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quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

A minha casinha no Natal

A minha casinha no Natal continua a ser amarela com portadas verdes. A minha casinha no Natal é igual à minha casinha dos restantes meses do ano, épocas festivas ou estação estival, apenas com mais ou menos luz, assim ordenará o astro-rei. No Natal, a minha casinha tem uma árvore de Natal, artificial, por amor ao ambiente, uma decoração pendurada à porta, duas árvores pequenas intercaladas com frutos secos, aromatizadas com paus de canela e meias rodelas de laranja seca, papel de embrulho ocasionalmente pela sala, fitas já em bouquet rotundo e farfalhudo, postais da época aqui e ali. Na minha casinha o Natal foi pautado pela tranquilidade do tempo que se quer de recolhimento, sem exuberâncias, sem corridas, sem pressas. Também por isso eu gosto muito da minha casinha, por isso e porque na minha casinha o Natal foi passado à margem do zeloso cumprimento das regras castradoras que pululam por esse país fora e isto porque a minha modesta casinha amarela de portadas verdes é zona interdita PROIBIDA A ENTRADA aos extremosos zeladores das que se dizem regras da terra dos mexilhões. Na minha casinha a cozinheira não usou touca, bateu os sonhos com as mãos depois de ter aconchegado os ingredientes com colher de pau, de resto só há colheres de pau nesta casinha amarela, o azeite para a ceia da consoada foi servido em galheteiro de vidro, o mesmo aconteceu ao vinagre já se vê, uma desgraça, portanto, e o café, já se sabe, tomado naturalmente em chávenas de porcelana. E depois se tivesse visto o primeiro-ministro ainda podia maldizê-lo, comentar as sobrancelhas excessivamente depiladas, o discurso padresco com tiques e laivos passados, aqui na minha casinha posso fazê-lo e claro, também por isso, gosto muito mas muito da minha casinha, que é a amarela, tem portadas verdes e uma porção incomensurável de liberdade lá dentro.

imagem: minha

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Os sonhos

E os sonhos de que são feitos? Penso nisso enquanto o dia se aconchega na noite e a tarja de mar prateado cintila lá longe pela janela da cozinha. Será Natal do outro lado do mar? Um tacho, claro, largo, como todos os tachos, preto e pesado, naturalmente. Um copo de leite, uma pitada de sal, uma colher bem cheia de manteiga. Manteiga, jamais margarina. Deixar ferver sob olhar vigilante. Os sonhos são caprichosos, qualquer desvio pode derrotá-los ainda meninos. Retirar do lume. Acrescentar a medida do leite em farinha. A tarja de mar desaparece-me no horizonte entretanto. Levar ao lume outra vez e envolver vigorosamente todos os ingredientes com uma colher de pau, enquanto o calor se encarrega de os ligar. Deitar para um recipiente largo e, quando começar a arrefecer, ir juntando ovos inteiros: um, dois, três, quatro, cinco, seis. Os ingredientes de que os sonhos são feitos devem abundar em quantidade e qualidade, é sabido. Escureceu de repente. Da janela da cozinha escuro apenas. Momento improvável para acalentar sonhos. Depois as mãos na massa, os sonhos que se querem sonhos querem-se batidos com o vigor da vida, amassados com as próprias mãos, já se sabe. Com perseverança, sem desistir, até chegarem ao ponto exacto, difícil de explicar na palidez do ecrã para que escrevo e na noite que ouço lá fora, silenciosa e soturna. Depois a fritura. Aquecer o óleo e ir deitando pequenas porções na fritadeira. O óleo nem muito quente nem muito frio, um dos segredos mais bem guardados. E eis que se avolumam e crescem. Os sonhos devem crescer, pois claro. Envolver com açúcar e uma quantidade muito generosa de canela. E assim são os sonhos, envolvidos com carinho, batidos com robustez e saboreados com a doçura do açúcar e o exotismo da canela. O aconchego possível para a noite imensa que se pôs lá fora.

Também no Geração Rasca

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Silencio

No silêncio

Jede Sprache hat ihr eigenes Schweigen.
Elias Canetti

O silêncio é a língua que melhor falo. Sem declinações, casos, tempos verbais, conjugações ou gramáticas espartanas. Não tem vírgulas, hífens ou apóstrofes. No silêncio não há recriminações, desconhecem-se acusações, ignoram-se lamentos. No silêncio as lágrimas correm silenciosas e mudas, não se calam à primeira ordem. No silêncio não há tons de voz estridentes ou palavras desconjuntadas, articuladas em amálgama com as lágrimas. Apenas no silêncio digo exactamente o que quero dizer.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Faltas tu

Na sala, do lado direito, a árvore voltou ao lugar de sempre. No canto, encostada à parede, como sempre. As fitas de sempre, douradas e vermelhas, apenas duas grinaldas, uma de cada, simplicidade, dizias. Estrelas douradas intercalam com as vermelhas. Um ou outro anjo, perdido no labirinto dos ramos artificialmente verdejantes e viçosos, discrepantes do azevinho lá fora no jardim, este ano tímido. Ornamentos trazidos com carinho dos mercados de Natal mais a Norte, enquanto palavras em línguas ininteligíveis se cruzavam com o perfume do Glühwein, o travo mais retemperador que os invernos austeros conhecem e as almas natalícias desejam. Os presentes quase todos comprados. As aulas que acabaram e o ano que resvala para o precipício final. Tudo se compõe neste tempo que se quer de Natal. Só faltas tu, papá.

sábado, 15 de dezembro de 2007

On my side

O tempo. Um verdadeiro luxo nos tempos contemporâneos, o luxo de poder usufruir dele, fazer com ele o que quisermos, se quisermos. Queixa-se o Pedro da falta dele mas que, não obstante, a Curva da Estrada conta com as suas visitas. Uma grande honra, naturalmente, que retribuo com a minha banda preferida de sempre. Desta vez o tempo está do meu lado.

Postal ilustrado III

Budapeste
foto: minha

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Fukitol

Aqui no Curva da Estrada, não há hipocondria. Tirando uma levíssima cefaleia, um catarro, uma miopia e uns quilos a mais, temos passado bem, obrigada. Mas nada ficou como antes, depois de termos descoberto esta pílula milagrosa que a Sinapse nos apresentou do outro lado do Atlântico. Grandes males, grandes remédios.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Ó Robinson Crusoe, isso faz-se?

O burburinho habitual antes da acalmia desejada. Que tinha sido ela. Ela o quê? Furou uma orelha na aula de Filosofia. Valha-me deus. Credo. Quando chegarem ao Nietzsche ainda me fica como o Van Gogh. Furar uma orelha? Isso faz-se? Foi ao lado de um furo que já tinha. Com um alfinete de ama. Mas que coisa. Que disparate. Atão, setora… Bem, cuidado com as brincadeiras, meninos. Faz favor de não fazer disparates e toca a desinfectar tudo como deve ser. Pois. Sabem que podem apanhar infecções. Pois. E os piercings, setora? Cuidado. Cuidado com piercings e tatugens. O pai não deixa fazer. Outra não gosta. Outra não quer. Ah pois, mas já sabem que podem apanhar doenças, nomeadamente contrair HIV, se não for feito com todas as condições de higiene. Sabemos. Juízo! Vão só a sítios de confiança. Pois. Mas, ó setora… Sim, Setora?! Sim, é que eu já ouvi dizer uma coisa. Ouvi dizer que a sida veio dos macacos. E? E… se veio dos macacos… O olhar subitamente comprometido. Que nojo, setora, só de pensar nisso… A repugnância no olhar, a cara de asco. Ca porcaria. Mas foram mutações genéticas!. Mutações genéticas? Mas se veio do macaco para o homem… E pronto, se virem por aí o imundo, nojento, porcalhão, perverso, obsceno e depravado que se foi ao macaco, façam favor de comunicar na caixa de comentários, é que há uma adolescente inquieta com esta questão de enorme importância para a humanidade. Há lá direito, logo com um macaco.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Lux facta esd

Disse José Saramago hoje à Rádio do Concelho de Mafra que aceitará, “em nome do povo de Mafra”, a Medalha de Mérito Municipal, votada em unanimidade esta sexta-feira na reunião de Câmara. O escritor adianta que “está curioso para saber qual a argumentação que a Câmara Municipal de Mafra irá utilizar para justificar a atribuição da Medalha de Mérito depois de todos estes anos de insultos”. Após catorze anos de contenda, fez-se luz no executivo camarário, a luz que tem lugar nas sociedades civilizadas, esclarecidas e tolerantes, naturalmente, motivo de enorme regozijo.


foto: minha

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Adeus

Se agora não tenho tempo para bloggar, esperem até regressarem à escola para fazer exame e alindar as estatísticas socráticas todos os que, desde de 1967, não conseguiram acabar os estudos.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Tortura medieval

Por fracções de segundo julguei que a minha orientação sexual espreitava naquele momento como nunca antes. É certo que nunca mulher alguma antes se tinha derramado sobre os pomos que eu exibia lampeira e descansada, mãos atrás da cabeça, como gosto de dormir ou de descansar. Que é lá isto? As mãos suaves e tépidas. Ó valha-me deus! Logo agora. O que tantos homens teriam de aprender com a competência e expertise da clínica à minha frente. Umas torcedelas de olhos para a maquineta em frente. Tudo bem, afirmou. A densidade atribuída à minha não-desova. Depois saio da sala, soutien no bolso, -as figuras que uma mulher faz- e logo após, mais um dos procedimentos a que as mulheres adultas e maduras estão sujeitas. Isso, agora o braço por cima, mais para dentro, está bom, e a advertência Vai doer. Vai doer? Como vai doer? Então mas isto não é tecnologia de ponta? Sim, sim, mas dói na mesma. Ai dói na mesma? E depois a tortura para que nenhuma mulher está preparada, valha-me a santa, o santo, o filho e o neto da santa e do santo. A mama, coitadita, em cima de um tabuleiro, e como um torniquete, algo que apertava, estatelava, esmagava, comprimia, calcava, espremia, premia, amassava, amachucava, amarfanhava, amolgava, achatava, aplanava, acachapava as minhas ricas maminhas. Tudo acompanhado com uma dor insuportável e a confirmação Pois é, dói um bocadinho. Um bocadinho? Depois daquilo, temi que em vez das meias luas que me ornamentam o torso, sairia de lá com duas prateleiras -o jeito que dariam para pôr o giz e o apagador enquanto esbanjo conhecimentos na sala de aula. Portanto, isto é só para avisar que para a próxima vez que for sujeita a esta verdadeira tortura medieval não respondo por mim e antes de lhes começar a atacar as canelas - os pés eram a única parte do meu corpo capazes de actuar adequadamente à situação- chamo o Comendador B para lhe dizer umas palavrinhas.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Texto procura-se

O dia para trás das costas finalmente. O caminho tranquilo na direcção do ocaso laranja. Uma tarja de mar inesperada no equinócio de Inverno iminente, o ziguezaguear pelas ruas da aldeia e, de repente, eis que me salta um texto ao caminho, pequeno é certo, as primeiras três palavras apenas, mas era um texto. Reconheci-o pela forma inesperada com que me surpreendeu. Sem aviso. Os textos não primam pela deferência. Aparecem sem se anunciar e saltam-me ao caminho em alturas pouco oportunas. Os textos fazem-me isto muitas vezes. Depois de passar as hortênsias do lado esquerdo, recompus a frase inicial, juntei-lhe mais uma palavra, agora com vírgulas a separar e, antes de chegar aos penachos do lado direito, já lhe tinha acrescentado um outro substantivo, características, talvez ou particularidades. Pisca para a esquerda, o ocaso alaranjado, viro à esquerda. Quando passei o chorão do lado direito ainda o sentia preso na imaginação, bem agarrado, como quando se segura um pássaro nas mãos, as asas em linha recta com o corpo distendido ao ritmo da respiração. Estava vivo, portanto. Chego a casa. Abandono-me ao ritmo que largo os livros em cima da mesa. Um suspiro profundo a recompor-me do dia e o texto soltou-se-me à primeira distracção. Ainda tentei agarrá-lo mas quando lhe deitei mão tinha-se libertado pela porta da sala entreaberta contra o crepúsculo lá fora. E foi assim que fiquei sem ele, esse tal texto que tinha na mão e em mim, esse que leriam agora caso não fosse tão rebelde e não me tivesse fintado ao pôr-do-sol.

sábado, 24 de novembro de 2007

Centros comerciais

Há quem diga que centros comerciais são sítios feios, catedrais do consumo e consumismo, lugares sem alma, vazios de coração onde, quando entramos, deixamos abandonada à porta a nossa essência. Pois eu digo-te que não, porque para mim todos os sítios podem ser belos, se a nossa alma também o for. E como a sinto tranquila e recostada na almofada da paixão, de igual modo se me revelam os espaços físicos e temporais por onde contigo deambulo, espelhando o estado de alma abençoado. O poeta dizia há metafísica bastante em não pensar nada. Eu, que gosto muito do poeta, digo-te, meu amor, há uma plenitude indizível em não pensar nada, se estamos lado a lado, porque não precisamos de nada pensar, que o sentir basta-nos para viver. Que interessa se passeamos entre gente apressada e tropeçamos em sacos de plástico ou de papel reciclado, repletos de marcas e slogans publicitários? Importa, se nos movemos em nuvens de fumo ao som de música estridente e nos perdemos, por segundos, na multidão exaltada e irrequieta, se sempre juntos em nossa alma estamos? Incomoda-te, quando mergulho nas camisolas coloridas ou brancas, nos tops básicos monocromáticos ou nas t-shirts com florzinhas azuis ou arabescos laranja? Não, pois não? Porque, se te pergunto gostas desta? Tu, a quem pouco movem as camisolas, olhas e respondes que sim, a mim tudo fica bem, dizes. Pensas com o sentir, meu amor, e por isso me dizes tão bela. O amor é uma companhia. / Já não sei andar só pelos caminhos, porque já não posso andar só dizia o poeta. Também eu já não sei andar só pelos caminhos.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Ai que Saudades

da Jamaica e de Cuba e de Nova Iorque e do Brasil e de Cabo Verde
e duma água de coco
e duma caipirinha
e dum mojito
e duma espetadinha de camarão na praia e
duma cachupa no Mateus.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

Cheiro a puta

Desconheço de onde terá partido esta ideia do cheiro a puta. Não tendo cheirado nenhuma, não que me lembre ou que saiba, não sei de onde o fui buscar nem porque adoptei esta denominação. O Verão também cheira. Um perfume doce e cálido como um beijo no pescoço. O cheiro a puta é diferente. Trata-se daquele odor intenso, como por exemplo, pot pourri - que nojo- ou incenso de rosas - que porcaria-, um odor quente e incomodativo - que vómito-, sempre associado às rosas dos perfumes de gosto duvidoso- que grande nojo-. Entro no clube de vídeo, o cheiro pestilento do tabaco no ar e a observação de rompante Que cheiro! A rapariga, de cigarro na mão, arremessa-me um olhar interrogativo Cheira mal? Cheira a tabaco. No mesmo instante o cigarro apagado e a informação Deixa lá que a partir de Janeiro já não pode ser. Entretanto, o cheiro nauseabundo do tabaco num recinto fechado em dia de humidade copiosa intensificava-se. Mais um reparo E quanto mais para dentro, pior. A rapariga meio sem jeito, mas apenas meio. O outro meio estaria a chamar-me nomes pelas costas pela interrupção do cigarro prazenteiro e os remoques constantes, ou pela frente, uma vez que, perante o casaco semiaberto, olhou curiosa. Não, não estou grávida, afirmei, Sou mesmo assim, perdigueira. Na tentativa derradeira de me minorar o sofrimento, a rapariga refundiu-se atrás do balcão e soou entretanto o ruído fricativo de um ambientador. Três, quatro ou cinco baforadas e o odor repugnante pelo ar, esgueirando-se entre as caixas do DVDs até me atingir letalmente o olfacto. Disse-lhe Que horror! Que cheiro este! Ainda é pior! É melhor fumares. Espreitei lá para os lados da secção de filmes x-rated por via das dúvidas. O cheiro a puta tinha de vir de algum lugar.

Os meus respeitosos agradecimentos

à Ana e à Sinapse
que me salvaram a mãe de morrer envenenada.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

À atenção dos transeuntes, amigos e visitantes

O que é que uma mãe não faz por uma filha? Tudo, certo? Pois o que uma filha faz por uma mãe não anda muito longe do que o que a progenitora se permite pelo seu rebento. Primeiro o diminutivo. Nonô? Sim? Lembras-te de quando puseste o fisalis no blogue? Lembro. E lembras-te que apareceu logo alguém a dizer que conhecia? Sim. É que podias pôr lá no blogue a fotografia daquele arbusto lá de baixo... Arbusto? Qual arbusto? Arbusto lá em baixo? Ninguém sabe o que é aquilo. Credo, estarreci. No blogue, blogue? Valha-me deus, lá se me vai a reputação. Aquilo é um blogue de respeito, onde já se viu pôr uma fotografia do arbusto, mamã? Vai parecer os classificados de um pasquim qualquer. Ora essa. E, ainda por cima, perguntar às pessoas se conhecem? Aqui a risada sonora e descomprometida da minha mãe, literalmente divertindo-se com o meu constrangimento. E a conversa retomada Eu já provei, mas não faço ideia do que será. Provaste? Provaste tipo comer, digerir, deglutir? Provar provar? Provei. Mas o jardineiro já me disse para não provar mais. Diz que pode ser venenoso. Meu rico jardineiro. Homem sábio. Estou capaz de lhe erguer uma estátua pelo desgosto a que me poupou de ver a minha mãe envenenada com os frutos do arbusto sem nome, movida pela curiosidade de restituir a identidade ao arvoredo desenfreado. E antes que a minha progenitora se lembre de ir provar outra vez os frutos do arbusto incógnito ou de nos obrigar a provar o dito como faz ao almoço Quer um bocadinho? aqui fica o apelo. Amigos, transeuntes, leitores leais e dedicados e visitantes, algum de vós faz alguma ideia do que será aquele bicho frondoso aqui em baixo? Ajudem uma filha desesperada. O que uma filha não faz por uma mãe.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Momento Houaiss

- Mas por que é que respondem sempre na defensiva, meninos? Um pergunta é apenas uma pergunta. Nem mais nem menos.

- E isso é o quê, setora?

- Isso o quê?

-Isso, da defensiva.

Momento calimero

ai
ai
ai
ai
ai
ai
ai
ai

terça-feira, 13 de novembro de 2007

A diferença que um homem faz

Um olá especial a quem cá passa para ver isto.

Afinal havia outro

O Tibúrcio estava cabisbaixo. Deambulou entre uma e outra cadeira. Observei-o pelo canto do olho sentado numa cadeira de lado para a mesa, o rosto apoiado nas mãos. Mau, passa-se algo com o grande, o maior, o nosso Tibúrcio. Perguntar-lhe estava fora de questão, não fosse o Tibúrcio arremessar-me com uma das suas doutas tiradas ou questionar a legitimidade da abordagem Que queres tu? que como se sabe o Tibúrcio tem a cabeça toda em escadinha: ele no topo, grande como Moisés com as tábuas no Monte Sinai e o povo humilde, rasteiro, bem cá em baixo, dando vivas Quem é grande, quem é? O Tibúrcio regressou entretanto para o computador, resmungou algo entre dentes, maldisse a ministra da educação, rosnou ferozmente contra os pontos E eu? Eu? Grande. Douto. Admirado. Competente. Ai que se nos vai o Tibúrcio! Visivelmente agastado. Abatido. Deprimido. Pobre Tibúrcio. Que mal lhe afligiria agora? Cruzei-me com ele na escada mais tarde. Murmurou um cumprimento sumido e mal engendrado e, depois pelo queixume crescente, o alarido das gentes na sala de professores, percebi então o mal do Tibúrcio. A verborreia de sempre. Ah e tal, eu com tantos créditos e pontos e elogios. Uma palavra solta, uma frase completa da qual sobressaia O Melhor Professor. Era injusto bradava. Afinal não tinha sido ele. O Tibúrcio, o grande Tibúrcio. Uma injustiça, é o que é.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Deliziosi biscotti croccanti

Os alunos de quarta-feira não são os alunos de sexta-feira. Os de quarta são relativamente sociáveis, acatam os reparos, são interessados e curiosos. Os de sexta-feira só sossegam com ameaças e respectivas tomadas de posição, não acatam, não ouvem, são rebeldes e quase indomáveis, inquietos, agitados, ansiosos e endiabrados. Na sexta-feira, quando me lembrei de lhes passar um filme e uma ficha de trabalho pareciam nunca ter visto filme algum na vida, comentavam alto tudo o que viam, tudo o que ouviam, faziam perguntas de rajada e, por momentos, pensei ter recuado no tempo e encontrar-me na sala de cinema do velhinho e defunto cinema onde se gritava ao cowboy que matasse o índio lá da plateia. E depois lembrei-me do cãozinho meu vizinho, saltita nas patas da frente e de trás quando nos vê e nada o consegue parar na expressão do seu contentamento. Os meus alunos não saltitam de felicidade ao verem-me mas saltitam na agitação que os caracteriza e só as ameaças os fazem parar. Para a próxima levo deliziosi biscotti croccanti. Pode ser que assim sosseguem e antes que venha a protectora dos animais e a dos alunos desprotegidos lançados nas garras impiedosas dos seus mestres aviso, desde já, que gosto muito do cãozinho e que gosto muito dos meus alunos. Deliziosi biscotti croccanti.

Budapeste

foto: minha

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Maioridade

João Ubaldo Ribeiro, 66 anos, brasileiro, natural de Itaparica, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Wladimir Kaminer, 40 anos, russo, natural de Moscovo, escritor, jornalista, animador de rádio, fundador da Russendisko. Embora vinte e dois anos de vida e um continente apartado pelo Atlântico os separem, estes dois homens partilham entre si, além do labor da escrita, uma mesma cidade. Não há evidência de que alguma vez se tenham encontrado, desconhece-se se algum dia se terão cruzado na Ku´ damm ou em qualquer outra rua da urbe mais emblemática do século XX. E, mesmo sem se saber o seu paradeiro durante o longínquo ano de 1990, altura em que ambos partilharam a cidade, Berlim une os dois escritores. Assim conta a história de João Ubaldo Ribeiro, que a convite do DAAD passa quinze meses em Berlim e que a partir da sua vivência na cidade e do confronto com uma realidade que o esperava com todos os estereótipos do brasileiro da Amazónia, escreve um livro delicioso, cheio de humor e peripécias narrando as aventuras desses quinze meses em território germânico. Enquanto isso, Wladimir Kaminer, recém-chegado da Rússia politicamente em escombros e socialmente desvalida, talvez habitando já no Schönhauser Allee, também o título de um dos seus livros iniciais, vive Berlim de forma tão intensa e estranha quanto Ubaldo Ribeiro. O mesmo olhar de fora, crítico, irónico, sarcástico, focado na cidade em pleno processo de mudança, engalanada com todas as cores da liberdade, exuberante na esperançada transmutação.
João Ubaldo Ribeiro regressa ao Brasil, para trás a experiência de Berlim e a rua Storkwinkel, a morada berlinense que admite ter-lhe deixado saudades, e brindou-nos com um belíssimo livro, breve, mas prenhe das impressões de um brasileiro em Berlim e que acabaria por emprestar o título à obra.
Kaminer ficou. Berlim torna-se, entretanto, o cadinho fervilhante de que são feitos quase todos os seus livros. Kaminer assume-se como não berlinense no único livro que dedica abertamente à cidade, Ich bin kein Berliner, a paródia evidente a uma das afirmações mais simbólicas do século passado. A dúvida persiste, no entanto, e para saber fica, se este estatuto de forasteiro serve à escrita, à figura pública do escritor ou ao real sentimento de inadaptação que provou ser um dos ingredientes imprescindíveis e de sucesso nas obras de Kaminer, mais ainda se pensarmos que tem intenções de candidatar-se a Burgomestre da cidade.
E Berlim não é cidade mãe, materna e acolhedora. Não tem regaço nem colo. Não nos canta canções de embalar nos crepúsculos agitados. Berlim é o oposto da mãe: dispersa, áspera, desigual, imensa e indiferente. Em Berlim podemos ser anónimos eternamente, um entre muitos na multidão frenética, multicolor, multicultural, lançados à mercê dos humores da sua altivez e intensidade que congrega a ironia e contradição dos acontecimentos históricos e sociais mais transformadores da Europa do século XX. E duma cidade assim, a história inscrita em cada pedra e a espreitar a cada esquina, só podiam brotar muitos livros, possíveis pela comunhão com a cidade que 9 de Novembro de 1989 permitiu.

foto daqui

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Um mundo inteiro

O Tibúrcio esteve dois computadores ao meu lado com três colegas de permeio. O Tibúrcio estava tiburciando Ah e tal, trabalho aqui e ali e acolá, e lá e coiso e isto e aquilo, sou o maior, e lá dizem, fazem e acontecem. A parceira do Tibúrcio no computador a tudo lhe dizia que sim, não se deixa adivinhar se por cortesia ou convicção. O Tibúrcio continuava ufano, embriagado com a fama que diz ter, ébrio de si mesmo em crescendo à medida que as palavras ecoavam e se elevavam sobre o ruído do teclado. O Tibúrcio, que ficou para trás pela sua própria mão, alardeava a injustiça suprema obrada sobre a sua magnânima, excelsa, excelente, competente, fantástica, estupenda, admirável pessoa e, foi nisto, que de repente se salta com os pontos. Eu, eu é que tinha mais pontos do que todos na escola, mas eu sou injustiçado, vilipendiado, ofendido. Pontos? Mas que pontos Tibúrcio? Não há mais pontos. Pobre Tibúrcio, acorrentado ao passado, embriagado de si mesmo. Enquanto isso há trabalho de sapa para fazer, mas a esse o Tibúrcio vira a cara Que é lá isso? Ah! Eu? Eu, o grande, o bom, o melhor de todos fazer esse trabalheco? Onde já se viu? Como se atrevem? Não sabem que eu sou o Tibúrcio? Fora o trabalho um espectáculo onde todos observassem o Tibúrcio e lá estaria a ele, olhando-se onanista, afagando o ego como quem faz festas a um gato, voraz no amor desmedido que nutre pela sua grandiosa pessoa, vociferando de forma a que todos, todos o ouvissem, todos sem excepção. E, entre mim e o Tibúrcio, não há um, dois, três ou quatro colegas de permeio. Um mundo inteiro é pouco.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Do que não vem nas receitas

Reabro o suplemento do jornal deixado ao acaso sobre o sofá na certeza de ser relido uma ou duas vezes mais. Percorro pela segunda vez as paragens sugestivas, viagens low-cost, e os olhos focam quase nas últimas páginas uma receita de ginjinha: 1 kg de açúcar, 1 kg de ginja, 2,5 l de aguardente, 1 pau de canela.
A melhor ginja artesanal que terei bebido foi feita pela mão da minha tia, corria então o longínquo ano de 1995, há mais de uma década, portanto. O aroma desprendia-se de imediato no contacto do néctar rubro com o cálice de dimensões generosas, assim me cutuca a memória presente da mescla do perfume da canela com a cor densa de textura licorosa, ou não fosse ginja, com os frutos mínimos esféricos no fundo da garrafa bojuda que julgo ainda existir em casa dos meus pais. E vem tudo isto a propósito das receitas de cozinha. Podem incluir o mais sofisticado e rigoroso modo de preparação, ingredientes de qualidade excelsa, exóticos, raros, frescos, biológicos, mas caso sejam ausentes e desvalidos do toque mágico e alquímico de quem os une, casa, funde e mistura, qualquer cozinhado potencialmente perfeito e opíparo transformar-se-á numa sensaboria inodora e insípida. E, também por isso, nunca entendi quem aferrolha a sete chaves segredos de cozinha, guarda para si receitas e toques especiais que, teoricamente e aos olhos dos avaros e zelosos guardiães dos mistérios de sabores, transformam um simples prato num manjar divino. Qualquer receita é potencialmente um desastre ou um sucesso, assim a mão de quem a labora e prepara. Por isto também tenho a certeza de que jamais provarei ginja como a da minha tia.


Imagem a partir daqui


também no GR

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Vinganças

Duas horas após a entrada na sala de espera, finalmente a hora chegara. Boa tarde, cumprimentos, a identificação e o reparo perante o meu peso Mas eu lembro-me de si. Não era assim. Ah pois não. Era mais selvagem, inconsequente, irresponsável. Tranquilizante pensar que o peso e a responsabilidade se excluem na minha vida e que, perante a inevitabilidade da responsabilidade e o domar do bicho inquieto em mim, o peso é o contrapeso como quando se compra safio na praça. A prelecção sobre os malefícios do tabaco. Sim, pois. Mas eu não fumo, doutor. Pois, mas que fazia mal a isto e àquilo e aqueloutro. Sim, sim, claro. E que hoje em dia já não havia razão para se fumar. Claro, calculo. Há muitos métodos para se deixar o tabaco. Pois, pois. Há pensos e pastilhas e uma mão cheia de outros métodos. Certamente. Um ou dois dedos de conversa técnica sobre assuntos do corpo. Depois a observação rigorosa e atenta. Um ligeiro ataque de tosse, entretanto, e a confissão imediata É do tabaco. Credo. Tabaco? Tabaco? O doutor fuma? questionei impertinente e surpreendida. É o vício, é puro vício. A confissão ainda mais surpreendente que a revelação do fumo Até me fez corar agora… A vingança justa para quem, além de me fazer reparos sobre o peso, coscuvilhava convincente recantos recônditos onde ser algum deveria no mais inimaginável dos dias perscrutar.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Pão-por-deus

No dia de Pão-por-deus as portas de minha casa escancaram-se, um prolongamento evidente da alma risonha e desvelada. Espreito-os pela janela, depois do chilrear que habitualmente os denuncia. Descem a rua e encaminham-se decididos para a minha porta. Tocam à campainha. Abro-lhes a porta, dizem ao que vêm e, de saco aberto, pregam os olhos vivos e iluminados na mesa colorida com recipientes vários: rebuçados, chupa-chupas, moedas de chocolate e gomas. No olhar o sentido de justiça infantil e com ele escrutinam quantas moedas a um e a outro, quantos chupas e se todos levam em igual quantidade de cada uma das guloseimas ao dispor. De ano para ano o crescimento evidente. Alguns dispensaram, entretanto, a vigilância familiar e regressam mais confiantes à procura das moedas de chocolate ou das bolinhas, imprescindíveis neste dia de alma iluminada. Um beijo, uma festa na cabeça, agradecem felizes, com os sacos tilintando e os sorrisos inestimáveis. Até para o ano.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O russo

Dois mil e sete. Ano da graça de dois mil e sete. Assim marcava o calendário lá de casa pendurado na parede da cozinha ao lado da porta e assim dizia um outro calendário no talho da aldeia onde se tinha ido aviar antes de ir buscar a Vanessa Marise à escola no aixam azul metalizado. Manel Francelino não se conformava. Ele era obras na estrada, ele era obras aqui e acolá. Uma ocasião a sua Vanessa Marise ia chegando atrasada e isso é que não podia ser que já se sabe a professora na perdoa, ai não não, mas aquilo era trânsito que começava logo ali na rotunda. Voltou a fazer contas. Ora então, pelas suas contas, essas mesmo que se desenhavam agora na sua cabeça, faltavam ainda uns anos. Nesta altura a santa estava ali perto, de resto, a santa nunca ia muito longe, mas ainda assim eram dezassete freguesias e, por conseguinte, só voltava dali a uns poucos de anos. Ainda não era já, o que piorava de sobremaneira o estado de confusão do Manel Francelino. Atão, se a senhora da Nazaré na bem este ano, pra qué aquilo? E o Manel Francelino era rapaz muito dado a saber quês e porquês, herdou-o por parte da mãe e do pai, já se sabe, herdou-o por parte da aldeia toda que, há uns anos, era tudo primos e primas e, tantos os primos como as primas, as tias e os tios, eram rapazes muito dados a saber os pormenores da vida alheia, com particular incidência na árvore genealógica do inquirido. O pior de tudo era se, por exemplo, lhe saltava ao caminho um apelido conhecido, Duarte ou Jesus. Ó pá, aquilo era uma máquina, um computador com uma velocidade de processamento de dados infalível Ah, já tou a beri! Bocê é filho do ti João do Paúl, que era irmão da Francelina da Chanca. Ah pois, Atão, esse tá casado com uma rapariga que é cunhada do primo do Chico da Amendoeira e essa rapariga tem uma prima que é cunhada da nha irmã… Ah pois claro. Como é que não vi isso antes? Quando chegou a casa, disse à Quina Francelino A Senhora da Nazaré bem este ano! A mulher sabia que o Manel Francelino não ia para novo, notava-se na dureza de ouvido evidente, julga-se que acentuada nos momentos em que a conversa não lhe convinha, mas daí até antecipar a vinda da santa à freguesia ia um passo de gigante. Bem o quê, Manel? Atão inda falta tantos anos! Mas tu na bês que eles andam a arranjar a estrada? É só obras. Só pode ser a santa. Quina Francelino encolheu os ombros, chamou pela Vanessa Marise na fosse a neta tar a namorari e voltou à lida dos patos e coelhos.
No dia seguinte, o Manel Francelino investiu. Na podia ser, atão, na podia ser, ele era a estrada com tapete novo, ele era os traços a serem pintados, os muros. Perguntou ao rapaz que estava lá entretido a mandar parar os carros, uma vida triste, a levar com os fumos dos escapes e agora vermelho, agora verde, levanta a tabuleta, vira a tabuleta, siga, siga. O homem foi peremptório na resposta. É o russo, ti Manel, é o russo que vem aí. Ah, disse o Manel Francelino O Ruço sobrinho da Ti Mari Ruça? Não, homem, o russo, o Putin! O Pinto? Na tou a ber, mas deve ser importante esse ruço. Pois, é importante é. Manel Francelino ficou desolado. Afinal havia alguém mais importante que a senhora da Nazaré, ainda por cima homem, ruço e não era o sobrinho da Ti Mari Ruça.

imagem: minha

domingo, 28 de outubro de 2007

Muitos anos de vida


E porque hoje a menina das estrelinhas comemora o seu aniversário,
aqui fica uma flor do meu jardim para uma das flores que ilumina este cantinho.
Mil beijos.

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Nunca se sabe

Um silvo talvez. Um som sinistro como um uivo. Leonor Barros inquietou-se Que raio é aquilo? Credo, até parecia coisa do outro mundo, não que fosse muito dada a essas coisas do sobrenatural, mas, na verdade, o som grave que depois se fortalecia e ecoava em crescendo não agoirava nada de bom. Chamou a outra. LBarros descolou-se do livro a que estava presa, contrariada já se vê. Caramba, não se pode estar sossegada. Que foi? Leonor Barros disse Ouves isto? O quê? perguntou a outra. Estás surda, mulher? Este barulho, um uivo. LBarros escoiceou-a, atitude muito comum na peculiar relação a três. Mas que coisa, não se pode estar descansada, estava ali agora a parir um texto para o blogue e vens-me incomodar com um barulho? Leonor Barros irritou-se Mas quem me manda a mim ir ter contigo? É livros, é a blogosfera, vives lá alheada, o que não queres é que ninguém te chateie. LBarros concordou irónica Claro. Porquê? Até parece que gostas de ser incomodada quando estás a fazer alguma coisa…. Obviamente que não. Olha, lá está outra vez… tás a ouvir? LBarros revirou os olhos, Ó mulher, andas mesmo cansada… É a papalagui. A mulher anda virada do avesso com os desígnios do país. Claro, disse a outra, Vais-me dizer que andas contente com esta porra deste país? Achas? disse LBarros Eu não estou é pra me chatear com estas merdas. Quero lá saber. Deixem-me cá com os meus livrinhos. Rais parta a mulher, disse Leonor Barros, Até parece que não é nada contigo… Ó caramela, vê lá se entendes uma coisa: prometi a mim mesma que o Sócrates e Lurditas não me iriam tirar anos de vida, ponto final. O que vier vem, estamos cá para aguentar a porrada. O uivo outra vez. Eh pá, a mulher está desvairada disse LBarros concordando com a outra. Aquilo é um bicho danado. Já viste como ela sempre por aí de vestido vermelho, tranquila, espreguiçada com as palmeiras por trás? Leonor Barros insurgiu-se E qual é o problema? Faz ela bem. Tomara eu. Ando sempre para cá e para lá, ah e tal se calhar é melhor não escrever isto e aquilo não fica bem e depois assim e assado. A outra concordou. Pois, e eu ando sempre pra aqui agarrada aos livros e à escola, trabalho que nem um animal e reconhecimento que é bom, zero, zerão. A gaja é que tem razão: curte a vida, diz uns quantos disparates, solta umas risadas inconvenientes e faz o que lhe passa pela cabeça. Além disso, adoro vermelho e aquele vestido mata-me. O som de novo. B, parece que começava por b. Olha, lá tá a maluca outra vez. Mas que é que ela diz? LBarros apurou o ouvido. Parece que é bú. Leonor Barros inquiriu BÚ? Tás parva? Bú? LBarros outra vez Ouve lá! É bú, pois. E enquanto isto o bú crescia. Búúúúú. E de repente fez-se luz. Não acredito. Não acredito que aquela desvairada… E nisto apareceu papalagui, prazeirosa, vestido vermelho e cabelo caído, o perfume dos trópicos, o andar displicente, perna aqui, perna acolá Que foi, ó suas paspalhas? Tou a treinar, tou. É claro que tou a treinar. Ia lá perder uma oportunidade destas. A treinar? Tás doida? indignaram-se as outras em uníssono O homem amanhã não vai fazer jogging… papalagui não se deu por achada Sabem lá vocês se o homem amanhã não muda ideias e vai fazer jogging ali para o parque desportivo… Ai caraças, ponho-me logo na janela do pavilhão e digo o quê? O quê? O quê? Búúúúúú. Leonor Barros e LBarros ainda estiveram para ignorar a papalagui, mas ambas sabiam que caso não lhe dessem razão ela iria bradar dias, meses, anos a fio, quiçá, que aquilo é bicho que jamais se calará, se souber que tem razão, portanto, juntaram-se-lhe, que outra alternativa lhes restava? e em uníssono experimentaram um sonoro e vigoroso. Nunca se sabe se amanhã o homem não vai fazer jogging para o parque desportivo.

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Nos astros

Enquanto Mercúrio estiver retrógrado tenho uma óptima desculpa para a falta de inspiração que me assola.

sábado, 13 de outubro de 2007

Rules for cats

Show your appreciation for freshly pressed clothes or folded linens by taking time out for a nap on these items. Make sure to leave your mark by shedding as much fur on them as possible.

Fancy Mews, Rules for Cats.

foto: minha

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Contemporaneidades

A velha. A velha deu mais um solavanco. Nem por isso se importou, a vida tinha sido cheia de solavancos, mais um, menos um, que lhe importava agora. Façam o favor de agora me carregarem, que também os carreguei muitas vezes e por isso fiquei alfabeta que nem sei ler uma letra do tamanho dum camião e com um filho suficiente, dizem, que eu cá para mim o que ele é, é burro, burro que nem uma porta, o sacana. Descansaram por um momento, esbaforidos e sem fôlego para mais uma tentativa Quando eu disser três, levantam. Um, dois, TRÊS. Soltaram-se gemidos, urros e rugidos e mais uma tentativa Um, dois, TRÊS. A velha balançou, resignada, com um sorriso apatetado Andem, vá, seus camelos. Lixaram-me o dinheiro todo, pensavam que era só o bem bom. Vá, seus burros de carga, aguentem-se, que cá a velha tá velha e é alfabeta, mas não é suficiente, como o Manelinho. Aguentem-se.
A cadeira. A culpa é da cadeira. Onde é que já se viu fazerem cadeiras deste tamanho? E pesadas como tudo… A velha pensou Onde é que já se viu é vocês serem uns frouxos de merda, que nem força têm para levantar a cadeira. Sorriu apalermada, porém, pondo a sua melhor cara de velhinha entrevada, que ela era alfabeta, mas não era suficiente. Ó Maria, tens aí o número de telefone do gajo das cadeiras? Vamos reclamar. Se fosse na América até nos davam era uma indemnização… Os olhos da Maria filha da velha reluziram. Como? O quê? Uma indemnização? Uma I-N-D-E-M-N-I-Z-A-Ç-Ã-O? Se nos vão dar dinheiro, guito, pilim, cacau, bago, massa, o melhor é mandarmos apertar mais a escada. Chama mas é o pedrêro. Amontoados nas escadas novas da casa nova decidiram exaustos Eh pá, tentamos mais uma vez e pronto e a Maria filha da velha retorquiu Cuidado. Muito cuidadinho com as minhas escadas. Ainda me dão cabo do mármore. E o marido da Maria filha da velha Mas afinal, queres tentar ou não? A Maria filha da velha retorquiu Ó pá, eu quero tentar, mas as escadas custaram-me um dinheirão e se os gajos não sabem fazer cadeiras de rodas de jeito, a gente pede-lhes a tal indemnização. Não me lixem é as escadas. E mais uma vez Puxa aí. Empurra agora. Vá, só mais um bocadinho. Ai que tá quase. Um, dois, TRÊS.
A velha continuava impávida e serena, com o ar estonteado de velhinha paralítica e entrevada enquanto gargalhando para dentro Andem, seus animais. Façam força que eu gemo, seus cabrões, que me gamaram tudo. Era só mordomias, marcas e manias. E eu que me esfalfei a trabalhar e agora deixavam-me no vão das escadas? Entre suores e esgares do esforço, alvitrou-se As escadas são é apertadas. O gajo que fez isto não mediu bem. A Maria filha da velha tomou-se de razões Ai isso é que mediu, sim senhora, que foi o melhor arquitecto. O marido da Maria filha da velha inquietou-se perante a evidência Mas se cadeira não passa... A Maria filha da velha ripostou Mas isso não me interessa nada, porque o arquitecto é que sabe e se ele fez isso assim é porque assim é que é e mai nada. E o amigo do marido da Maria filha da velha Atão tu não lhe dissestes que a tu mãe tava numa cadeira de rodas? A Maria filha da velha não se deu por achada Tinha que ser assim, porque se não a casa ficava mal. O arquitecto até falou duma coisa da arquitectura, ai, como é que é? Com… com… que a casa tinha que ter umas linhas com… conterrâneas, ai…
A velha, que era velha e entrevada mas não era suficiente, retorquiu do alto da cadeira de rodas, recolhendo o ar de velhinha patética Contemporâneas, linhas contemporâneas, sua burra Pasmaram. A filha da velha até pensou que lhe ia dar uma coisa má Ó mãe, ó minha rica mãezinha, você não se me enerve que ainda lhe pode dar uma anorexia… E a velha respondeu APOPLEXIA, sua burra. Já não me chegava o suficiente. E agora, tirem-me daqui.
A velha foi para um lar, ausente de escadas com linhas contemporâneas, e foi feliz o resto dos seus dias. Longe dos filhos, aproveitava os dias falando com os seus congéneres, trocando experiências, aproveitando as tardes soalheiras de Outono, confortável na cadeira de rodas e um dia, quando a filha a foi visitar, questionou Quem és tu? Não que a velha não a reconhecesse, mas a candura dos dias no lar apagara as memórias desagradáveis e, com essas memórias, as pessoas que as tinham tornado desagradáveis.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Perfume de Gardenias


Bellísimos destellos de luz en tu mirar
Tu risa es una rima de alegres notas
Se mecem tus cabellos cual onda de la mar.

Para a minha mãe pelas gardénias que hoje me ofereceu.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

O Botas

O Botas voltou. O Botas moderno não tem nariz aquilino. O Botas moderno tem um nariz arredondado na ponta. O Botas moderno tem mais cabelo do que o antigo, mas está mais branco, pobre Botas moderno. O Botas moderno já não usa as roupagens tão cinzentas mas o Botas moderno usa fatinho cinzento também. O Botas antigo foi árvore que não deu fruto a não ser o Botas moderno, descendente directo do Botas antigo, só que mais moderno. O Botas antigo vivia na sua toca, tinha voz fraca mas mão de ferro, vivia só mas orgulhosamente só. A diferença que faz um advérbio de modo. O Botas antigo desconhecia essa tal coisa moderna e democrática de oposição. Que é lá isso oposição? Ai, ai, vamos lá ver o respeitinho. O Botas moderno tem que viver com a oposição, modernices, é o que é, quem inventou a democracia devia ser assassinado como o rei, mas partilha com o Botas antigo um mesmo princípio quem não é por mim é contra mim, por isso o Botas moderno não gosta que o vaiem BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ BÚ, Botas moderno, até porque nos tempos modernos do Botas moderno, o mundo é um local civilizado cheio de realeza e gente com pergaminhos, educação e berço Ah, onde já se viu vaiar um Primeiro-Ministro, perdão, um Botas moderno, um senhor dr. Botas Moderno? Xô, bichos do mato, vá, vá, recolhei em vossas tocas gentalha menor. E, como nos tempos do Botas antigo, protestar é coisa daqueles tais que comiam criancinhas ao pequeno-almoço, ai como é que era o nome? Comunistas? Mas esses já não acabaram? Ora essa, então e quem protesta assim? Quem? Quem mais? Quem mais se atreve? Os comunistas, pois claro. Quem não é por mim é contra mim. E quem é que está contra mim? Os comunistas, pois, a restante população reage em júbilo perante os impostos que aumentam, os hospitais a rebentar pelas costuras, as escolas que fecham, as inverdades pelas bocas fora sem o menor pudor ou respeito. E quem protesta, então? Os comunistas, senhor Botas moderno, o resto do povo é ordeiro e submisso. O Botas moderno quer saber quem são. Sim, quem são esses tais? Ide averiguar, ide. Aqui está uma diferença relativamente ao Botas antigo. Já não há a António Maria Cardoso, o Forte de Peniche é uma fortaleza sita numa cidade piscatória batida pelo Atlântico, lá para Oeste, o Tarrafal uma localidade de Cabo Verde. E sem tudo isto, que há-de, pois, o Botas moderno fazer? Investigar, claro, contornar, fugir. Dantes não havia estas modernices de protestar assim, e se o Botas moderno não tem a António Maria Cardoso, tem de tomar as suas providências, compreenderão. O Botas antigo caiu um dia da cadeira, pobre Botas antigo, mas o Botas moderno está agarrado à cadeira com uma cola mais eficaz do que a tal que colava cientistas ao tecto e, quando cair, só se for com a cadeira, mas claro empurrado pelos comunistas, os únicos que protestam, o restante povo é ordeiro e submisso e feliz.


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segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Muitas vidas

Entre os vinte e dois anos que teria nesse tão longínquo dia oito de Outubro de 1987 e os quarenta e dois que me perpassam o corpo neste oito de Outubro de 2007 medeiam vinte anos. Vinte anos de vida profissional e vinte anos de muitos rostos. Muita gente que partiu, muita gente que ficou, muitos rostos imberbes que amadureceram, vozes que subitamente se tornam graves, corpos que se alongam como se alonga o ano, muitos Outonos e Primaveras, muitas vidas que se fizeram entre a alvorada e o ocaso, muitos caminhos apontados e alguns trilhados. Algumas frustrações e tristezas, muitas dúvidas e algumas inseguranças, outras tantas injustiças. Muitas interrogações se este seria o caminho. Vinte anos da minha vida. Quase metade. Muito tempo, portanto. E nestes vinte anos a dúvida que se dissipa perante os sorrisos que nos procuram, o coração que aquece com uma palavra, a alma que explode com uma vitória, igual se grande ou pequena. Vinte anos de ensino são muitas vidas.

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Dia do Animal

Human beings are the only animals of which I am thoroughly and cravenly afraid.

George Bernard Shaw

Os cães porque são meigos, fieis, jamais abandonam o dono, colam-se-lhe exigindo atenção mas retiram-se se repreendidos, obedecem, entendem claramente as faltas em que incorreram, abanam o rabo ao pressentirem os amigos, lançam olhares meigos a que ninguém com coração consegue resistir e retribuem sem contrapartidas a entrega de quem os quiser estimar. Os gatos porque são belos e magnéticos, elegantes e independentes, têm uma personalidade vincada e não influenciável, são territoriais, leais e gratos se bem lhes fizermos e, claro, quem resiste ao ronronar ternurento num dia de invernia à lareira, da rodilha de pelo felpudo em que se transformam nesses mesmo dias cinzentos, abrindo apenas uma fresta de olho para que nos saibamos vigiados? E depois há os pássaros, coelhos, hamsters, tartarugas, peixinhos multicolores, reptéis inclusive. Perceberão, pelas palavras acima desenhadas, que sou uma amante confessa e irrecuperável de gatos, prefiro-os aos cães, e portanto não posso concordar mais com Mark Twain: "If animals could speak, the dog would be a blundering outspoken fellow; but the cat would have the rare grace of never saying a word too much.” Uma questão de gosto apenas, esta minha paixão pelos felinos, mas uma coisa é certa, gatos, cães, periquitos, cágados ou coelhos, os nossos amigos a que chamam irracionais são uma fonte inesgotável de prazer, um prazer a que alguns escritores não são de todo indiferentes. Miguel Torga relata abundantemente esta relação tão especial e enriquecedora entre o homem e os animais, Eugénio de Andrade confessou também magistralmente com as palavras o amor pelos gatos –como o compreendo- e Manuel Alegre escreveu o amor transformado em livro pelo seu cão, parte integrante da família, que nós, os amantes de animais, conhecemos por dentro mas seríamos incapazes de escrever com tanta excelência.
Dizia Mahatma Gandhi que a grandeza de uma nação e o seu progresso moral podem ser julgados pelo modo como os seus animais são tratados. Se assim fosse, muito haveria a dizer sobre Portugal e o constante abandono verificado, mais evidente nos períodos de férias. Deixo-vos com estas palavras, hoje que se comemora o Dia do Animal, de quatro patas, bem entendido, e menos asnos que muito burros que não zurram.

foto: Hélder

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Nem bem nem mal

Agosto. Algum calor. Uma tarefa ingrata entre mãos. Um colega de Matemática abeirou-se de mim. Trazia na mão uma folha A4 escrita e, ao dar-me a folha, disse Vê lá isto… Há aqui qualquer coisa que não está bem. O autor do escrito mantinha-se expectante entre os dois. Li e reli. Valha-me deus, alá e jah. Quem escreve assim só pode ter a cabeça num nó e num nó cego. Palavras amontoadas, unidas por conectores desconexos, vírgulas e pontos ausentes em férias dado o adiantado mês de Agosto. O de Matemática intentou Não está bem, pois não? O outro olhava à espera de um veredicto, enquanto eu procurava a forma mais airosa e menos ofensiva de lhe dizer que aquilo não estava mal nem bem, estava uma caca. Mais uma leitura, então, e as palavras surgiam-me cada vez mais desconexas, divorciadas umas das outras, um carreiro de letras rapioqueiras, que a cada leitura e provavelmente por me obrigar a eufemismos, nada a que os professores não estejam habituados, me surgiam ainda mais afastadas. Por mais voltas que desse ao texto, um relatório não muito dado a liberdades de criação literária, nada daquilo tinha nexo e, perante os olhares dos dois ansiosos por um veredicto, atalhei caminho e perguntei Mas o que é tu queres dizer? Assim talvez fosse mais fácil, assim com umas explicações talvez se tornasse mais clara a intenção. E hoje assim foi: um texto disforme, palavras encavalitadas, atropelando-se sôfregas, carecidas de um sentido lógico, um texto que não estava bem nem mal, estava uma caca, com maiúscula e a negrito, credo, mulher, que bicho te mordeu? e que outra solução encontrei, se não a de me chamar à pedra, sim, onde julgava eu que ia? e perguntar-me, antes de reduzir as letras a material virtualmente reciclável Afinal o que é que queres dizer com isto? Foi isto antes de me ir embora e desligar este bicho infernal de onde vos escrevo.

sábado, 29 de setembro de 2007

O nome das coisas

Na aldeia, não é só a mercearia que produz um efeito encantatório sobre os seus fregueses. Na aldeia, há o talho que transmite o terço nos sábados ao fim de tarde num volume que faria concorrência aos carrilhões, caso tocar lhes fosse permitido, e há uma padaria, padaria e pastelaria, claro está.
Diz-se na aldeia que a dona da padaria tem um feitio pouco apaziguador, que não guarda para si o que lhe não agrada e que é pouco amistoso no tratamento dos empregados. E como sei tudo isto? Sei tudo isto porque, um dia na mercearia entre a maçã e amêxa, alguém terá dito que a dona da padaria tinha moído o juízo de tal forma a uma empregada, já não rapariga nova, que a pobre estava mal dos nerbos. A dona da padaria é uma mulher pequena, morena, magra e com o despacho característico das mulheres na aldeia. Jamais ficará quieta se puder andar e jamais se calará se puder falar. Foi assim também que relatou um dos seus partos. Ao que parece, terá rezado a cartilha ao clínico, o homem assustado actuou a contento e também sei isto, não porque eu e a dona da padaria sejamos íntimas. Sei isto porque a dona da padaria, um dia enquanto aviava as carcaças e as bolas, terá relatado esse momento de excelsa elegância que algumas mulheres gostam de relatar: o parto, essa odisseia de esgares, gritos, fluidos, bolsas de sei lá quê que se derramam por uma mulher desprevenida abaixo, médicos, médicas, enfermeiros e enfermeiras a espreitar mistérios insondáveis da natureza feminina, contracções, dilatações e expulsões, valha-me a santa, para que é precisa a inquisição, se se pode parir? E assim foi que, de olhar vivo, explicou, fluente e experiente na desova, como tinha sido.
Na padaria, o pão não é sempre o mesmo. O pão é sempre o mesmo, mas a denominação vai variando, portanto não chega apenas falar-se a língua dos homens, há que dominar o código, as nuances, as particularidades, as subtilezas. O que num outro lugar é denominado de papo-seco na padaria não se resume a esta sensaborona classificação. Uma ocasião, e após ter sido convenientemente informada de mais uma alteração da nomenclatura, entrei já tarde na padaria, numa hora do dia em que o pão habitualmente já teria sido todo vendido e perguntei à dona da padaria se ainda havia pão. Impunha-se a utilização da nomenclatura recentemente adoptada e, mesmo sentindo que talvez estivesse a perguntar o óbvio, algo visivelmente exposto à minha frente, arrisquei Tem maminhas? A mulher não se ficou e atirou-me Não quer mesmo que lhe responda, pois não? Trocámos um sorriso cúmplice e perguntei Então, mas como é que se chama esse pão? A mulher retorquiu Bicos! Ah muito bem! Então e há bicos? A mulher disse Não sei se o padeiro vai cozer mais pão hoje. Pedi-lhe Então, veja lá, se faz favor, se o padeiro vai fazer mais bicos hoje... No meu tempo, padeiro fazia pão. Bicos eram deixados, se não para outras ocasiões, definitivamente para outras áreas profissionais.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

English as she is spoke

In the country of blinds, the one eyed men are kings.
Na terra dos cegos o que tem um olho é rei.

José da Fonseca & Pedro Carolino, English as she is spoke

Contrariamente ao que possa indicar um título tão sugestivo, desta feita não está em causa a fluência do primeiro-ministro português e que tem divido as opiniões entre defensores e carrascos.
English as she is spoke, The new Guide of the Conversation, in Portuguese and English, in Two Parts, da autoria de José da Fonseca e Pedro Carolino é uma obra que não deixa ninguém indiferente. O guia de conversação inglesa para estudantes portugueses data de 1855, foi elaborado a partir de um dicionário de Inglês/Francês e um de Francês/Português e, ao que parece, a total ausência de auxiliares de língua inglesa, inclusivamente de conhecimentos basilares da língua de Shakespeare por parte dos autores, não constituiu qualquer óbice, obstáculo ou impedimento. Para memória futura, o livro perdura com pérolas de incontida comicidade. Certamente se os autores tivessem intencionalmente escrito um livro humorístico, não obteriam o efeito deliciosamente hilariante contido nestas páginas.
O livro divide-se em duas partes. A primeira versa sobre o vocabulário português e inglês e a segunda sobre diálogos familiares na qual se incluem anedotas, idiotismos -expressões idiomáticas- e provérbios. Recomendo, pois, aos caros leitores para a próxima vez que quiserem saber novidades, arrisquem What news is there? ou qual é o assunto do momento Which they speack?, se estiveram com pressa digam-no no inglês fonsequiano I am pressed myself, se tiverem uma pergunta dirigida ao mercado editorial nada como But why, you and another book seller, you does not to imprint some good works? E, mesmo tendo acabado o tempo dos pêssegos, recomenda-se These apricots and these peaches make me and to come water in my mouth. Acredito que estejam incrédulos por esta altura mas se me disserem I believe not it, respondo-vos Nor I either.
Outras pérolas imprescindíveis na comunicação do quotidiano incluem I have put my stockings outward ou seja, calcei as meias do avesso ou às avessas. Sem esta, quem conseguiria sobreviver? ou He is drowned of debts, muito útil tendo em conta o contexto socio-económico do momento presente ou ainda para os amantes fervorosos I dead myself envy to see her, bem melhor do que a versão portuguesa Ardo em desejo de a ver. Caso tenham filhos ou seja necessário um conselho paternal nada como Apply you at the study during that you are young. Uma coisa vos digo: that may dead if I lie to you que é como quem diz, morra eu se vos minto mas não será demais pedir-vos Put your confidence at my, confiem em mim, claro.
E foi tudo isto no século XIX, imaginem se José da Fonseca e Pedro Carolino presenciassem os discursos com que José Sócrates nos tem brindado. Escreveriam tomos inteiros, uma enciclopédia, certamente.


Todas as expressões em inglês foram retiradas na íntegra de José da Fonseca & Pedro Carolino, (s.d.), English as she is spoke, McSweeney´s Books.

Imagem: minha

Também aqui

domingo, 23 de setembro de 2007

Num mundo perfeito

A rapariga descansada e tranquila. O corpo envolvido na volúpia do calor caribenho, a alma estendida na espreguiçadeira dos dias cálidos e despreocupados. A rapariga faz um telefonema. A rapariga recebe um telefonema. A mãe da rapariga diz-lhe Vai haver um seminário em Setembro sobre o Estatuto da Carreira Docente. É importante. Queres que te inscreva? E a rapariga, embalada pelo gemido dos coqueiros, o mar que se oferecia espelhado como um lago, transparente, quente como uma imensa e longa carícia, respondeu Sim, sim, claro, mamã, inscreve-me. E a rapariga voltou para a inconsequência dos dias sem relógio nem horas, com o sol apenas como referência, o mar como uma colcha de seda, turquesa, leve e translúcida, um mango daiquiri para apaziguar a soalheira manhã e a canícula abraçada ao corpo, o seminário esquecido, remetido para os dias vindouros carregados com o odor denso da obrigação. E a rapariga regressou a casa. Para trás, o sol, o mar, os coqueiros, o calor húmido, as noites tranquilas de céu estrelado, o aroma que se liberta dos trópicos como um perfume inebriante e selvagem sem se deixar agrilhoar em frascos que não sejam os que albergam memórias, e a rapariga abandonou os dias regidos pelo movimento do astro-rei, e a rapariga vestiu calças e calçou sandálias, mais roupa do que lhe era permitido nos dias estivais, no pulso o relógio retomou o lugar de sempre, a rapariga abraçou as obrigações profissionais e passou um dia ouvindo banalidades, queixumes, erros, incongruências, recriminações, choros e lamentos, o secretário de estado que não aparecera e como seria? sim, como iria ser?, um dia fechada num auditório gélido com a amargura alheia dos anos passados e a incerteza dos tempos futuros, e maldisse o gemido dos coqueiros e o tempo inconsequente que lhe apagara por instantes a razão e a fizera pensar que afinal o mundo era perfeito.

Negril, Jamaica.
foto: minha

Festejemos

O GNT vai voltar!

sábado, 22 de setembro de 2007

Ruiva

Pelo cheiro é que vamos

Sabe deus, alá e jah, as privações por que passo para, a bem da civilidade, boas maneiras e educação, não cheirar o pão em público ou a comida ou tudo o que se me visita agradável e inquietante pelo olfacto, pescoços inclusive. Ontem dei por mim a cheirar furiosamente o "Público". Começou na escola, quando uma colega abriu o saco dos jornais, e o perfume se espalhou na sala. Continuou no carro e permaneceu em casa. E a dúvida Será de mim? E mais uma investida suave do nariz contra o papel de jornal e, mais uma vez, a procura de uma amostra de perfume e depois um homem com o corpo provocantemente distendido nas páginas centrais anunciando um perfume És tu? Hoje desfeito o equívoco. O jornal pede desculpa por o suplemento ter sido impresso em papel perfumado e o regresso à normalidade neste dia de Setembro que finda com a brisa fininha como um sopro no pescoço com o aroma indelével de fim de Verão.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Aqui quieta

Estou aqui. Estou aqui na sala da minha casinha amarela onde tomei por hábito escrevinhar. Aqui entre livros e papéis. A Ruiva deitada ao meu lado, meio enrolada no remanso da tarde que finda, as réstias de sol que trespassam como fios de ouro pelos cortinados. Estou aqui refém na minha casa. Estou aqui sentada, quieta e calada, isto só para ver se passo despercebida, ver se ninguém me ouve, ver se a senhora que me dá uma mãozinha nas arrumações, lavadelas, limpadelas e passadelas a ferro, manuseando esse bicho infernal que bufa e deita água pelos bofes e ventas sobre a tábua de engomar, quiçá o animal mais temível da minha cozinha desde que o Chewbacca se foi. Estou aqui calada, o toque dos dedos no teclado indiciando um trabalho em curso e um trabalho de monta, urgente, importante, inadiável. Assim calada pode ser que passe despercebida. Assim calada não me acontecerá como no dia em que também quieta no mesmo local mas em amena cavaqueira com a minha Dona Francisquinha, ela me irrompeu triunfante sala adentro de aspirador em punho e eu, passeando de blogue em blogue, todos respeitáveis, todos de bom nome e bom gosto, deparo-me, no instante em que ela se aproximava lesta e expedita, com o Daniel Radcliffe assim. E a Dona Francisquinha bem perto e o jovem homem impassível na sua súbita masculinidade e eu aqui em vias de abraçar o ecrã com o sorriso dos tontos, a solução desastrada para encobrir o despudor e salvar a minha reputação de mulher respeitosa e respeitável ou de puxar a senhora para a conversa Benzó Deus, como o rapaz cresceu, Dona Francisquinha! e ela É verdade! Esta mocidade cresce muito… E desde que largou a vassoura parece que ganhou corpo. Tão pequenino que ele era. São estas coisas que nos fazem velha, Dona Leonor... e eu desajeitada sem conseguir clicar com a rapidez necessária no canto superior direito do ecrã. E é por isso que estou aqui calada. Calada e quieta. Nunca se sabe os estragos que um blogue pode fazer a uma dona de casa desprevenida.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

Frio? Não, eu uso uma termotebe

Das muitas graçolas, piadolas e incongruências com que este governo e o Ministério da Educação nos tem brindado, esta é particularmente - ora, deixa-me cá ver um adjectivo- hilariante, curiosa, espirituosa, divertida, disparatada. Conheço algumas escolas e nenhuma tem aquecimento central, nem sequer aquecimento. Provavelmente quando Maria de Lurdes Rodrigues se desloca às escolas de olhar cândido e condescendente, afagando a cabeça das crianças e quando José Sócrates, de ar generoso, caridoso, benemérito -igual a ele só São Nicolau- distribui portáteis pelo país fora, as escolas estão aquecidinhas, os meninos perfumadinhos e lavados e os professores de farpela domingueira igualmente perfumados e lavados, tudo para o efeito claro. O paraíso, portanto.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Mudar

Mudar talvez.
Mudar de vida, certamente.
Mudar, sair, partir.
Mudar definitivamente.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Logo a nós

Num país onde o primeiro-ministro se faz passar pelo que nunca foi, o ministro da saúde manda dar os medicamentos fora de prazo aos pobrezinhos, -saiu-me cá um brincalhão o rapaz- o ministro das obras públicas chama a margem sul de deserto, a ministra da cultura falta às comemorações do centenário de Miguel Torga, a ministra da educação e o primeiro-ministro contratam figurantes para as digníssimas cerimónias inaugurais dessa salvação dos males da educação: o quadro interactivo - desde a invenção da roda que não se assistia a nada tão inovador-, o primeiro-ministro não recebe o Dalai Lama -tão mal aconselhadinho que o rapaz anda- está tudo preocupado, revoltado e furioso porque Scolari diz que deu mas não deu, deu mas diz que não deu, não deu mas devia ter dado, deu mas não devia ter dado um estaladão no sérvio, e que é um mau exemplo, e que dá mau nome ao país e mancha o futebol e que assim não pode ser, que se devia ir embora e mais isto e mais aquilo. E logo nos aconteceu isto a nós, logo a nós, valha-nos a senhora de fátima mais a santa da ladeira, tão recheadinhos de gente séria, de gente honesta e de palavra, irrepreensíveis a dar os bons exemplos. Ora, francamente, já não se pode ser um pouco efabulador e excessivo para levar logo na corneta. Vejam lá se ao Sócrates lhe acontece alguma coisa... Uma injustiça, é o que é.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

E de energúmeno

Um telefonema pela hora de jantar. Muito conveniente. Do outro lado uma voz feminina anunciava que o meu pai tinha assinado um cupão, imagine-se, e que, pasme-se, tinha sido premiado com uma viagem. Boa! Uma viagem! Que surpresas boas a vida nos reserva… Dezembro de 2006 era a data anunciada da assinatura do meu pai. Muito bem. A minha mãe questionou irónica E tem a certeza que é essa a data? Positivo, sem mais hesitações, Com a assinatura do meu marido? Com certeza e, de seguida, o nome do meu pai tal como constara na lista telefónica. Curioso. A minha mãe informou assertiva que, visto o meu pai ter morrido –detesto o eufemismo falecer – a assinatura seria - como dizer?- impossível. Do outro lado, a voz não se deu por vencida, pediu um segundo e quando regressou tinha outra informação, afinal o meu pai tinha assinado o cupão em Dezembro de 2005 e aqui toca a sineta dos concursos quando se dá a resposta errada, nada feito, tentem outra vez, vão recuando no tempo ano a ano, quem sabe não acertarão. A minha mãe acrescentou que tal seria impossível mais uma vez e isto não porque o meu pai não soubesse assinar o nome mas porque o meu querido pai nos deixara em Setembro de 2005, ter-lhes-á aplicado um ou outro adjectivo qualificativo do trabalho que desempenhavam, entretanto. Lamentam e tal, mas não quereria o prémio? E agora aqui estou com o dicionário de sinónimos na mão, que num mundo tão virtuoso e civilizado chamar nomes a alguém é uma falta grave e feia, mesmo quando se utilizam técnicas de vendas ofensivas, aviltantes, imperdoáveis e desprovidas de qualquer sensibilidade e respeito, quando ao se ouvir uma voz menos jovem do outro lado da linha se insiste que o marido assinou um cupão de viagem três meses depois de morto, portanto procuro em e de energúmeno mas nenhum dos sinónimos encontrados consegue exprimir com a expressividade devida a atitude descrita.

terça-feira, 11 de setembro de 2007

E o regresso

E o corpo espartilhado pela obrigação do regresso, o corpo que permanece lânguido e preguiçoso, desobediente mediante a roupa menos informal, os sapatos que apertam até a alma e melhor que nunca a frase que ecoa Sapato não, seu Nacib, sapato não.