade. A minha mãe mostrava-se céptica. Quando na mudança da infância para a adolescência a cabeleira se foi tornando cada vez mais desobediente e revolta, provou-se que a tese da minha avó estava certa. Isso aprendera-o com o meu pai, seu filho, que ao que parece também nascera menos cabeludo e que ao atingir a adolescência o cabelo se lhe tomou de humores e se metamorfoseou num cabelo forte, volumoso e ondulado, tal como se pode atestar ao longo da vida. Contava ela que era pelo cabelo que o distinguia e identificava por entre a multidão ou nas procissões.
Nos últimos meses, o meu pai viu-se impossibilitado de ir ao barbeiro. Urgia uma cortadela da melena, não obstante. O meu pai não estava a ficar parecido com o Struwwelpeter, como eu ontem. Assemelhava-se vertiginosamente a Einstein. O H. brincava "Deixe-me que lhe diga mas tem uma trunfa gloriosa!" Ele sorria orgulhoso. Seremos sempre felizes num presente que não permita antever o futuro.
O meu pai assentiu que eu lhe desse uma aparadela na sua gloriosa trunfa. Colaborou, paciente. Apreciou os momentos de cumplicidade e saboreou a dedicação redobrada. Eu e ele, entre toalhas e penteadores, borrifadores e champôs, tesouras e pentes “Papá, vira agora a cabeça para ali. Isso!” Só mais um bocadinho…” e ele carinhoso e obediente “Está bem assim? Vê lá aqui deste lado” e eu “Só falta um bocadinho, Papá” e ele “Está bem, filhota” e eu “Tenho a impressão que ficou uma bocadinho mais comprido deste lado…” e ele “Hmm, não acho” e eu “Pronto, acho que já está bem. Não sei se ficou bem, mas olha para próxima fica melhor” e ele “Deixa estar, queridinha.” No fim trazia-lhe um espelho para que se visse e visse se se achava bem. Sim, achava-se bem e sentia-se melhor. Que fartura de cabelo e que falta de ti, papá.

quinta-feira, 13 de outubro de 2005

Bandas Sonoras

O H. disse "Estive a fazer um CD de músicas brasileiras para nós. Anda cá ouvir." Larguei livros e dossiers e abandonei à porta de casa a azáfama do quotidiano. O dia adormecia calmo. Ele ia perguntando "E agora, que música vem a seguir?". Como um jogo ficámos entretidos, partilhando a banda sonora de algumas das nossas viagens, de muitos dos momentos em comum. Acredito que todas as vidas têm uma banda sonora. Depois disse "e neste CD está uma pequena homenagem ao teu pai..." E a seguir surgiu a voz serena de Adriana Partimpim Avião sem asa, fogueira sem brasa/ sou eu assim sem você... Estiquei-me no sofá. E Adriana continuava Neném sem chupeta/ Romeu sem Julieta/ Sou eu assim sem você/ Carro sem estrada/ Queijo sem goiabada/ Sou eu assim sem você. E enquanto Adriana continuava entoando serenamente a sua melodia, chorei serenamente como a sua melodia e deixei contida que as lágrimas seguissem o seu curso, rosto abaixo, pelo ribeiro da saudade.
No último aniversário do meu pai, a minha mãe ofereceu-lhe este mesmo CD. Não que Adriana Partimpim fizesse parte dos seus gostos musicais. Ambos gostavam muito desta canção e nela estava contida a declaração do seu amor inabalável de 51 anos de vidas partilhadas. A parte preferida de ambos era mesmo a do Queijo sem goiabada, também porque não existindo um sem o outro em casa dos meus pais e na casa dos pais dos meus pai, herança da vovó brasileira, mãe do meu pai, o meu pai sabia como era desasado, sensaborão e desprovido de intensidade o queijo sem goiabada, também a goiabada sem o queijo. A minha mãe concordava.
Que o Romeu vivesse sem a Julieta mais não era do que o recurso a uma referência literária, muitas vezes apenas mais um cliché dos amores sofridos e impossíveis. Que existisse neném sem chupeta ou circo sem palhaço eram apenas figuras de estilo para exprimir a urgência do amor. Nenhuma das metáforas detinha a intensidade do queijo sem goiaba para ambos que, precisamente por serem contrastantes no sabor, são um deleite para o palato e uma lição para a vida: o que não é contrastante torna-se monótono. Quando um é igual ao outro, um é apenas a continuação do outro, não outro. Tal não era aplicável aos meus queridos pais. Encontravam-se na diferença, respeitavam-se na divergência e amavam-se com tudo isso e acima de tudo isto. Um amor assim não se pode sequer explicar e agradeço a Adriana uma das mais eloquentes formas de o apresentar.
Quero acreditar que lá onde está o meu pai memória desta vida não se consente, senão estaria decerto cantando para minha mãe Queijo sem goiabada/ Assim sou eu sem você… eu não existo longe de você/ E a solidão é o meu pior castigo

quarta-feira, 12 de outubro de 2005

Silêncio

Há alturas em que preciso de escrever. Há momentos em que gosto de escrever e há momentos em que não sei escrever. Será por isto?

Com os anos a morte vai-se tornando familiar. Quero dizer não a ideia da morte, não o medo da morte: a realidade dela. As pessoas de quem gostámos e partiram amputam-nos cruelmente de partes vivas nossas, e a sua falta obriga-nos a coxear por dentro. Parece que sobrevivemos não aos outros mas a nós mesmos, e observamos o nosso passado como uma coisa alheia: os episódios dissolvem-se a pouco e pouco, as memórias esbatem-se, o que fomos não nos diz respeito, o que somos estreita-se. A amplidão do futuro de outrora resume-se a um presente acanhado.

António Lobo Antunes in Segundo Livro de Crónicas

segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Coincidências

O mesmo dia, o mesmo mês, o mesmo ano. Apenas umas escassas duas horas, de acordo com o que li na Praça da Canção, separam o meu pai de Manuel Alegre quanto à chegada a este mundo, sendo o poeta mais novo. O meu pai tinha um certo orgulho por esta coincidência. Hoje depois de ler O Quadrado fui à procura da obra do poeta. Encontrei isto:

Trinta Dinheiros
No bengaleiro do mercado público
penduraram o coração.
Vestem o fato dos domingos facéis.
Não têm rosto
têm sorrisos muitos sorrisos
aprendidos no espelho da própria podridão.
Têm palavras como sanguessugas.
Curvam-se muito.
As mãos parecem prostitutas.
Alma não têm. Penduraram a alma.
Por fora parecem homens.
Custam apenas trinta dinheiros.


in Obra Poética

Porque será que me parece tão actual?

domingo, 9 de outubro de 2005

Bem de Abril *

De há uns bons quinze anos a esta parte o meu pai, aproximando-se a data das eleições, fossem elas legislativas, autárquicas ou presidenciais, anunciava indignado "Não vou votar, este ano não vou votar!". Obviamente, estava aberta a discussão e a partir daquele anúncio esgrimiam-se argumentos. Que votar era um dever e uma obrigação cívica, a expressão da vontade do povo, um dos pilares da democracia, que a abstenção significava um alheamento quanto aos desígnios do país, que o 25 de Abril nos deu esse direito, que uma pessoa esclarecida e inteligente como ele não podia fazer tal coisa e por aí fora… Claro que tudo isto ele sabia e que com tudo isto concordava. Vivera antes do 25 de Abril, sempre se revoltara contra a ditadura e a censura, indignara-se com a guerra do Ultramar. Rejubilou com a Revolução dos Cravos, portanto. Contudo, uma bela troca de ideias era algo muito estimulante e que lhe dava um imenso prazer.
Acima de tudo o que motivava esta anunciada abstenção era a desilusão pelo rumo do país, pelo descaminho dos ideais de Abril, o desencanto pelo compadrio descarado e pela coroação dos corruptos. Perguntava-se muitas vezes “Foi para isto que se fez o 25 de Abril?” ou então comentava indignado perante sacos azuis e apitos dourados “Não foi para isto que se fez uma revolução, caramba!”
Nos últimos anos, ao decretar antecipadamente a sua abstenção, de nós não obtinha qualquer resposta e quando a minha mãe, ao sair de casa pela manhã em dia de eleições, lhe anunciava “vou votar” ele, não sei se em silêncio ou não, acompanhava-a e lá iam os dois lado a lado como sempre iam, também na vida, até hoje. Quando eu chegava a casa, ele dizia apenas, “Já fomos votar”. Na verdade, sempre exerceu o seu direito de voto.
Este ano a minha mãe terá anunciado “vou votar”. Este ano a minha mãe não teve a seu lado a presença física do meu pai. Este ano o meu pai não me relatou de viva voz “Já fomos votar”. Este ano perante a vitória de alguns candidatos, envolvidos em jogos de poder e corrupção, o meu pai teria comentado mais uma vez indignado “Não foi para isto que se fez uma revolução, caramba!”

* expressão usada hoje por Jerónimo de Sousa referindo-se ao direito de voto

sexta-feira, 7 de outubro de 2005

Parabéns!

Hoje faz anos o A. Tal como o meu pai, quando cheguei a este mundo ele já cá estava. Faz parte do meu universo, portanto, e com ele aprendi e vivi todo este tempo. Vezes há em que sinto que o mundo sem eles, sem a minha mãe e sem a D. não faz sentido algum.
É uma personagem singular. Julgo nunca ter encontrado alguém que sequer se lhe assemelhasse. O momento em que estive mais perto foi há uns bons anos, quando uma vez em Londres visitei o National Army Museum, lá para Chelsea, não muito longe de King´s Road. Não tenho memória do que vi em tal museu. As relações afectivas têm o privilégio de nos expor ao desconhecido, à novidade, mas também de deitar no lixo as memórias quando se tornam desnecessárias, supranumerárias ou redundantes. Amarfanhei esse papel da minha existência e joguei-o no lixo. Teria sido mais fácil premir a tecla Delete, caso estivesse então familiarizada com as novas tecnologias. Tal não era o caso, sendo as consequências as mesmas, não obstante. Dessa visita, recordo como único o seguinte episódio. Ao sair e na loja do museu, estava um cesto com uma série de caixas de chocolates, arrumadas com o providencial aprumo militar e a coroá-las, um dístico dos mais divertidos com os quais me cruzei SLIGHTLY OUT OF DATE. Um único pensamento atravessou a minha mente como uma rajada: só o A. seria capaz de tal feito. Se os ditos chocolates estavam apenas levemente fora de prazo, porquê desperdiçar? O A. jamais desperdiçará coisa alguma. Reduce, recycle, reuse, eram os seus lemas muito antes desta onda de consciência ambiental.
Sendo ele uma personagem singular, mantém com os demais relações não menos singulares. O meu pai incluía-se obviamente neste leque peculiar de amizades. Não podiam estar um sem o outro, mas não havia quem os aturasse um com o outro, eles inclusive. Um cabeludo, outro careca, um magro e escorreito, outro menos magro e mais pausado, um mais de esquerda, outro mais de direita. Claro que nos inúmeros encontros ao longo destes 40 anos, um era declaradamente de direita e o outro pugnava por ser quase de extrema-esquerda, o meu pai pois claro. Socorriam-se de epítetos variados para se designarem, sendo o mais comum marreta. Na pacatez do quotidiano partilhavam iguarias gastronómicas “Hoje vou fazer favas, diz a esse marreta para cá vir” soavam amiúde os telefonemas e recados, ao que o marreta senhor meu pai retribuía, mesmo sendo ele o homenageado “Nos meus anos faz macarronada, o A. gosta muito”. Foi assim no seu último aniversário.
Não largou nunca os meus pais o meu querido A., A que também é de amigo genuíno, dedicado e incondicional. Acompanhou o meu pai nesta última caminhada, sempre com a sua D. ao seu lado, ao nosso lado, mulher com uma generosidade directamente proporcional aos seus enormes olhos verdes. Desabafou entretanto “Marreta, foi-se embora e deixou-me a arca cheia de favas…”
Neste seu 71º aniversário aqui fica um beijo GRANDE, certa de que amanhã ao jantar o marreta não irá faltar no seu coração.

O Romeo, Romeo...

Julgo sempre ter havido gatos na casa do meu pai enquanto solteiro, na Beira Alta. De quando em quando, ouvia-o contar a história da Sra. A., uma empregada lá de casa, que um belo dia tinha ido deixar um gato a um descampado bem longe e quando chegou, e isto porque a sra. A. que nunca conheci, era já velhota e coxa, o gato estava lampeiro e triunfante em casa.
Os gatos só regressaram quando eu, nesta saga de vida de saltimbanco a que a profissão que abracei por vezes obriga, fiquei colocada numa terriola distante de casa. Decidi de imediato que, para quebrar a solidão e me alentar os dias, levaria comigo um gato, gato esse que viria a ser–me oferecido pelo aniversário e num dia posterior à data festiva, ao chegar ao meu quarto, me olhava, em cima da cama, meio assustado com um lacito azul à volta do pescoço. Era um gato siamês, tal como manifestado pelo meu desejo e que recebeu o nome de Romeu, por influência de Shakespeare.
À semelhança do herói shakespeariano, Romeu era um gato impetuoso, voluntarioso, rebelde e muito dado ao sexo oposto. Por assim ser, e tal como Romeo, envolvia-se com alguma frequência em brigas com os Capuletos das redondezas e quando regressava, era acarinhado e convenientemente tratado das mais variadas mazelas. Com o tempo tornou-se vingativo e exigente. Incapaz de aguardar um segundo se queria sair, aspergia com os seus fluidos viris as peças de roupa inadvertidamentemente penduradas na cadeira do quarto, a manga de uma camisola ou as pernas das calças.
É sabido que não somos nós quem escolhe os gatos, são eles que proclamam o seu favorito num agregado familiar. O Romeu, embora fosse meu por direito, elegeu o meu pai como seu verdadeiro dono, prestando-lhe assim todas as homenagens e sendo efusivo nas manifestações de carinho e lealdade. Derretia-se em ronrons sonoros, marradinhas ternurentas, passando várias vezes o focinho pelo rosto e instalando-se no seu pescoço ou no colo se o apanhava desprevenido. Curiosamente nunca vi o meu pai tentar apanhá-lo, agarrá-lo ou prendê-lo. Creio ter sido esse o segredo do seu grande sucesso junto dos felinos. Nunca os aprisionava, raramente os chamava e tão-pouco lhes impunha obrigações de cariz afectivo e todos eles lhe saltavam para o colo, acomodando-se de seguida na dobra do braço, ao que o meu pai respondia enternecido com uma ou outra afagadela suave. O amor, tal como a amizade, não se pede nunca, não se mendiga, não se impõe jamais.
O Romeu desapareceu-nos certa tarde de Abril. Estava doente e exausto, vítima da sua própria virilidade destemperada e das eternas assanhadelas com os Capuletos. O meu pai fez um luto silencioso. Todas as tardes porém, abria a porta da rua a pretexto de arejar a casa…
Agora que do meu pai ficou esta ausência, prefiro acreditar que estará algures, tranquilo, com o seu Romeu ronronando-lhe no colo, os dois dormindo enroscados a sesta da eternidade.

quinta-feira, 6 de outubro de 2005

Canetti

Ich werde immer wenige Menschen besitzen, damit ich ihren Verlust nie verschmerzen kann*
Elias Canetti

* Terei sempre poucas pessoas, para que não tenha de sofrer a sua perda.

terça-feira, 4 de outubro de 2005

Diospiros

Hoje quando cheguei à hora do almoço a casa dos meus pais, tinha como sobremesa, não um diospiro, mas um tabuleiro cheiinho deles. Ao contrário de anos anteriores, este ano estavam um pouco mais verdes, mas menos comiscados pelos pássaros. Mais compostos e inteiros, portanto. Não só o meu pai partiu. O jardineiro de há talvez duas décadas a esta parte abandonou o seu cargo devido à vetusta idade. Há mudanças que se vão anunciando de mansinho.
Talvez as mesmas duas décadas menos novo que o meu pai, o sr. A. sempre tomou como dele o nosso jardim e quintal e por assim ser, assumia-se igualmente como guardião do espaço verdejante. Bem cedo, logo pela fresquinha, regava as plantas e demais vegetação, a árvore da borracha que devido a uma ventania descomunal se suicidou sobre as escadas, as hortênsias e a costela de adão, o piri-piri e a sica. Via-o em passo lento fazer várias rondas ao longo do dia. Contava os frutos que cada árvore dava, deixando na mesma um bilhetinho com a estastítica e certa tarde de invernia, quando a minha mãe apressada se foi às nabiças sem cuidado e as cortou sem preceito, o sr. A. bateu-lhe à porta. Vinha indignado "Sabe lá, minha senhora, o que lhe fizeram às nabiças!!!!!!!" a minha mãe conteve o riso e respondeu-lhe no seu jeito despachado e bem disposto "deixe lá, sr. A., fui eu. Estava um frio de rachar e ventania enorme, fui lá apanhá-las para fazer uma sopinha". Mais tranquilo mas inconformado o sr. A. lá desceu as escadas e não mais se falou no assunto das nabiças esventradas no seu querido quintal.
O sr. A. sempre fez o que muito bem entendeu daquele espaço. Ontem mesmo, ao ler A Casa do Rio Vermelho de Zélia Gattai me relembrei desta relação curiosa com o jardineiro. Também Jorge Amado mantinha uma contenda semelhante com o seu.
A hera que cobria as paredes frontais da garagem lá de casa foi acometida de uma síncope fatal certa noite, assim foi relatado, uma vez que um belo dia pela manhã, tinha desaparecido sem mais e as paredes estavam despudoradamente nuas, apenas com uns veios aqui e acolá, vestígios da relação tão íntima com a dita hera. O meu pai ficou desolado. Adorava a hera e detestava as investidas do sr. A. que por sua vez tinha já sugerido que a hera não era lá muito saudável para a parede da garagem, que se calhar era melhor deitá-la abaixo... Nunca vencido e poucas vezes convencido, o meu pai, secundado pela minha mãe, determinara que hera havia de seguir rapioqueira o seu caminho e que eroticamente se entrelaçaria na parede, se assim o entendesse. Nunca foi apurada a falência súbita da trepadeira porém... e o sr. A continuou fazendo as suas rondas e podas. Quando decidiu abandonar o seu ofício ficou pesaroso e triste, sentimentos extensivos a todos nós, afinal não se deixava já determinar se era ele quem fazia parte do jardim ou o jardim que fazia parte dele.
Nos últimos meses, a erva espalhara-se e o desalinho tornava-se evidente, urgindo e surgindo um novo jardineiro lá em casa que com vigor e muito rigor se encarregou de dar um novo rumo ao quintal. A destreza física permite-lhe colher diospiros como nunca antes alguém fizera particularmente no cucuruto do diospireiro e salvá-los da passarada. Acredito que o meu pai se deliciaria este ano mais com os seus diospiros, observaria atento o seu amadurecimento, guardar-me-ia os mais belos e maduros, presentearia os amigos e conhecidos com os restantes, mas comentaria contudo que o jardineiro os tinha apanhado cedo demais e que, provavelmente, não partilhando com o meu pai as suas raízes beirãs pouco entenderia os mistérios dos diospireiros frondosos tão comuns nas suas amadas terras do Dão.

domingo, 2 de outubro de 2005

Sofá vazio

Na véspera, o Hélder disse que iria ele ver o meu pai. A minha mãe anuiu e eu concordei. Quando regressou, vinha tenso e pálido, com o rosto cerrado e disse baixinho, quase inaudível, julgo mesmo que nós as duas, baixitas e expectantes, lhe pedimos que repetisse o que dissera. Soltou então, como um sopro, como eu julgo ter partido o meu querido pai, "Faleceu" e repetiu "Já faleceu". Abraçámo-nos os três e chorámos ali mesmo, no átrio do hospital, baixinho, abraçados sempre como se um fôssemos. E depois, vieram os amigos, a igreja e as flores, e depois, deixámos-te, Papá, junto da Vóvó, naquele sítio onde ainda só uma vez fui, e depois vieram dias e noites e mais dias. Dias há em que penso ainda que irei encontrar-te de sorriso aberto, sentado no teu sofá de eleição, esperando-nos ansioso, pela hora do almoço, refilando com uma notícia da televisão ou presenteando-me com uma peça de fruta, escolhida com o teu carinho único, "Toma, escolhi para ti". A casa tornou-se enorme sem ti e o sofá continua vazio.

sábado, 1 de outubro de 2005

A primeira foto

Na hora de pôr a mesa

na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu.
depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu.
hoje, na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viuva.
cada um deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

José Luis Peixoto


E nós seremos sempre quatro...