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segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

A doce arte de procrastinar


Sou uma procrastinadora mediana e mediana porque só procrastino até ao ponto em que não o posso mais fazer e entre mortos e vivos, pedaços de vontades espalhadas pelo sol da tarde e ímpetos vários de coisas diversas, arregaço as mangas e faço o que devo fazer. Hoje já queimei o meu passado na lareira, por exemplo, cartas e cartas de um amor antigo que acabou por nunca ser e que nem sabia mais existir, cheio de contenção e meias palavras que se estenderam por longas cartas ainda escritas à mão. A seguir lavei a cabeça e pus o coração a arejar do cheiro ao passado. E depois descansei entre vários passeios virtuais. Queimar o passado cansa. Bebi um café longo e aromático, espreitei a tarde lá fora e as réstias de sol que espreguiçam oblíquas sobre a relva. Agora vou ver testes enquanto a gata se despede deste Janeiro ameno em sonos longos e tranquilos, um olho que me espreita a espaços. Já vou. É agora que vou. Sim. Só mais um bocadinho então. O telefone toca.

domingo, 29 de janeiro de 2012

O triunfo da teimosia


Não sou por natureza muito teimosa. Se alguém me mostrar que tem razão, se eu própria vir que o caminho apontado é plausível, lógico e melhor do que aquele que eu tinha primeiro escolhido, cedo rapidamente. Na verdade nem se trata de uma cedência, trata-se apenas de reconhecer uma evidência. Continuo feliz na mesma, sem beliscadela no ego e sigo em frente. Desta vez não fiquei convencida com a minha receita para o Dorie às Sextas e resolvi insistir e fazer aquilo que faço melhor na cozinha e que de resto já tinha pensado anteriormente: inventar. E teimar. Hão-de sair-me bem. Vão sair bem. E hoje é Domingo, dia calmo e de sol, e de Janeiro já só vejo umas sombras, dia bom, portanto, dia óptimo para pôr em prática a minha primeira intenção e arriscar. E deito mãos à massa, com o sol a entrar-me na cozinha e a preguiça espalhada pela sala. Se ficaram bons? Deliciosos, modéstia à parte. Muito melhores do que a versão doce. Com azeitonas devem ficar muito bem também e até já me passou pela cabeça fazê-los com atum e orégãos. São ideais como entrada e alternativa aos já gastos rissóis e croquetes. Valeu a pena teimar. Desta vez valeu a pena. Espero não lhe ter apanhado o gosto.



Receita:
1 ½ chávena de farinha de trigo
½ chávena de farinha de milho
2 colheres de chá generosas de fermento
¼ de colher de chá de bicarbonato de sódio
Sal refinado
1 chávena mal cheia de buttermilk
5 colheres de sopa de azeite
1 ovo
130 g de bacon
Pimenta preta moída na hora
Orégãos

Preparação
Exactamente como aqui. No fim acrescentar os pedacinhos de bacon e os orégãos. A pimenta preta foi adicionada nos ingredientes sólidos aquando do sal e fui generosa.

De vez em quando o passado (4)


sábado, 28 de janeiro de 2012

João

Hoje. Não pela muito fresca mas depois de o corpo ter descansado o suficiente e a alma estar mais enxuta para aproveitar o fim-de-semana enquanto não nos tiram também esse prazer, já que de direitos estamos conversados, encetei essa tarefa hercúlea de fada do lar empedernida e providenciar para o lar e suprir as faltas. Rumo ao supermercado, encontro-me com um povo façanhudo e mal disposto, nem um sorriso, as almas vazias e os passos automatizados. Os supermercados podem ser locais muito deprimentes, tanto mais deprimentes quanto mais casais às compras. Há alturas em que a solidão pesa menos e a solidão a dois pesa sempre mais. Infinitamente mais. Na fruta ouço alguém chamar João, anda cá. Vejo aproximar-se uma criança sozinha, entre os três e quatro anos. Põe-se à minha frente com uma alface dentro do saco. A mãe repreende-o e fala-lhe como se tivesse vinte anos, de tom seco e indiferente. Essa senhora estava à tua frente. Tens de esperar. Sorrio-lhe e digo Deixe estar. Não faz mal, enquanto o João do alto dos seus quatro anos mal medidos se estica num esforço sobre-humano para conseguir que a ponta do saco chegue ao balcão. A mãe assiste, longe, impávida. Que se desenvencilhe. Nem um sorriso, nem uma ajuda à criança. Um iceberg falante. Volto a encontrá-los no peixe. A criança aparece depois de ser chamada mais uma vez, procura conforto na mãe de braços cruzados, hirta e impassível, e tenta enrolar-se-lhe nas pernas. Choraminga Mãe, tou cansado. A mãe continua de braços cruzados. A criança intensifica a súplica de atenção Mãe, colo! A mãe continua de braços firmemente cruzados. A criança não lhes chegará assim. Um alívio portanto. Menos uma preocupação. A criança não desiste Mãe, colo, tou cansado! Começa a chorar. Suplica-lhe Mãe, dói-me as costas. Quando dá uma volta vejo-lhe os olhos marejados de lágrimas e soltam-se em cascata dos olhos escuros, tão escuros agora. A mãe retorque-lhe algo e mantém os braços cruzados como se se defendesse de um fardo de quatro anos que reivindica atenção e que tem a veleidade de se cansar num supermercado num Sábado de manhã. Uma mulher com uma criança ao colo lança-lhe um olhar deprimido, não suficientemente forte para que seja de reprovação, suficientemente maternal para que se lhe subentenda a incompreensão. Tanta indiferença. Quanta frieza. A criança chora sozinha. Ninguém diz nada. A mãe recolhe o peixe. Espeto-lhe um olhar e sei que o sente porque me olha de volta. O João choraminga. O João poderá chorar e suplicar a atenção a que qualquer criança deve ter direito. A mãe, essa, permanece de braços cruzados e olhar glacial. Hirta e gélida. A indiferença mata. Morro de pena do João. Chega de supermercado.

Também no Delito de Opinião.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

É o acordo ortográfico, estúpido!

fotografia cá de casa

De muffins a queques


Nada como fazer planos para saírem todos gorados. Quando esta receita foi proposta no Dorie às sextas, e depois de dar duas ou três voltas à cabeça, decidi que iria fazer a versão salgada. Eliminaria o açúcar, incluiria pedacinhos de bacon em vez do milho e salpicaria com pimenta preta e orégãos. Ora acontece que deixei tudo para esta sexta-feira de manhã, serviriam de entrada ao almoço tranquilo de boas-vindas ao fim-de-semana, mas obrigações profissionais mantiveram-me ocupada sem mais tempo. Sem tempo e calma para estes momentos de evasão de que tanto gosto e preciso.
Excluída esta hipótese e sem vontade para adiamentos decidi fazê-los para o lanche e eliminar a versão salgada. Acabei por fazer afinal uns belos queques para esta tarde tão agradável de Janeiro. De muffins nem rastos mas surgiram-me duas versões de queques: uma simples e outra com canela e müsli. E depois foi pôr a mesa, fazer um chá bem quente e esperar a minha mãe para uma conversa animada de sexta-feira à tarde e o veredicto final. Ficaram bons mas nada de perder a cabeça nem que eu tenha ficado com muita vontade de repetir. Ficam muito bem num lanche com uma chávena de chá e são fáceis de rápidos de fazer.  Cozinhar é muitas vezes um acto de amor e de partilha, a forma de expressão que tanto uso em vez de palavras e também por isso valeram mais uma vez a pena.


Receita

1 chávena de farinha de trigo
1chávena de farinha de milho
2 colheres e meia de chá de fermento em pó
1/4 de colher de chá de bicarbonato de sódio
8 colheres de sopa de açúcar
3 colheres de sopa de óleo
3 colheres de sopa de margarina derretida mas fria
1 ovo grande e uma gema
1 chávena de buttermilk

Preparação

Primeiro preparei o buttermilk. Uma chávena de leite e sumo de um limão pequeno. Esperei um quarto de hora e comecei com o resto. Juntar os ingredientes sólidos numa tigela. Juntar os líquidos e envolver com uma vara de arames. Incorporar nos ingredientes sólidos sem bater e levar ao forno uns quinze minutos em forno aquecido a 190º. Como só tinha oito formas fiz duas fornadas. Na massa que me sobrou juntei uma colher de chá de canela e uma chávena de müsli com frutas.


Actualização aqui. Muito mas muito melhores.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Um queixume por dia nem sabe o bem que lhe fazia (6)

Vinte e três horas e quarenta e sete minutos e o dia de trabalho finalmente pelas costas. Holy crap, diz o Gordon Ramsay ali na televisão. Tenho a certeza que era para mim.

Trinta anos...

de democracia para isto. Além dos subsídios ainda nos rapinam na liberdade. Deve ter sido por isto que nos mandaram emigrar. Este país não tem jeito.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Bora lá ajudar o Aníbal!


Dêem uma moedinha por mim.

A vida dos outros


Ia avisada. Sabia ao que ia. Relembraram-me Hoje vamos ver o filme mas tu já viste. Sim, já tinha visto. Arrumei-me na cadeira, olhei para o relógio e pensei Cento e trinta e sete minutos. É capaz de ser muito. É capaz de ser de mais para uma sexta-feira em fim de tarde quando se arrumam as semanas e o corpo se prepara para nada fazer, nada pensar. Como se possível fosse.
O filme é de 2006, ganhou o Óscar do melhor filme estrangeiro e conta a história das vidas sob observação constante, espartilhadas por um regime que tudo sabia e via para proteger uma ideologia. A Gerd Wiesler, um oficial da Stasi, é atribuída a tarefa de vigiar a vida Christa-Maria Sieland e Georg Dreyman, uma actriz e um escritor proeminentes da cena cultural de Berlim. Gerd Wiesler envolve-se nas vidas que observa, ultrapassando largamente o que lhe havia sido atribuído e determina o destino dos dois artistas. Interessante, actual, um testemunho da História mas que ficaria sempre aquém não fosse o desempenho notável de Ulrich Mühe, desaparecido depois do lançamento do filme, e a acuidade de Florian Henckel von Donnersmarck.
Para os fervorosos anti-comunistas o filme constitui a possibilidade de identificação e a revolta esperada. Para os que, como eu não o são, a interpretação excelente e o ambiente tão próprio e tão bem conseguido de se ter a vida sob observação sobrepor-se-á ao resto. O desconforto e o incómodo de nunca estarmos sós, de nunca sermos apenas nós, mutilados e extirpados da liberdade que temos como garantida como se sempre tivesse sido assim. E ainda que o repúdio do regime da RDA seja inevitável, Gerd Wiesler vai crescendo como um homem solitário, de silêncios largos e olhares penetrantes por quem se vai nutrindo simpatia. Provavelmente a grande ironia do filme e não menos importante polémica. Há uns anos em Berlim, um orador numa palestra avisou que não pensássemos, que o filme era ficção, Aquela gente da Stasi não tinha a menor contemplação ou compaixão, disse. Pode ser. Sabemos que sim. Mas HGW era diferente. É isso que o filme nos quer mostrar, um homem só para quem a vida dos outros passou a ser a sua própria vida e só através dessa, uma vida por entreposta pessoa, se acende uma centelha frágil de humanidade e de sentimentos. Ficará para saber se o móbil para a sua actuação teria sido apenas a compaixão pela vida de alguém que ousara  pensar e denunciar, um delito grave em regimes musculados, ou se a sua intervenção representa a insurreição contra o regime e anuncia profeticamente a derrocada da RDA. Não restarão dúvidas quanto à influência que a vida de Ulrich Mühe terá tido na construção de Gerd Wiesler.
Esta foi a terceira ou quarta vez que vi este filme e foi a terceira ou quarta vez que me emocionei. A tragédia de HGW é a tragédia de muitos que se viram de repente sem a sua terra, para o bem e para o mal, sem  referências e sem a vida como sempre a conheceram. Também para o bem e para o mal. E a tragédia da solidão humana. E a irracionalidade de regimes totalitários. É muito. Muito num filme só. Num filme tão intenso que revê-lo é penetrar mais uma vez na história e na alma humana. São estes os filmes que importam. Os que perduram. Os que mesmo passadas três ou quatro vezes continuam a emocionar-nos.  São estes os meus filmes. Deve ser isto, a arte. 


segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Nacos de Prosa (15)

Hoje em dia, comer bem significa comer mal e quanto mais caro, melhor. Você se certifica disso toda vez que se deixa tapear por mais um restaurante que acabou de abrir na sua cidade e que ficou na moda. Depois de sobreviver a um baita engarrafamento para chegar e a 45 minutos de fila de espera no bar do dito, você se vê finalmente sentado diante do prato. Neste, que acabou de sair pelando do microondas, a comida lembra uma delicada instalação minimalista, com um design irresistível e cores dignas de Natalie Kalmus, a dona do Technicolor. É um arranjo tão bonito que dá pena destroçá-lo com garfo e faca e transformá-lo naquela mixórdia a que todos os pratos, de Paul Bocuse ao prato feito, estão condenados depois que você manda brasa. 
Bem, além das cores e do design indisfarçavelmente novo-rico, o que esse prato tem a oferecer em troca do sacrifício? Um bifinho muito do mixuruca ou um insosso peixinho, uma massa quase sempre medíocre ou uma micro-porção de arroz “selvagem” e – aí está o segredo – belas firulas na louça com o molho de cassis e três talinhos de nirá circundando os quase invisíveis ingredientes. Quinze minutos depois, você está raspando sofregamente o fundo com o último pedaço de pão e pensando em pedir uma feijoada para rebater.

Ruy Castro & Heloísa Seixas,"Viagens ao redor do estômago", Terramarear.

domingo, 22 de janeiro de 2012

sábado, 21 de janeiro de 2012

Pessoal e transmissível

A vida corria pacífica na minha escola azul-cueca, tão pacífica quanto é possível numa escola. O povo andava discretamente às turras com a tal de avaliação de professores, aqui e ali irritado com o frio nas salas, lamuriando-se entre as sopas e as lasanhas de hora de almoço pela ausência de subsídios, assunto que por esta altura já atingiu o estatuo de clássico, maldizendo as reuniões, não conheço uma única alma que goste de reuniões, acotovelando-se na miserável sala de professores que nos caiu em sorte como presente da escola intervencionada, até que um dia tudo mudou. Deixámos de ter Direcção, o Director desapareceu, as actas ausentaram-se para não mais voltar, o pobre Janeiro, Fevereiro e Março e restantes meses foram despromovidos, os contactos e acções de formação já eram e até os Directores de Turma sentiam que lhes faltava algo. Uma insignificância, mas faltava alguma coisa muitas vezes abordada nas conversas de circunstância, entre as justificações de faltas e o atendimento dos encarregados de educação Parece-me que me falta alguma coisa. Estou com esta sensação mas não sei muito bem o que é e a resposta Acontece-me o mesmo, até já fui procurar à carteira. Vê melhor nos bolsos, pode ser que lá esteja. 
Não se pense contudo que houve festas e foguetes pelas ausências e que o povo saiu ufano em manifestações de júbilo. Uma vida sem actas pode ser o sétimo céu para muitos de nós, tenho a certeza de que certos Directores não farão muita falta, os contactos são cada vez mais dispensáveis nos dias que correm, o e-mail é o melhor amigo do homem contemporâneo e acções de formação são agora apenas para quem as pode pagar. Para muito poucos portanto. Acontece como se vê que foram todos substiuídos: o Director pelo diretor, a Direcção pela direção, as actas pelas atas, ou desatas, as Acções pelas ações, os pobrezinhos de Janeiro, Fevereiro e Março por janeiro, fevereiro e março e os contactos pelos contatos. Neste fervor acordoortografês houve até uma Acção de Formação e o povo obedece temente às ordens do  grande e único Ministério da Educação.
Acontece também que não é só na cozinha que sou uma transgressora. Podemos explicá-lo pelos astros, os Gémeos gostam de liberdade e não suportam imposições sem que elas sejam devidamente consubstanciadas e justificadas, ou então não e a frase anterior justificará apenas a natureza desta vossa escriba. Terá sido por isso que quando um dia destes tive de enviar um e-mail optei convictamente pela escrita que conheço e aquela em que me sinto em casa. Não houve selecionar nem diretores nem janeiro. E agora, o que me vão fazer? Baixam-me a avaliação? De tanto medo já caí da cadeira e pus-me a prozac. Põem-me na rua? Nunca se sabe. Uma coisa eu sei. Enquanto puder, presumo por algum tempo e enquanto me apetecer, escreverei no português que me apetece: o meu. Aquilo não é o meu português.


Também no Delito de Opinião a propósito deste post do João Carvalho.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Schweigen ist gold

Ouviste, ó Cavaco?

Me abona que eu gosto

Atentem no ponto 3 do Despacho (extrato) n.º 774/2012 e digam-me o que é isto: "Nos meses de junho e novembro, para além da mensalidade referida no número anterior, será paga outra mensalidade de € 1.575,00 (mil quinhentos e setenta e cinco euros), a título de abono suplementar." A mim venderam-me que não podiam pagar subsídios porque não havia dinheiro. Esqueceram-se de acrescentar 'para alguns'. Não há dinheiro para alguns. Resta saber quem mais vai ser mais bafejado com os pomposissímos e não menos convenientes 'abonos suplementares' que curiosamente serão pagos nos meses de Junho e Novembro. Qualquer semelhança com os subsídios de férias e de natal é mera coincidência.

Situação entretanto regularizada aqui.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Produção de sacerdotes

«Durante séculos, a majestosa cidade de Braga especializou-se na produção de um produto: padres. Basta percorrer as monumentais ruas da cidade para perceber a importância que a religião e a Igreja Católica têm para a região. São edifícios e mais edifícios (muitos deles de grande dimensão) dedicados à produção e formação de sacerdotes. Hoje em dia, a indústria de produção de sacerdotes bracarenses está em declínio”. (…) Porquê? (…) A grande causa do declínio da Igreja Católica em Portugal é simplesmente a falta de competitividade. A indústria de produção de padres perdeu competitividade, pois os custos de produção de novos sacerdotes são demasiado altos e o preço do sacerdócio é extremamente elevado.»

Álvaro Santos Pereira, O Medo do Insucesso Nacional
Citado por António Cândido de Oliveira, professor da Universidade do Minho, em artigo publicado hoje no "Público".




É certo que a Nossa Senhora de Fátima até já está no Facebook e o mundo avançou muito mas produção de padres? E podemos franchisá-los como os pastéis de nata?


Também aqui

Woof


Pela fresca. Primeiro tempo. Vinte e sete almas entram-me sala dentro. Sacodem a névoa das noites adolescentes cheias de sonhos e pesadelos. Arrastam o corpo e trazem a alma ainda nos braços de Morfeu. Vejo-me neles. Revejo-me há três décadas atrás. O sacrifício, o suplício, o degredo de horas sem fim de Inverno pela manhã. Como os odiava. Como odiava frio e dias cinzentos, a regra neste sítio de onde os dias amenos emigraram e sol e calor eram referências passadas de um lugar ermo e distante. Entram mais. Uns agitados e instala-se o burburinho da arrumação das almas e dos corpos desengonçados. São muitos. Muitos sonhos, muitas vidas que vejo despontar nas afirmações convictas de quem tudo sabe. Vinte e sete. Falta um. Um rosto comprido e moreno num corpo magro aproxima-se com a rapidez habitual. O ar meio aflito Stora, a Mafalda chega mais tarde. Ela pede desculpa mas está atrasada. e a justificação quase a sair antes que a professora vocifere Atrasada? e dê conselhos Têm de se levantar mais cedo, meninos, a ameaça Para a próxima marco falta, a impaciência Estou farta de vos dizer e a constatação Não podem chegar atrasados. Franzo o sobrolho e justificação salta-me para o colo Stora, o cão da Mafalda fugiu. Ela foi à procura. A professora arruma os recados, conselhos e relambórios, por esta altura um bocado puídos de tanto uso, inúteis agora, e pensa Fugiu? Tadinho. A aula começa. Onde andará o malvado?

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Add friend

Usa manto branco, tem ar contristado e bento, não envelhece, tem a mesma cara desde que a conheço, sai duas ou três vezes por ano arrastando multidões, diz-se que é virgem mesmo tendo um filho e está agora ao nosso alcance. Podemos mandar-lhe mensagens, subscrever as actualizações e quem sabe partilhar alguns milagres.  É a Nossa Senhora de Fátima e desceu directamente dos céus para o Facebook. Estamos conversados relativamente a milagres.



terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Olhar de leiga

O mundo insondável do futebol é isso mesmo, insondável. Para quem como eu continua a ver vinte e dois vestidos de cor diferente, é certo, mas ainda assim vinte e dois homens a correr atrás de uma bola, sem grande noção de passes, trivelas e outros truques de magia, o futebol é um mundo hermético. Um universo cheio de subtilezas mau grado a virilidade dos rapazes, prenhe de códigos a serem decifrados e dotado de uma linguagem muito própria. Acresce a tudo isto um código de conduta estranho onde dar uma opinião pode ser punido sem grandes pruridos, atitude que se transferida para uma outra esfera social seria assunto para uma infinidade de posts, acusações, refilanços, vozes que se ergueriam gritando Delito de opinião! No futebol não. É proibido criticar o mister, ou lá como chamam os senhores da bola, os guardiães da rapaziada, os feiticeiros das técnicas e tácticas. Assim sendo quem ousa proferir aquilo que para mim seria um reparo no mundo do futebol é um crime de lesa-mister. Os rapazes calam-se tementes. E depois há as entrelinhas. As 'bocas' que são mandadas para o balneário, esse mundo oculto onde, ao que parece, muito se passa e onde para mim se reúne a rapaziada em trajos menores. 
Mas o que me traz aqui foi fruto da observação directa, pura observação dos misters que se me entram pela casa fora de vez em quando. De norte a sul, os misters são rapazes carrancudos a quem raramente se vislumbra um sorriso. Quer ganhem quer percam tem quase sempre o sobrolho franzido, uma carranca de poucos amigos, um ar de enfado e respondem às perguntas com esgares condoídos. É preciso mostrarem sempre aquelas caras? Estão zangados com o mundo? O futebol dói?

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Superlativos

Sempre me encanitou esta obsessão dos portugueses por bater records. Pais-natais, cachecóis, feijoadas, bolos-rei, paellas, narizes, sardinhadas, a lista é imensa e acredito que infindável. Portugal pode até candidatar-se para os mais peculiares ministros da Economia do mundo. O Pinho e o Álvaro são duas figuras impagáveis e não estivessem à frente do país, um tivesse estado, e ririamos desalmadamente caso fossem figuras dos Monty Python ou do Little Britain. No país do pastel de nata, supeita-se mais um recorde. Diz-se que este governo já fez mais nomeações do que o governo de Sócrates que, como se sabe, megalomania era 'cena que lhe assistia' e muito. E já que apelam tanto à contenção, austeridade, subtraem subsidios e feriados que o povo quer-se temente e disciplinado, não seria do mais elementar bom-senso ser mais contido também neste campo? Um bocadito de vergonha ou pejo? Respeito pelos portugueses? Ou fazem mesmo questão de inscrever o vosso nome do livro dos records? Grata pela atenção.


Actualização: contraditório do Governo a ler aqui.
Também no Delito de Opinião.

A interpretação dos sonhos


Quando comuniquei cá em casa que este ano não iria pensar em viagens o anúncio foi acolhido com entusiasmo Fazes bem. Fazes muito bem! Só faltou darem-me um biscoito e uma festa no lombo Good good girl enquanto me afastava de cauda abanicando no ar. Cumprindo a minha condição de depauperada de ordenado e subsídios houve que estabelecer prioridades e viajar foi liminarmente afastado até ordem em contrário. Mantenho-me afastada de sites de companhias aéreas à procura de uma promoção, esqueço os blogues de viagens e fiz unlike a uma série de páginas no Facebook. Se me chamam, Olha, está a dar uma coisa gira no Travel Channel respondo com um safanão Não quero saber, ponho o meu ar de raposa, sacudo o pêlo e erguendo a cauda, afasto-me, ignorando por completo as uvas. Estão verdes, demasiado verdes. Se me custa? Ó, se me custa. Custa-me sentir-me presa e não viajar não porque não quero mas porque se me foram ao guito. Custa-me este isolamento forçado, este não ter um destino em vista, uma cidade na calha, planos e mais planos na antecipação daqueles dias de inominável evasão. E dói tanto que esta noite sonhei com Liverpool, uma evocação clara da última vez que pus pé fora deste rectângulo luso. Um fim-de-semana prolongado em que deixei Portugal com um calor abrasador e fui encontrar Liverpool com muito mais frio do que já senti este ano por cá. Uma ventania endiabrada que me proibiu de atravessar o Mersey esperava-nos lá onde se fala Scouse e a febre de sábado à noite ainda é regra para o mulherio engalanado. Foi pôr pé na estrada e conhecer a cidade e senti-la, como sempre se faz. Em cada viajante há um animal curioso disposto a cruzar as fronteiras da intimidade da cidade. Quer tudo e ver tudo. E conhecer gente. O Mick e a Margaret, Scousers de gema, bem-dispostos e divertidos. Iam ao Cavern todos os dias nos últimos trinta anos e acompanhados de um pint de ale e de Guinness fomos trocando risadas e palavras, quando se sentaram à nossa mesa ao som dos inevitáveis quatro rapazes de Liverpool. Devo ter-lhes sentido a falta. Aos rapazes, à Eleanor Rigby, ao Strawberry  Fields e ao Penny Lane, ao Mick e à Margaret, ao Mersey, a todas as pints que bebi, ao scouse que comi ao almoço de Sábado e a tudo o que vivi, rua acima rua abaixo na esperança de me apropriar da cidade. Devo ter-lhes sentido muito a falta quando esta noite quase sobrevoei a cidade nas asas de um Liver Bird e a cavalguei no lombo do Superlambanana. Maldito inconsciente. Xô! Xô, bicho malvado!
fotografia minha

sábado, 14 de janeiro de 2012

Intenso e apaixonado


Além da Mariana que me incluiu neste grupo, houve algo que me fez aderir de coração aberto. Lê-se assim nas regras do grupo “As receitas podem sofrer todas as alterações que o cozinheiro quiser. E encoraja-se a partilha dos casos de sucesso e de fracasso.” Cozinhar para mim é quase sempre transgredir, experimentar, e dar um cunho pessoal. Não que tenha em mim o heroísmo presunçoso de que eu vou além dos demais e erguer-me acima deles. Nada disso. Odeio, de resto, gente que profere que vai fazer a diferença seja em que área da vida for. Na minha, por exemplo, quando alguém se autoproclama agente de mudança é razão suficiente para que eu fique de pé atrás, soube-se-me a desconfiança que herdei de há tanto viver na região saloia e algo me retrai. A diferença faz-se, não se anuncia, é um caminho que se trilha e para mim os caminhos servem sempre propósitos de serviço ao próximo não de autopromoção. E isto tudo para dizer que não gosto de mudar para ser diferente, gosto de mudar porque gosto de alguma mudança, na vida também, e nas receitas a mudança é inevitável. Convenço-me que agriolhado a este corpo de mulher madura vive uma adolescente com a mania de contrariar e de transgredir. Na cozinha nota-se muito. Eu noto e eu sei.
A ideia era fazer este bolo de chocolate com ameixas e Armagnac. Armagnac não tinha e ameixas não são muito apreciadas por todos, portanto depois de dar voltas à cabeça e de o bolo ter assumido várias possibilidades como substituir as ameixas por tâmaras aos pedacinhos que era o que tinha cá em casa e em vez do Armagnac usar outra coisa ou pôr nozes e whisky, decidi-me por sabores que gosto muito de combinar: chocolate e laranja.
Levei-o há pouco para um almoço de família e esperei o veredicto. Ficou intenso e apaixonado, exactamente como gosto. Aconselhável a espíritos aventureiros e almas ousadas. O chocolate casa na perfeição com a laranja, a intuição não me falhou. Muito bom e recomenda-se, disseram-me, enquanto o bolo ia diminuído no prato entre risadas e conversa animada. A minha mesa é a minha comunhão. Às vezes acho que se me faltar a voz para declarar amores terei sempre a cozinha. Cada um fala como sabe e nem sempre me ocorrem e acorrem as palavras. Venha a próxima receita.


Bolo de chocolate com whisky e laranja

100g de chocolate culinário +100g de chocolate negro com laranja
150g de açúcar
100g de farinha
120g de manteiga
60ml de whisky
4 ovos

Deixei derreter os chocolates com a manteiga, enquanto fui metendo discretamente o nariz para sentir o aroma da laranja. Seria demasiado forte? Bati as gemas com o açúcar até ficar um creme branco e fofo. Depois há que envolver os chocolates na mistura de ovos e açúcar, com calma e sem pressas. A seguir a farinha e logo após o whisky. Bati então as claras em castelo e envolvi cuidadosamente na massa anterior com uma espátula de slicone. Levar ao forno pré-aquecido a 190º durante vinte e seis minutos.  Para a cobertura derreti 100 gr de chocolate com três colheres de sopa de açúcar e um pedacito de manteiga. Juntei depois meio pacote de natas light e derrubei com enlevo sobre o bolo. Tão fácil a vida numa manhã soalheira de Janeiro.

Querer e poder

Vida de professor é feita de papéis, papelinhos, destacáveis, comprovativos e tudo o que tenha a ver com papeladas, burocracia sem fim. Nos intervalos de tudo isto sou professora e faço aquilo devia fazer e que o tempo em volta dos papéis me rouba. Entro na sala com um lembrete na cabeça, uma campainha que toca para que não me esqueça, não me posso esquecer, e mesmo antes da aula começar digo-lhes, Meninos, preciso dos destacáveis para a reunião com os Encarregados de Educação. Ergue-se uma pletora de respostas. Ai stora, esqueci-me! Trago-lhe amanhã ou Não trouxe o papel mas a minha mãe vem, O meu pai pode vir mesmo sem o papel? A minha mãe não sabe se pode vir. Alguns levantam-se entretanto e entregam-me o rectângulo branco. Recolho a papelada, organizo-me na secretária, ligo o computador e de lá do fundo ergue-se uma voz  Stora, eu já disse à minha mãe e ao meu irmão. E depois a voz descaída como um ramo despencado Mas nenhum quer vir. Arrumou-se ao fundo da sala e manteve-se estranhamente silenciosa. Não que o dia ou a hora fossem inconvenientes. Um qualquer outro dia e hora seriam igualmente maçadores. Substituíra-se querer por poder e talvez o mundo fosse outro. A diferença que um verbo faz.


sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Pontos cardeais

Descobri que era do Sul quando me apaixonei pela luz de Lisboa, luz como não há outra e li nas palavras de José Cardoso Pires um bálsamo para a alma, o conforto para estados de alma sombrios não compatíveis com o fulgor da cidade branca.
Descobri que era do Norte quando me senti bem-vinda sem provas ou provações, apenas a porta escancarada, uma extensão evidente da alma calorosa que só a Norte se deixa sentir.
Descobri que era do Sul quando me arremessaram Vocês lá de Lisboa.Descobri que era do Norte quando a minha mãe me pediu um testo, afirmou que o gato manquejava, usa cruzetas e cozinha em sertãs.
Descobri que era do Sul quando na esplanada da Graça vi a cidade estender-se para o Tejo como um tapete debruado e me senti de Lisboa como de mais lado nenhum.
Descobri que era do Norte quando me faltaram os diospiros e os míscaros envoltos na frontalidade dos falares nortenhos.
Descobri que era do Sul quando me faltaram as filhós à mesa da Consoada.
Descobri que era do Norte quando na mesa da Consoada não havia mousse de chocolate ou troncos de natal comprados na pastelaria da esquina nem bolo de bolacha ou doces de colher presentes em outras ocasiões iguais se Natal, Páscoa, aniversários ou casamentos.
Descobri que era do Sul quando li num guia de viagem sobre Portugal o preconceito escarrapachado em alemão como se de lei se tratasse Braga reza, o Porto trabalha e Lisboa diverte-se.Descobri que era do Norte quando as portas a Sul se me fecharam e os olhares de soslaio se me cravaram nas costas que nem flechas de bisonhice.
Descobri que era do Sul quando chego a Portugal em dia de sol brilhante e vejo Lisboa a meus pés como nenhuma outra e o coração me cutuca na alma Chegámos.Descobri que era do Norte quando senti as portas entreabertas, uma frecha apenas, da qual se vislumbram olhos desconfiados, da alma nem sinal.
Descobri que era do Sul quando as palavras que ouço em surdina me trazem o escritor de volta Logo a abrir apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar.Descobri que era do Norte quando se me solta o vernáculo em momentos de fúria e intempestividade e mais não significa do que o alívio incomensurável da carga pesada dos sentimentos nefastos.
Descobri que era do Sul quando em trânsito no aeroporto de Madrid, encafuada nos autocarros apinhados de turistas, passageiros e viajantes, me esfregaram na cara que sendo de Lisboa não seria de esperar senão em voo directo.
Descobri que era do Norte quando filho da puta surge apenas o praguejar furioso não uma ofensa à progenitora do visado.
Descobri que era do Sul quando me questionaram E vocês, lá em Lisboa, o que é fazem no Natal?Descobri que era do Norte quando me assola a nostalgia da Páscoa, a saudade do Pão-de-Ló com queijo da Serra, os desejos de leite-creme queimado com a pá de ferro fundido aquecido em fogão de lenha, aromas que a memória agarra à alma com a recordação doce dos afectos.
Descobri que era do Sul quando perante a afirmação infantil Olha um abiãoe! pensei Tão pequeno e tão murcão.
Descobri que era do Sul quando descobri que era do Norte quando descobri que era do Sul.



Fui ao baú buscar este texto a propósito da conversa com a Helena nesta caixa de comentários

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O evangelho segundo S. Ramsay

Acho-lhe piada. É louro demais para meu gosto, às vezes demasiado intempestivo, roça a espaços a arrogância, mas acho-lhe piada e gosto dele. Gosto da ginga, do rosto marcado, sim, eu gosto deles a parecerem humanos, da pronúncia, ai aquela pronúncia britânica, e gosto da bipolaridade de reacções. Se tudo estiver bem é rapaz para elogios rasgados mas se tudo estiver mal é capaz das maiores explosões sem eufemismos ou meias-palavras. Nada como nos dizerem sem rodeios que algo está uma caca, que consegues fazer melhor. Dói no orgulho, ó se dói, mas recomposta a almogadela fica-se a pensar se de facto seremos assim como nos julgamos, e este ‘assim’, pode ser muitas coisas, de maior ou menor importância. Neste tom intempestuoso e furibundo, assim à laia do ‘dá-me forte mas passa-me depressa’, ninguém é melhor do que o louríssimo, famosíssimo e furiosíssimo Gordon Ramsay.  Ele grita, esbraceja, cospe, atira pratos ao lixo e ao chão e vocifera umas quantas verdades que ninguém antes ousou proferir. Naturalmente, além de gostar dele, invejo-o e imagino muitas vezes como seria útil aplicar aquelas verbalizações a umas certas pessoas que, imagine-se, são nada mais, nada menos do que os políticos deste país. Ando aqui a pensar que a Passos Coelho ficaria bem um ‘You’re shit! Ou Get the f**k out of here! Para ser sincera não vejo o dia em que ele desapareça para todo o sempre, estou farta daqueles olhos de coelho mal morto, coelho, nem de propósito. Hoje, por exemplo, com as afirmações daquela senhora que queria suspender a democracia por seis meses, só aplicando-lhe um F**kin’ hell! Ou um mais expressivo Oh, f**k off! E depois sobram expressões soltas como 'You donkey!' 'Piss off!' 'Bloody hell!' 'Shit me!' 'F**k me!' As possibilidades são infinitas e oportunidades não faltam infelizmente.  Polvilhe a contento com e sirva sem parcimónia.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Devaneios

Foi hoje. Dois momentos fugazes de felicidade. Dois instantes de um suspiro bem fundo e a sensação de leveza nos pés, no rosto teria aquele sorriso dos tontos. E para nada disto foi necessário nada mais do que o cheiro da madeira a arder quando saí da escola pela noite, o regresso inevitável ao território roubado das infâncias felizes e o sol a bater na cara quando conduzia na direcção do ocaso, com um mar imenso à minha frente e o sol de inverno ameno, a bênção de que precisávamos para aguentar o mundo lá fora. Dois momentos num mesmo dia. Gosto de dias assim.

Epifanias e despencanços

Corria o ano da graça de dois mil e nove, estava um calor verdadeiramente abrasador, talvez o mais escaldante que terei sentido, o Adriático convidava à contemplação e ao mergulho numa das mais belas cidades europeias, quando tive uma revelação, epifania parece-me levemente exagerado neste caso. A revelação assombra-me a espaços. Para minha grande sorte só me assombra mais pela fresca, quando depois do banho observo contristada mais um pedaço de mim para quem a gravidade foi madrasta e votou a uma existência despencada. No meio dos quarenta já não há contemplações, ilusões muito menos, há apenas constatações óbvias do que somos, uns pedaços de carne que parecem escorregar por nós abaixo sem cerimónia e nesta descoberta só me restou um caminho: aceitar.
Quando naquele verão escaldante resolvemos dar uma volta de barco e circundar a ilha em frente de Dubrovnik estava longe de pensar que a imagem me iria perseguir. Bem do lado oposto ao que dá para terra, situa-se uma zona de nudismo. Há mulheres, é verdade, mas havia muito mais homens, homens acompanhados de homens, de rabos ao léu escuros como o resto do corpo, sem marca de coisa nenhuma, um corpo dourado uniforme sem riscas nem interrupções, e havia homens de todas as idades, novos, menos novos e alguns mais velhos. Ora os novos e os menos novos não me trouxeram nada de novo. Nada que nunca tivesse visto antes. Uns mais enxutos do que outros eram homens como sempre os houvera visto. O mesmo já não posso dizer dos velhos, já que uma vez de rabos virados para as rochas e de barriga virada para o Adriático ostentavam no zénite aquilo que eu só ousara ver em versão jovem e menos jovem e portanto não naquele estado de ressequimento e despencanço. Deuses meus que repousam lá no Olimpo!  E esta é a parte em que podia estabelecer comparações, explicar-vos o que me pareceram aqueles pedaços de carne ao delãodão mas em que me votarei ao silêncio que este é um blogue decente. Nesse dia invejei os homens. A parte que mais evidencia a passagem de Cronos passa os dias encafuada em roupa, escondida e protegida de comentários menos próprios sobre o envelhecimento tão óbvio, tão ressequido, tão mirradinho, valham-me Júpiter e Zeus. Uns sortudos, portanto. Os homens podem até ser velhos mas serão grisalhos e sexys até se exporem com tudo ao léu, tudinho como vieram ao mundo. E é essa inveja miudinha que me ataca sempre que passo creme nos meus tríceps e lamento a triste sorte de um dia escrever no quadro e provocar uma corrente de ar com as peles descaídas ou de levantar voo como a Mary Poppins. Não há como esconder a velhice e não posso andar de mangas compridas o ano inteiro. O pior é que o envelhecimento não é nada comparado com isto. Diz-se agora que a partir dos quarenta e cinco  as capacidades cognitivas começam a ficar eufemisticamente menos apuradas, ou seja, ficamos mais burros. Assim mesmo, sem rodeios. Afinal prefiro as carnes caídas. Sem o viço e sem a inteligência não há quem nos possa valer. É de mais para uma mulher só. Não podia ser apenas um?

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Três malas de cartão numa terra de França

Já não nos chegava viajar em turística ainda temos de carregar com as malas?


fotografia roubada indecentemente no Facebook

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Viajar entre línguas

Dizer que nada há de mais trágico do que não ter com quem partilhar um livro é uma hipérbole e uma quase heresia. Há coisas trágicas muito mais trágicas e poupo-vos a enumerações lamechas mas para quem gosta de ler é tragédia suficiente ler um livro, rir, sorrir, vibrar para depois rir consigo, vibrar consigo próprio, agarrar o livro e fazer-lhe longas e pungentes declarações de amor pela ausência de um caminhante que a seu e a meu lado cavalgue as mesmas linhas e trote de vírgulas ao vento pelos nacos de prosa. Talvez seja essa mais uma forma de solidão e de exclusão, portas trancadas a novos mundos que não se deixam revelar. Não sendo possível todos saberem todas as línguas do mundo, há quem se ocupe dessa função alquímica de unir as duas margens do rio e garimpar línguas e mundos para que sejam inteligíveis aos demais. Dou, por isso, os Parabéns à Helena que, além de viver na minha cidade preferida da Europa, é uma das magas que transforma as línguas e me deu a honra de comemorar o fim da tradução do Wladimir Kaminer com este meu texto. Mal posso esperar que o livro me sorria das estantes. Vai contribuir para que eu seja menos só e menos sós somos quase sempre mais felizes. Neste caso sou. Somos.

No escurinho do cinema


Na aula de Alemão só entram filmes em alemão. Quando os meus alunos resmungam e refilam atiro-lhes que chega de americanadas, como se entre o cinema americano e o cinema alemão nada mais houvesse e tudo o resto fosse um enorme deserto, um cemitério abandonado lá onde repousam fitas velhas e cenários abandonados. Depois de um breve refilanço, mais para afirmar a voz adolescente do que para asseverar uma vontade genuína, entram filme adentro e lá vão caminhando lado a lado com a professora por um trilho de línguas e mundo desconhecidos. Secretamente observo as expressões e deixo-os comentar dentro dos limites. Às vezes lançam-me um olhar, à procura da segurança e da certeza de que vai correr tudo bem e os maus serão castigados e os bons serão recompensados. Da última vez, perante a surpresa das cenas finais do filme, viraram-se para trás e gritaram-me revoltados O velho denunciou-os, stora? Calma, atirei-lhes, eu sou só a vossa professora. Assumo tudo, menos pôr o velho a denunciá-los. Onde já se viu? Acresce dizer que o 'velho' é um milionário no início dos quarenta, a carcaça. Outras vezes dizem coisas cómicas Stora, as raparigas são bué da simples. E isto porque até à data só apareceram raparigas de roupa interior simples, nada de rendas e cetins naturalmente que a minha aula de alemão é séria e limpinha, mas para eles aquele pequeno instante da tela brilhante à sua frente é a Alemanha e a Alemanha são raparigas de cuecas brancas de algodão e camisolas pueris. E depois a paisagem Aquilo é bue da lindo, stora! Mas o pior aconteceu mesmo no fim do filme quando me começam a cantarolar Halleluiah. Ora se há cantor de que não gosto é o Leonard Cohen. Já sei que vou contra a corrente mas aquela languidez irrita-me, soa-me a um longo Inverno de frio e nevoeiro onde não se passa nada e eu odeio Inverno e que não se passe nada. Perguntei-lhes incrédula Mas vocês conhecem isto? Não podiam ser mais afirmativos Sim, stora, é bue da lindo, mas este é o Jeff Buckley e vá de cantarolar Hallelujah, Hallelujah. Hallelujah, Hallelujah. Que achem que a Alemanha é uma rapariga de cuecas de algodão ainda vá, que gostem do Leonard Cohen é de mais para este coração sensível. O pior é que quase me fizeram gostar do Hallelujah.  Mais dez minutos e tinham-me convertido. Anda uma pessoa a criar alunos para isto.

sábado, 7 de janeiro de 2012

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Incubadora de palavras


Às vezes ponho os textos em pousio, enrolados em panos para que levedem, guardados em papel de alumínio para que não pereçam, aconchegados para que medrem, saudáveis e fortes, envolvidos na doce esperança de um dia ser. Lá nesse viveiro de textos pousam muitas palavras e dormem pedaços de prosa começada aos sabor dos sabores, indisciplinados e caprichosos. Nesse recôndito lugar há textos que dormem. E depois há pedaços desconjuntados, ideias soltas, um parágrafo, dois períodos, um fim ou um início ou apenas palavras juntas como peças de puzzle.  Lá onde ouso ir de vez em quando vivem pedaços de mim à espera. 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Saudades do futuro


Hoje pela hora de saída em dia de sol de inverno que me tem salvado da neura habitual de Janeiro fomos trocando palavras e lamentando a triste condição de passar tempos infindos à volta de papéis e de desmiolanços vários que atendem por pomposíssimas siglas que uma vez decifradas se resumem a nada e que não se resumindo a coisa nenhuma podiam ter a humildade de desaparecer das tristes vidas de quem tenta fazer mais do que restringir-se a estas atoardas balofas. Ele há o PCT, o PEE, o PAA, o PIT. Nenhum deles serve para coisa nenhuma senão para consumir tempo e energia e claro fazer sobressair quem gosta de sobressair e quem usa estas siglas para mostrar o que é ou o que não é, uma espécie de extensão de si mesmo, uma atrelado de atributos estéreis bordejando a vacuidade desses seres balofos. Eu disse Aquilo que eu mais queria  era que me deixassem em paz, sem relatórios, propostas, avaliação da actividades. Estou farta. Farta. Repetimo-nos e ecoámos como sussurro de nós mesmas entre o chilrear esfomeado da saída da manhã. E por instantes tive saudades desse tempo em que se vivia uma existência tranquila sem relatórios dos relatórios, avaliações, reflexões críticas, propostas, PCTs, PEEs, PAAs, PITS e outras parvoíces. Foi rápido passou-me ao segundo Adeus, Francisco, bom almoço! e ao terceiro Até amanhã. Portem-se bem! e regressou agora apenas para que se faça texto. Eu não quero o passado, mas o presente cansa-me. Alguém me passa o futuro, se faz favor? 

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Pergunta do dia ou ao povo português com a Troika e o Coelho à perna

Hoje, logo pela fresca, numa sala que me ia congelando a alma, quanto mais as pernas, depois de um abracinho, Stora, deixe-me dar-lhe um xi de ano novo, sorrisos esperançados, votos de bom ano, um filme acabado de ver e um texto para decifrar à frente, eis que surge Stora, o que é retrair?

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Setenta e cinco anos de puro samba


Estão a ver aquela sensação de agonia, intranquilidade, desespero quando os filhos começam a reivindicar um direito consagrado nas vidas adolescentes e encetam uma luta sem tréguas para sair à noite ou para a noite? As cogitações inquietas e apocalípticas Onde andará? E se lhe acontece alguma coisa? potenciadas ao infinito caso a criatura fresca, cheia de tanta vitalidade quantas certezas da vida se atrase. Ai meu Deus! E se está aí numa valeta abandonado? E se bebeu ao ponto de se desconhecer a si próprio? Que aflição. Caramba. Pois. Nada disso me assiste, já que sou mulher sem crias, muitas vezes enfadada até ao vómito com as crónicas babadas de mães verdadeiramente encantadas, primeiro com o parto, há lá coisa mais linda de se relatar?, depois com os cocós e regurgitamentos dos leitõezinhos rosados que se lhes brotaram. Compreende-se o encanto, qual pigmalião,  pelo torrãozinho de carne, se assim não fosse algo estaria fundido nesse complexo sistema de que as mães são feitas, uma válvula, por lá, como acontecia com a televisão do meu pai à qual o sr. Machado acorria diligente, mas poupem-me a cocós de texturas e cores variadas, vómitos, assaduras, bolsaduras, raio de palavra, e outras coisas absolutamente dispensáveis na vida do comum dos mortais.
Não se pense contudo que sou mulher desprovida de preocupações. Ser filha desta mãe deixa-me também com cogitações várias e inquietações não menos variadas. A conversa começou algures com um convite que lhe fizeram e cuja aceitação lhe foi prontamente encorajada Mas tu queres ir? Vai, mamã! Aproveita! Diverte-te! A seguir veio o telefonema Olha, afinal vou! E depois a partida. Levo-a e vejo-a radiosa. Olha para ti, que linda! Responde-me com a gargalhada bem característica e espreito-a com dificuldade pelos vidros escuros da viatura que a leva, lentamente em movimento.  Diz-me adeus do lado de lá. Telefonou-me há pouco. Diz que não sabe muito bem quando vem. Quando der conta estamos na Páscoa e ainda sem me confirmar regresso.  Já a avisei para não aceitar nada de estranhos e estar sempre alerta, mas a minha mãe é alma tranquila que nunca vê mal nos outros. Sabe-se lá que perigos e tormentas terá ainda de enfrentar para regressar sã e salva. Esperemos pois. Ser filha de uma mãe rebelde tem muito que se lhe diga, ó se tem.

Ano Novo

Então 2012 é isto?