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domingo, 9 de setembro de 2007

O coxo e o cego

Na aldeia há um cego. Na aldeia há um coxo. Na aldeia há um cego e um coxo. O cego vê melhor que muitos que não o são. Diz-se que o cego é um rapaz bem informado. O cego anda quilómetros todos os dias. Vestido com um colete fluorescente, faça sol ou faça chuva, o cego percorre a aldeia, rua acima, rua abaixo. Em tempo de chuva, o cego traz o chapéu-de-chuva pendurado na gola do casaco, como um pêndulo, para um lado, para o outro, rua acima, rua abaixo. O cego, de vez em quando, dá umas bengaladas nos carros que estão estacionados à frente da tabacaria, à esquerda, à direita.
O coxo não é manco, é coxo. Coxeia para um lado e para o outro com uma flexão ao centro. O coxo não coxeia para cima e para baixo como outros coxos. O coxo não coxeia com igual intensidade, faça chuva ou faça sol, para esquerda ou para direita com uma ligeira flexão ao centro. O coxo é mais novo que o cego, mas algo me diz que, nos dias em o coxo coxeia mais, vê menos que o cego que aquilo é um coxear etilicamente impulsionado. Nesses dias o coxo coxeia muito e coxeia para um lado e para o outro, para cima e para baixo, às vezes cuida-se que se vai estatelar no chão, mas equilibra-se, ergue-se mais um pouco e depois mais uma desequilibradela, à esquerda ou à direita. Mas isto é mais nos dias em que o coxo vê menos do que o cego.
O cego e o coxo têm vidas tranquilas, mais o cego que o coxo, é certo, mas que julguei periclitantes quando apareceram um dum lado e outro do outro lado da rua onde mal cabe um carro. O coxo para a esquerda e para a direita, o cego às bengaladas para a esquerda e para a direita, e o coxo para cá e para lá num equilíbrio instável na berma da rua sem passeios, e eu que deslizava cuidadosamente entre o coxo para a esquerda e para a direita, para cima e para baixo, e o cego, bengalada cá, bengalada lá, pensei por momentos que lá se iam, ou o coxo ou o cego, ou o coxo ou o cego, ou o coxo ou o cego, o cego ou o coxo? O coxo ou o cego? O coxo? O cego? O coxo! Ai, que é o cego e isto até chegar ao cruzamento e ver o coxo para a esquerda e para direita e o cego, bengalada aqui, bengalada ali, pelo espelho retrovisor e a rua a estreitar-se cada vez mais e a desaparecer à medida que me afastava. E ainda há quem diga que a vida na aldeia é aborrecida.

sábado, 8 de setembro de 2007

Pagina 161 - parte II

E respondendo a este desafio aqui vai:

* o livro mais próximo, este mesmo que tenho aqui ao meu lado, acabou de chegar de Inglaterra pelo carinho da Joana e é Magic Seeds de V. S. Naipaul.

* na 5ª linha, da página 161, lê-se:
The cell was quite big, thirty feet by ten or twelve feet, and for some prisoners it was bigger than anything they had known outside.

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Lembranças

A mala prenha e rotunda das roupas desalinhadas anunciando o fim de férias evidente, o aroma a mar mesclado com o cheiro do protector solar que se desprende como uma evocação dos dias passados ainda bem presentes, a areia no fundo da mala, areia que se desprende da sola dos chinelos coloridos, um saco de plástico com logótipos desconhecidos, um folheto perdido anunciando excursões de turista prometendo o paraíso ali e agora, e a certeza de que o que se traz é o que perdurará na memória, mais vívido que qualquer fotografia, mais representativo do que qualquer souvenir, e o que se traz, quando se viaja, são sempre os rostos e sorrisos, são as cores, os aromas, os sons revestidos em palavras trocadas nem sempre compreensíveis de um falar inconsequente sem a obrigação da reciprocidade. O que se traz é o que se viveu e a memória de como se viveu.

Postal ilustrado

Negril, Jamaica
foto: minha

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

Como um ponto final

For any true stickler, you see, the sight of the plural word “Book’s” in it will trigger a ghastly private emotional process similar to the stages of bereavement, though greatly accelerated. First there is shock. Within seconds, shock gives way to disbelief, disbelief to pain, and pain to anger. Finally (and this is where the analogy breaks down) anger gives way to a righteous urge to perpetrate an act of criminal damage with the aid of a permanent marker.

Lynne Truss, Eats, Shoots and Leaves.



Estávamos à mesa, pela hora de jantar, o anfitrião visivelmente cansado, também de nos ter à conversa, quando ela perguntou Então, diga-me, o s do caso possessivo já não se usa? O homem respondeu que sim, que se usava, ela insistiu, Então, é um erro, certo? Sim. A outra colega acrescentou que já em Portugal tinha dado conta do mesmo. A primeira não deu sinal de brandura nem de abrandamento. Preciso de saber, afirmou peremptória, se não estou a ensinar mal os meus alunos. Parecia alarmada, o anfitrião exausto e a conversa que, de repente, se transformava num debate aceso em torno da língua de Shakespeare, impacientava o nosso anfitrião, mais dado a artes culinárias e à informática. Valeu-lhe a fleuma britânica, certamente, e a deferência que se deve observar quando se tem convidados em casa. O homem levantou-se da mesa, entretanto, e, quando regressou, trazia na mão um livro Eats, shoots and leaves.E neste livro encontrei o que durante anos vivi: as questões da língua, a irritação com os erros, a vontade impetuosa de os corrigir, de entrar nos estabelecimentos e avisar que ali está um erro, coisa feia, um erro, e é de tudo isto que queria dar-te conta, meu pai. Chegar a casa e dizer-te Papá, trouxe um livro muito engraçado de Inglaterra e de te ver sorrindo Sobre quê, filha? Sobre pontuação e depois contar-te a anedota que vem na contra-capa e contar-te a versão que o Vince contou e ver-te o sorriso de sempre, e ouvir-te pausado a pedires-me Ora, mostra cá… e eu a dar-te o livro, os nossos dedos tocando-se levemente, tu a manuseá-lo como ninguém nunca o faz, o cuidado das páginas, a ternura do toque, e eu a pedir-to de novo, Dá cá, está aqui uma passagem muito engraçada , procurar a página e ler-ta. Isto lembra-te alguém? E tu de novo Não estou a ver, filhota… de sorriso malandro. E a conversa fluiria, ler-te-ia outra passagem, aquela em que a pontuação é considerada uma cortesia do escritor para com o leitor, por exemplo, responder-me-ias Vês, como eu tenho razão? estou certa de que me perguntarias Mas como é que descobriste esse livro?, contar-me-ias que ouviste alguém dar um erro hediondo na televisão, certamente dir-me-ias irónico Como aquela que escreveu a priori com um acento na tese de Mestrado, eu, pois claro, Papá e assim continuaríamos até eu dizer Bem, agora, vou-me, deixo-te aqui o livro. E tu Está bem, deixa aí para eu ver, agora não, logo, como sempre fazias, sempre logo. E essa é uma falta grande que me fazes, essa de não te poder contar como foi, esta de não te passar um livro, de ter comigo sempre o lápis que te ofereci e com o qual assinalavas os erros no rótulo da garrafa de azeite, de não poder discutir hifenização, apóstrofes, vírgulas e itálicos e esta é uma falta que tenho em mim sempre tão definitiva como um ponto final.


Ao meu pai, no dia em que dois anos passam.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

Hoje

Mi a go lef tiday.

E a memória

E a memória, esta mesma que me empurra para o presente, a mesma que me ajuda a reviver episódios tão remotos como a procissão dos farricocos em Braga, três anos teria então, ou a ida do homem à lua. A memória através da qual escrevo, a mão que desenha as letras encaminhadas pela reminiscência do que foi. E é essa mesma memória que hoje me cutuca no ombro e me faz reviver o momento último em que vi o meu pai, atraiçoado pela doença, refém de um corpo que o traiu, prisioneiro da vida naquela cama de hospital. Dois anos. Dois anos passam e a memória, tu ali, o teu olhar em mim e eu impotente e traidora de ti que não te pude libertar, e eu com o corpo tolhido pela dor sem nome, sem palavras, sem explicação, metáforas que me valham, caso defini-la fosse possível. Dois anos e eu a sair por aquela porta. Dois anos e nunca mais te ver.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Statements of art

Quando Marcel Duchamp se lembrou de usar um urinol e transformá-lo em obra de arte, o mundo reagiu estarrecido e dividiu-se entre ofendidos e seguidores, ultrajados e admiradores, injuriados e idólatras e assim se foi prosseguindo por esse mundo fora. Joseph Beuys também era um rapaz dado a metamorfose dos objectos do quotidiano em obras de arte e Warhol é o exemplo acabado do que pode acontecer a um mera lata de sopa, que lá andava tranquila na sua vidinha. Nada contra. Mas o que me encanita, enfurece e revolta é a quantidade de artistas anónimos que povoam este Portugal de lés a lés e, porque não têm nomes nem amigos, estão votados ao abandono, esquecimento e anonimato, quiçá, morrerão numa valeta entre o betão e a brita. Aqui à porta, por exemplo, assisto a estas manifestações artísticas amiúde.
Tudo começou quando bem à porta de casa me foi plantada uma betoneira em adiantado estado de decomposição, pobrezita, uns buracos aqui e ali, as marcas do cimento e da massa, testemunho indelével das horas infindas de laboração. Nessa altura era fácil indicar aos amigos e visitantes a casa de onde vos teclo estes episódios da vida quotidiana, ao entrarem na rua, a casa é que tem à frente uma betoneira. Assim foi durante uns meses. Depois veio cá o engenheiro, como se sabe os engenheiros não são dados à arte, e ao olhar para o objecto vetusto estrategicamente colocado à porta de casa, viu uma betoneira a cair de velha. Sacou do telemóvel, contactou o autor e, sem qualquer sensibilidade, ordenou a retirada imediata do statement of art. Derramei uma lágrima por trás dos cortinados, enquanto a betoneira era arrastada e afastada para sempre. Tinha ganho afecto ao objecto que de intruso passara a ser decorativo e jamais voltaria a fazer tão boa figura perante os convidados familiarizados com estes meandros e princípios da criação artística.
A partir de então passei a ter de indicar a minha casa pelo número da porta, como o mais comum dos cidadãos, o que neste momento deixou de ter validade, porque agora tenho plantado no jardim um carrinho de mão caduco. Está encostado ao muro, é certo, mais discreto do que a betoneira, mas também tem o seu charme e sempre quebra a monotonia, mas essa, já havia sido quebrada com a cobertura do cerâmico do terraço quando lhe foi sobreposta uma camada espessa de uma gosma elástica, aplicada como o dripping de Pollock mas de uma cor só. E isto é que encanita: tanto artista neste país e porque são apenas Zés ou Maneis pagarão o resto da vida pela sua falta de berço, enquanto semeiam arte nos lares lusos. Não há justiça neste mundo.


imagem: minha

Também aqui

domingo, 26 de agosto de 2007

Mistérios

E estive lado a lado com o deslindar do mistério. Tinha barriga seca e respingou quando a conversa caiu nessa estrela da música portuguesa que atende pelo nome de Tony Carreira. Falava-se do cartaz das festas populares, alguém terá dito em tom jocoso que Tony Carreira iria estar já nem sei onde, respondi que já me bastara o pequeno Saúl à porta de casa e senti o olhar incisivo e cortante aqui no bicep esquerdo Ai mas não é a mesma coisa. Claramente no território do inimigo. Para mim era a mesma coisa, mas respeitava o gosto de cada um, esclareci – que lindinha e correcta – e adiantei que não entendia por que raio o homem tem aquele sucesso. Seguiu-se uma torrente de razões, que era simpático, atencioso, tinha bom aspecto, blergh, respeitava as fãs, era capaz de estar com elas três horas depois dos espectáculos, - mas quem é que quer estar três horas com aquele homem?- que era um bom comunicador, e, pronto, falava daquelas coisas com as mulheres se identificam. Coisas com que as mulheres se identificam? Serei homem? Tanto amor e lamechice, tanto caso mal resolvido, tanta mágoa a recozer-se no caldo dos amores ressentidos nem me parece saudável. Pois, pois, mas pronto não entendo como é que o mulherio faz quilómetros e quilómetros atrás do verdadeiro artista, insisti. Porque ele fala ao coração, disseram-me, é normal. Normal? Normal desatar-se, desabrir-se por esse país fora e até além fronteiras atrás de um cantor? Normal? Pois. Ora ainda se o senhor tivesse a cor dos trópicos e a ginga do José Eduardo Agualusa, a elegância, cortesia e olhar penetrante de Mia Couto, o sorriso luminoso e infantil de José Luís Peixoto, a rebeldia de Mick Jagger, fosse crescidinho como o Reynaldo Gianecchini, mesmo com aqueles pés tão feios, ou tivesse o torso do Cristiano Ronaldo até compreendia, compreendia bem, compreendia muito bem.



Com uma beijoca à menina das estrelinhas ;-)

In midst of knowledge

Museu Britânico, Londres.
foto: minha

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Cobranças difíceis

A mercearia nunca mais foi a mesma desde que a irmã da dona abandonou o mister. Seria a úrsula? Diz-me a irmã, a dona da mercearia, que eram os nervos. Um problema. Disse-lhe que sim, que os nervos são um problema mas que a tinha visto aflita da coluna e assim foi há uns tempos. A mulher insistiu As costas e a cluna era tudo por causa dos nerbos. Pois, pois, parecia-me uma pessoa ansiosa. Bocê, sabe lá… é teimosa a nha irmã. Eu queria levá-la ao massagista, aquilo era três dias e tava boa, mas ela quis ir ao preto de Alcainça… O preto de Alcainça? Sim, o massagista. Ah… Assim foi mais tempo. Ah pois. Mas onte já a bi no balhe, a balhar. Já tá boa! Felizmente. A diferença que faz o preto da Alcainça!
E dado este estado de coisas, a irmã que agora faz uns biscates aí nas casas de umas senhoras por causa dos nerbos na mercearia, a mãe a fazer um pãozinho delicioso e a outra filha num cafei, a dona outro remédio não teve se não pôr lá a filha mais nova, uma garota adolescente, robusta, com as protuberâncias abdominais a saírem-se-lhe pelas calças rebaixadas e para quem, ao contrário do mulherio administrador do estabelecimento, o cliente não é rei. À hora da novela o cliente é até um rapaz intrometido e inconveniente que não a deixa ver calmamente a saga infindoura no canto oposto à caixa resistadora no cocuruto duma estante.
A rapariga tem uma coisa boa no dizer da mãe, tem força, Mais força ca outra confessou-me um dia, e por força, entenda-se a impetuosidade de um panzer que irrompe entre os vegetais e a arca frigorífica, as sacas de cebola, as courgettes e a arca dos iogurtes sempre que necessário. Talvez por isto, uma ocasião, a estante onde se apoiou para chegar ao topo dum armário, certamente para satisfazer os desejos caprichosos de algum cliente, tenha cedido e os fregueses, eu incluída, brindados com uma chuva torrencial de chocolates Regina, Sugus de menta e melão, Conguitos e chupas. A rapariga na se ralou. Enquanto a freguesia ajuntava os chocolates do chão, nem um agradecimento, e a estante olhando-nos ameaçadora, ainda periclitante com uma das esquinas levemente enviesada a indiciar o resvale iminente. Nada a recear. Com esta cabeleira sempre amortecia as sombrinhas de chocolate que tinham resistido ao tombo.
O pesadelo voltou quando lhe pedi duas latas de feijão preto, que por azar me olhavam altaneiras doutra estante. Aí não haveria cabeleira que me salvasse mas, por esta altura, a rapariga já tinha adquirido maior agilidade de movimentos na travessia da mercearia e adquirira uma outra característica curiosa: a de zeladora escrupulosa da carteira dos clientes. A rapariga revirou as latas, leu as receitas nos rótulos, disse-me que gostava de comidas diferentes e por fim, atirou Atão mas porque é que bocê leba duas? Uma das grandes é mais barata que duas, ó, disse apontando para a etiqueta do preço, 50 cêntimos. Preferia duas pequenas, é certo, mas perante a evidência, e sob pena de passar por uma perdulária gastadora e arrasar a minha reputação na mercearia, lá trouxe a lata grande de feijão preto. Nada de mais: duas refeições a eito de feijão tropeiro.
Naquele dia, o queixume era outro: a máquina do Multibanco não funcionava. E que tinha aderido a outro plano e agora aquilo na daba nada e ainda por cima em Agosto, que tá tudo de férias. Uma cliente impacientou-se. E agora? Não tinha dinheiro e não queria ficar a dever. A dona tudo explicou de novo, largou um ou outro comentário pouco elogioso à companhia telefónica e por fim atirou à outra Ó melher, na te rales. A outra disse Ah pois, e se eu morrer? A dona Na te rales, já te disse, melher. Morreu aí uma há uns dias e rasguê logo o papel. Qué lá saber! Nesta altura terei dito algo, lamentando a morte alheia, mas qual quê… Atão, ela na podia ir à praia, foi à praia ca filha... Ah, pronto. E nisto, voltou a cliente à carga. Na te rales, bá, pagas depois. A filha atenta à contenda do paga, não paga, acrescentou Na se rale, se bocê morrer, a gente bai lá ó cemitério e pede o denhêro às pessoas no funaral. Deitei a mão ao bolso. Uma nota de dez euros. O suficiente para pagar os pêssegos e as ameixas. Se algum imprevisto acontecer, cruzes canhoto, pelo menos não terão o panzerzito a cobrar-vos as ameixas e os pêssegos, carecas e felpudos, à porta da derradeira morada. Há dinheiro que vem por bem na algibeira desprevenida.



foto: minha
Com aquele abraço para o Aventino.

quarta-feira, 22 de agosto de 2007

S de Salvador, S de Sentimento

Agora eu quero contar as histórias da beira do cais da Bahia.
Os velhos marinheiros que remendam velas, os mestres de saveiros, os pretos tatuados, os malandros sabem essas histórias e essas canções. Eu as ouvi nas noites de lua no cais do mercado, nas feiras, nos portos do Recôncavo, junto aos enormes navios suecos nas pontes de Ilhéus.
O povo de Yemanjá tem muito que contar.
Vinde ouvir essas histórias e essas canções.

Jorge Amado, Mar Morto


Uma caipirinha com uma carne de sol na Cantina da Lua, longe de ser tranquila, vertiginosa e sensual como o movimento de transeuntes, soteropolitanos e gringos que se deslocavam num vaivém frenético e colorido, ladeiras acima e abaixo até ao Largo do Pelourinho, iluminado pela Igreja do Rosário dos Pretos e a Fundação-Casa Jorge Amado, azuis ambas, ponto obrigatório de qualquer visita à cidade do Salvador, coração negro do Brasil, capital primeira do Brasil. E o movimento que se instala, cada vez mais intenso e vivo, um desfile que foi tomando o seu lugar pelas ladeiras circundantes: os filhos de Gandhi, o Olodum, as baianas como se conhecem por esse mundo fora, Bumba Meu Boi, Iemanjá. E de máquina fotográfica em punho embalada com o ritmo contagiante, o cortejo rodopiou, com o sol a brilhar já cadente por trás da Igreja de São Domingos de Gusmão, o contraste necessário para o fulgor do desfile, que soube depois, seria do Dia do Folclore, celebrado a 22 de Agosto no Brasil, escrito para sempre nos meus 22 de Agosto vindouros.
Mas Salvador é mais do que uma data. Salvador é um sentimento que não se deixa pôr por palavras. É ir ao Bonfim e conversar com a Carol e o Jairson sobre patuás e orixás, Erê, o meu, e ninguém tocou ainda, Carol, e fitinhas coloridas, trazer a pagela do Santo Expedito que todos os dias me olha aqui mesmo ao lado, é ver a cidade lá em baixo, é subir e descer as ladeiras do Pelô, regatear com o Caetano o preço dos colares de sementes, descer o elevador Lacerda com a Baía de Todos os Santos em frente, azul e imensa, e vislumbrar do outro lado Itaparica, berço de João Ubaldo Ribeiro, é passear no Mercado Modelo entre souvenirs e pinturas, comprar o que quase todos os turistas compram, mas não, um berimbau não, sentarmo-nos no Maria de São Pedro com a baía que se estende como um lençol azul prateado até encontrar as nuvens plúmbeas do Inverno baiano, ver os capitães da areia lá em baixo, trocar impressões com os inúmeros artistas que frequentam o restaurante - é sabido que baiano não nasce, estreia- enquanto se saboreia uma moqueca ou se relê mentalmente, sem livro algum à nossa frente, a prosa poética de Jorge Amado, alguma dela escrita no Rio Vermelho, onde se pode provar o acarajé longe do burburinho do Pelô. Salvador é o Recôncavo de Dona Canô e o Reconvexo de Bethânia. É saber ali perto Itapoã, onde Toquinho e Vinicius passaram uma tarde de vagabundagem e onde um dia irei sentir a terra toda a rodar. Sem palavras, portanto.

foto: minha

Salvador

terça-feira, 21 de agosto de 2007

Erros de cálculo

As manhãs de estio precoce ludibriam sem intenção os amantes fervorosos dos dias ensolarados e felizes. Foi assim que, naquele dia não muito distante, me levantei sorridente e, ao abrir as portadas, me deparei com o céu azul logo pela manhã. E depois a rotina de sempre. Tudo rápido: duche, pequeno-almoço, agarrar nos livros, fechar a porta de casa com as felinas lá dentro e Bom dia, dia! Raros os momentos de boa disposição matinal mas assim ditam os dias de luz, sem que pouco possa fazer para impedir a ligeireza que, de repente, se me toma o corpo e que, neste caso, me adormeceu os neurónios. E nesta insanidade, ter-me-ia vestido à pressa: umas calças castanhas de cintura concordante com os ditames da moda, um blazer cor-de-abóbora, uma camisoleca a mediar as duas, um colar de sementes sussurando-me com sotaque de terras de Vera Cruz e, assim que me sentei no carro, ainda à porta de casa, algo apareceu inesperadamente: uma tarja de carne, imensa e branca pela ausência de sol, a roupa interior a desvelar-se, sem perigo por enquanto, para o banco do carro. E porque quando nada há a fazer, nada se pode fazer, rumei à escola e passei a manhã a declinar educadamente os convites para me sentar à mesa, enquanto partilhava o café com os colegas e dois dedos de conversa inconsequente, a escrever no quadro apenas à altura do ombro, a deslocar-me com esmero entre os alunos, inclinar-me sobre as carteiras com o cuidado de uma dama vitoriana que tenta ocultar a aparição despudorada do tornozelo e a desejar ardentemente o regresso a casa para me poder sentar descansada e mandar às urtigas o pedaço de carne que tentei esconder com sucesso uma manhã inteira.

domingo, 19 de agosto de 2007

Umarmung

Cidades são como pessoas. Têm vida, carácter e personalidade, bons e maus humores. Acordares suaves e delicados, agitados e estremunhados. Têm sonhos e pesadelos. Cores e aromas e sabores vários. Cidades são mulheres e são homens. E se se fala do pulsar da cidade, do coração da cidade ou das artérias da cidade, é porque vida têm, como os homens que nela habitam.
Desta feita a cidade era Viena, cidade da cultura erudita, da valsa de Strauss, da música clássica, de grandes filósofos e pensadores que modelaram e transformaram o século XX, a cidade de Freud, de Canetti ou de Karl Kraus. E lá parti à descoberta da cidade, palco de inolvidáveis acontecimentos políticos, berço de uma gente delicada no trato mas distante nos afectos. Gente polida, proferindo constantes Grüss Gott, Danke schön!, Bitte schön!. Gente educada que por via da sua reconhecida deferência usa o conjuntivo com uma frequência surpreendente. Gente culta e letrada, permanentemente a braços com a sua orientação ideológica e cujos líderes, presentes e passados, partilham ironicamente a inicial de seus apelidos: o mesmo H, hediondo de Horror ou Holocausto. Gente preocupada em digerir o seu passado e gerir o seu presente.
Na centro da cidade sobressaía o odor forte a excrementos de cavalos das charretes perto do Stephansdom, incomparável no telhado reluzente com a águia bicéfala e os sons que pairavam nas ruas circundantes, ao lado da contrastante e moderna Haas Haus, espelho surpreendente do Stephansdom, distavam da valsa de Strauss ou da música clássica, banda sonora possível de uma cidade que se me afigurava pretérita. Indicavam a mudança e gente de outras paragens soltava música como gotículas de uma efémera alegria: música andina, tocada por peruanos de cabelos negros de noite e ponches coloridos e imigrantes do Leste cantando convictamente em trajes rubros e dourados.
E passear pela cidade pode ser também um trilho de volúpia materializado numa Sachertorte, deleite de qualquer fervoroso amante de chocolate, acompanhada por um café, em milhentas variedades apresentado, e saboreado em elegantes salões de chá ou cafés, tradição vienense por excelência, cultivada com carinho, tertúlias de outrora preservadas em memória do pulsar cultural duma cidade inexistente.
E a cidade era grande e monumental em oposição ao tempo de que dispunha. O Belvedere seria, portanto. Contemplar Klimt, sentar-me de frente para Schiele e, por instantes, sentir que também eu era beijada e abraçada por aquela belíssima cidade.

Egon Schiele, Umarmung, 1915.

Porque Viena é uma cidade que também não esquecerei.

sábado, 18 de agosto de 2007

Uma margarida talvez

O rapaz era conhecido por chegar atrasado aos compromissos. A dificuldade em respeitar horários e compromissos não seria nunca por falta de respeito por aqueles com quem se comprometia, apenas o seu modo de passear pelo mundo. A rapariga não entendia as delongas frequentes. Que faria ele para não chegar a horas? Apesar desta peculiaridade irritante para a pontualidade da rapariga, o rapaz era um ser atencioso e doce. Resguardava-se por trás dos óculos, algo tímido, e embora raramente deixasse os demais avistar a sua perspicácia, era atento e arguto. Tinha algo de deliciosamente boémio, umas mãos de criança, com os dedos rechonchudos, as unhas roídas como um garoto nervoso, possuía a bonomia dos gorduchos, mesmo sem gargalhares estridentes nem palavras exaltadas, como outros gorduchos, e sempre alguma dispersão no pensar. Amiúde o ar absorto de quem se perdeu entre notas e acordes, absorvido pelo jazz e a bossa nova, errante entre o contrabaixo e uma voz feminina. Voava sem aviso, elevava-se num voo alto e libertador, num céu só seu. Regressava depois, tal como se tinha momentaneamente ausentado, e retomava a conversa.
Ela e ele partilhavam um mesmo gosto pela noite, onde o dia toma refúgio e as palavras se tornam descomplicadas, os sorrisos mais inconsequentes e, por isso, à luz do dia mais perigosos. Um jantar agradável e sobriamente requintado, um copo num sítio aprazível, uma conversa serena salpicada com humor ou um café fugaz no bar do seu local de trabalho.
Era crepúsculo, ainda com umas réstias de dia, e, como os crepúsculos, continha o bulício que anuncia o dia a adormecer e o burburinho suave que indicia a noite a acordar, ainda lânguida e preguiçosa, ainda a bocejar e a estender os braços com que abraça e embala a cidade, o chilrear dos pássaros num miradouro ali bem perto e o cauteleiro tão dinâmico e tão estático no largo do ponto de encontro. A rapariga chegou em cima da hora dessa vez, quase atrasada. Umas voltas depois, continuava sem encontrar lugar algum para estacionar o carro, a inquietação a tomar conta dela, o relógio impavidamente marcando a passagem dos minutos. Uma volta, viu-o no ponto de encontro. Ao contrário do habitual, neste dia de Maio tardio, o rapaz chegara a horas. Ela abrandou, ele entrou, um beijo na face e, enquanto a rapariga engatava a mudança para iniciar a marcha, o rapaz sacou de um pedacito de papel da carteira, rabiscou algo e disse-lhe suave e afectuoso Não tive tempo. Desculpa! estendendo-lhe, tímido, o papel rectangular de dimensões reduzidas. No verso de um bilhete de metro, uma flor, fresca ainda pelo desenhar recente, perfumada como nenhuma pela imaginação ternurenta do seu autor. Por baixo escrito Um beijo, seguido da sua assinatura singela. Atentou bem, atentou bem na flor e pensou, rendida pelo exotismo da oferta, que seria uma margarida talvez.

sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Semântica do corpo

Deitei-me de maminhas. Acordei com pernas, braços, barriga. Quando cheguei ao ginásio tinha peito e tríceps e bíceps e abdominais e gémeos e glúteos. Resgato as maminhas, troco a barriga pelos abdominais e ponho pernas ao caminho. E por tudo isto gosto da linguagem: com ela somos múltiplos de nós próprios e, ao sermos múltiplos de nós, somos nós próprios múltiplos.



imagem: Botero. Who else?

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Agenda


De 13 de Setembro de 2007 a 8 de Abril de 2008 vai estar patente no Museu Britânico uma exposição temporária e única dos guerreiros de terracota, um dos maiores achados arqueológicos do século XX. A exposição compreende doze guerreiros bem como outros objectos encontrados no imenso mausoléu do Primeiro Imperador, Qin Shihuangdi, unificador da China. O exército de terracota foi descoberto em 1974 e conta com cerca de 8.000 peças, incluindo cavalos e armas. Todos os guerreiros são diferentes, têm tamanho real e expressões faciais únicas.
Se desaparecer por um tempo, já sabem onde me encontrar.

Imagem daqui

Can´t take my eyes off you

Isto de se nascer filho único nada tem a ver com ser filho único. Assim foi comigo. Primeiro os primos, depois os alunos, depois os amigos, os amigos dos amigos, os amigos dos alunos, o filho que acompanhou o meu pai até ao fim e que é o guardião dedicado da minha mãe e a atenção e o carinho dos meus pais sempre repartidos generosamente por todos. E como se todos estes fossem ainda insuficientes, juntou-se, de há cerca doze anos a esta parte, o meu mano gato, com nome de inspiração real – obrigada, D. Duarte.
O meu mano gato é como todos os gatos: voluntarioso, teimoso, obstinado, impassível e inabalável na sua vontade. Disputou com o meu pai o sofá durante um tempo. Fitava-o enquanto ele lá estava, paulatino entre os livros e uma sonequita que apelidava de reflexão, e acompanhou-o até ao fim dos seus dias, sempre em casa. O meu mano gato tem uma predilecção pela minha mãe. Se ela se ausenta de casa, o gato mia aflito de boca aberta e com um miado agudo até ela voltar, caso ela se levante para ir à cozinha, o gato segue-a fielmente, às vezes ultrapassando-a na porta e, nos últimos tempos, é o mais fiel e devotado admirador da minha mãe. Põe-se à frente dela enquanto vê televisão, com olhinhos doces e atentos, e, ultimamente, exige sentar-se ao lado dela na cadeira do computador, enquanto ela está tranquilamente no sofá. O gato fica inquieto se assim não é e, quando hoje me sentei no sofá, o gato pisgou-se de imediato para ficar mais perto da minha mãe, olhando-a embevecido mas vigilante enquanto ela jantava, e é por isso que desconfio que o meu querido pai lhe sussurra a espaços, na calada da noite talvez, quando não se sabe, Duarte, toma conta da nossa donita! E o Duarte assim faz, que olhos daqueles e tanta dedicação só podem vir de um coração transbordante.

foto: minha

terça-feira, 14 de agosto de 2007

Reduce, reuse, recycle

A empregada cá de casa é uma mulher trabalhadeira, arrumadeira e empreendedora, com energia de furacão no que toca à velocidade de limpezas e arrumações e com o seu toque de génio no que respeita à reutilização de tupperwares e caixas. Uma qualquer situação em que seja necessário raciocínio rápido e uma solução imediata, aí está ela e, foi por isso que, um destes dias, dei com um pacote de arroz fechado com uma mola de roupa e as estantes da despensa amarradas com sacos de plástico de uma grande superfície, enquanto tardava o arranjo efectivo e duradouro. Caso não se encontre o tupperware amarelo, aquele exactamente onde cabem os queixos frescos encaixadinhos como peças de puzzle é porque estará certamente algures a servir de continente para uns quaisquer objectos. Uma coisa é certa, raramente fica sem reacção e para qualquer mal que se lhe ponha ao caminho nesta cruzada doméstica, encontrará uma solução rápida e aparentemente eficaz. Vive inconsolável com o facto de não haver lixívia cá em casa, é certo, e, a espaços, vai largando o queixume, que pronto, com lixívia é que aquilo ficava bem limpo. Pois ficava, mas não temos e não temos pena.
Quando lhe peço para ter cuidado com o aspirador, porque foi o meu pai que mo ofereceu, ela não se dá por achada e responde-me com ar doce e carinhoso, regra geral acompanhado por um pequeno suspiro lamuriento que o meu pai me deu também a possibilidade de poder comprar outro, sortuda eu, o que não sendo totalmente mentira, me fez pensar que valor estimativo não é sequer um conceito para este ser peculiar. A prova dos nove veio quando me contou que alguém tinha perdido um anel, mas que não era como os meus, era um dos outros, sendo que um dos outros é de ouro amarelo e transbordante de brilhantes, presumo. Os que habitualmente ela vê cá em casa espalhados entre o prato da balança e a mesa-de-cabeceira têm formas voluptuosas, detectam-se à légua, mas materiais refulgentes não são a sua característica distintiva, logo não valem coisa nenhuma.
Estaria cá não há muito, quando, um belo dia de limpezas, cheguei ao meu quarto e vi a Senhora do Ó do Mestre José Franco, oferecida pela minha mãe e pela Dinha, a servir de amparo para os cortinados, entalados que estavam entre a parede e a santa, orgulhosamente afagando a barriga rotunda com as mãos beatíficas. Fiquei lívida, com palpitações, as veias a latejar nas têmporas e uma voz interior obrigava-me a soltar uns quantos impropérios. Serenei a voz e delineei uma estratégia. Nomear a minha mãe e a Dinha, dizer que aquela peça é única e que tem um valor estimativo incalculável de nada serviria, portanto, disse-lhe apenas que era uma peça caríssima e pedi-lhe para não mais usar a Senhora do Ó como suporte para cortinados. A mesma sorte não teve o cesto das molas. Não tendo sido oferecido por ninguém, certamente por o meu pai me ter dado a oportunidade de poder comprar outro, quando se resvalou no chão por artes de berliques e berloques, foi liminarmente deitado no lixo e a substitui-lo tenho agora um saquinho de papel duma perfumaria conhecida. Imaginação não se pode dizer que lhe falte. É melhor assim do que ter a Senhora do Ó no parapeito da cozinha com as molas pregadas no manto, mesmo à mão de semear, prontas a utilizar.

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Cidades que a cidade tem

Cruzo-me com o mais recente trabalho dos Orishas, corro ao encontro de Mi sueño de Ibrahim Ferrer, e acabo por aterrar em O nosso GG em Havana de Pedro Juan Gutiérrez, o livro do escritor que inicia uma nova fase, encerrado que está o ciclo de Centro Habana. E assim é: a Havana dos Orishas não é a de Ibrahim Ferrer, a de Pedro Juan Gutiérrez não é a de Leonardo Padura, a de Zoé Valdés não é a de Ana Menéndez. Cada uma mais áspera do que a outra, mais suave, mais devassa, suja ou nostálgica, mas todas são Havana. Se, para Zoé Valdés, Havana é hoje um museu de vítimas complacentes, de oportunistas; para negociantes e turistas ignorantes*, para Pedro Juan Gutiérrez o melhor do mundo é passear pelo Malécon sem rumo, debaixo de um ciclone furioso** e à magia de Havana não fica indiferente Leonardo Padura porque quem conhecer a cidade tem de admitir que possui uma luz própria, a um tempo densa e leve, e um colorido exultante que a distingue entre milhares de cidades do mundo***.
E, pese embora a idiossincrasia de Havana, assim são todas as cidades: únicas no olhar de quem por lá passa, tantas quantos os turistas, tão diversas como os viajantes, ímpares como os seus habitantes, tanto mais coloridas quanto os seus artistas e escritores. As cidades são apenas o centro do caleidoscópio colorido por sons e letras de quantos a sentem, vivem e visitam e que, a cada visita, deambulação ou périplo, se transformam num mosaico colorido em permanente mutação.

*Zoé Valdés, (2002), Os Mistérios de Havana, Lisboa, Dom Quixote.
** Pedro Juan Gutiérrez, (2000), Trilogia Suja de Havana, Lisboa, Dom Quixote.
*** Leonardo Padura, (2005), O Romance da minha vida, Lisboa, Dom Quixote.


foto: prata da casa

domingo, 12 de agosto de 2007

Cântico

Mundo à
nossa medida
Redondo como os olhos,
E como eles, também,
A receber de fora
A luz e a sombra, consoante a hora

Mundo apenas pretexto
Doutros mundos.
Base de onde levanta
A inquietação,
Cansada da uniforme rotação
Do dia a dia.
Mundo que a fantasia
Desfigura
A vê-lo cada vez de mais altura.

Mundo do mesmo barro
De que somos feitos.
Carne da nossa carne
Apodrecida.
Mundo que o tempo gasta e arrefece,
Mas o único jardim que se conhece
Onde floresce a vida.


Miguel Torga

Estação tola

Os nossos governantes andam tão ocupados que se lhes varreu o centenário de Miguel Torga.

quinta-feira, 9 de agosto de 2007

Sem acentos

Postar de terras de Sua Majestade tem este problema, os acentos voaram todinhos, por isso, escolho cautelosamente as palavras, de forma a que consiga prescindir dos mesmos.

sexta-feira, 3 de agosto de 2007

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Temos pena

O telemóvel estava aborrecido. Mas que me queres agora? perguntou ao Cartão Galp. O cartão Galp respondeu-lhe amargo Ora, que hei-de querer? Mas que maçada! disse o telemóvel Já não te mandei ir ter com o cartão Cortefiel? Já, respondeu assertivo o cartão Galp, Mas já que estás aí com coisas, diz-me, achas que compram mais roupa ou falam mais ao telemóvel? O telemóvel admitiu Sim, pronto, falam mais ao telemóvel! Então vês, tu é que tens mais pontos. O telemóvel estava enfurecido. O visor incendiou-se-lhe colérico. Porra! Mas já não te disse que não quero essa porcaria? Vá, vá, vai mas é ter com o cartão Fnac, há malta que compra livros que se desunha… Tás parvo?! disse-lhe o cartão Galp, Nem penses nisso! Preferem falar do que ler e tu és a prova disso. A malta fala em casa, fala na rua, fala na casa-de-banho, fala no cinema, fala no teatro, fala a comer, fala a dormir, fala a sonhar, fala na igreja, fala em casamentos, enterros e baptizados, fala, fala, fala. O cartão Galp estava visivelmente irritado, até lhe se doía a fita magnética e gritou ao telemóvel Tomara eu ser como tu, nem precisas de preocupar-te…. E vais mandar naquela malta toda. O telemóvel arrumou-lhe E quem te disse a ti que eu gosto de mandar? Nisto apareceu o cartão Corte Inglês E eu também tenho pontos… e tenho aqui uns de uns saldos de há três anos. E achas que isso te conta para alguma coisa, ó cartão da moda? Pois não sei, vou ver… Ah pois, vai lá ver, vai... disse-lhe o cartão Galp, o telemóvel retorquiu Esses pontos não contam nada, não vês que já passou tanto tempo. O cartão Corte Inglês não se ficou, Pois, olha, não sei, vou ver. O Tibúrcio apareceu de mansinho e disse Eu tenho pontos, eu tenho mais pontos do que vocês todos. Ó Tibúrcio, mas tu andaste a contar os pontos para quê? O Tibúrcio continuou E eu tenho pontos e eu sou grande e tenho mais pontos do que vocês. Os cartões entreolharam-se, entretanto apareceu o cartão Fnac, que confirmou ter alguns pontos, e o Tibúrcio continuou Eu, eu é que tenho pontos. Enquanto os cartões assumiam os seus lugares, o Tibúrcio insistia Eu é que sou bom e eu é que tenho pontos e eu tenho muitos pontos. Tibúrcio, tu não tens pontos, tu não vês que não foste chamado? O Tibúrcio continuou Mas eu tenho pontos, eu tenho mais pontos do que vocês e eu é que sou bom e é de mim que gostam. O telemóvel irritou-se com o raio dos pontos Ó Tibúrcio, vê se entendes, tu não concorres, logo tu não tens pontos. Temos pena. Temos muita pena, Tibúrcio. Que pena que nós temos.

De ontem em diante

Ontem a minha vida mudou mas hoje continuo a ser a mesma.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

A cidade e a aldeia

Viver na aldeia é giro. Viver na aldeia é saudável. Viver na aldeia é giro, saudável, divertido, tranquilo, didáctico, colorido. Da minha aldeia vejo o mar, cheiro a flor das nespereiras algures antes da primavera, aprendo quando podar as hortênsias, semear a batata mesmo que batata não semeie, sei quando é o tempo dos alperces, se aquele foi um ano de alperces assim aparecerá à minha porta a vendedora com o cesto. Por viver na aldeia tenho as crianças à porta no dia de Pão-por-deus, cantam-me as Janeiras quando o Natal se despediu e pedem ajuda para a quermesse lá para Julho. Viver na aldeia faz bem à saúde. Viver na aldeia faz bem à alma. Às vezes faz-me falta a cidade, o burburinho e o bulício, o movimento, a gente que vai e vem. Às vezes faz-me falta ser quem fui para continuar a ser a cidade.

domingo, 29 de julho de 2007

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Vida boa

O que eu queria mesmo era estar aqui
esticada ao sol
com a carícia do calor a castigar-me o corpo
a beber uma caipirinha ou uma água de coco
a comer uma espetadinha de camarão
ou um pastelinho
ou um queijo assado
sem nada para fazer
nada para pensar
só com o marulhar fininho das ondas na areia
e o gemido do coqueiros

Maceió
foto: minha

Parabéns Dinha!


Sempre a meu lado para me ralhar, repreender, criticar aqui e ali, apoiar, incentivar, ajudar, mimar muito, acarinhar, amar. Faz hoje anos e, como por ela tenho mais sentimento que estas pequenas palavras, aqui ficam os meus parabéns, querida Dinha!

quinta-feira, 26 de julho de 2007

A minha casinha

Eu gosto da minha casinha. A minha casinha é amarela com portadas verdes. A minha casinha tem um jardim. Da minha casinha vejo o mar. A minha casinha fica a meio caminho entre o mar e a cidade. E, na minha casinha, posso fazer o que quero. Na minha casinha posso escrever, ler, ouvir música, cozinhar, dormir, descansar, cantar, rir e falar. Na minha casinha as palavras são bem-vindas. Na minha casinha posso ver televisão. Na minha casinha posso ver televisão e adjectivar a contento a entrevista do primeiro-ministro. Na minha casinha posso perorar sobre a entrevista do primeiro-ministro, classificar o desempenho do primeiro-ministro, aplicar uns impropérios libertadores, adjectivar abundantemente o primeiro-ministro, socorrer-me de vocábulos eloquentes e variados, recorrer a estruturas sintácticas e construções semânticas politicamente incorrectas e/ou socialmente reprováveis – só as felinas o poderão avaliar- e dizer exactamente o que quero e o que penso, dentro da minha casinha. A minha casinha é amarela com portadas verdes. A minha casinha tem um jardim. Gosto muito da minha casinha.

também no GR

Oberammergau


foto: minha

terça-feira, 24 de julho de 2007

Doze letrinhas apenas

Se se for daqui para aqui é muito provável que se passe por aqui. E este aqui, além de uma aldeola curiosa com os Alpes em pano de fundo, é uma palavra com doze letrinhas apenas: OBERAMMERGAU, duas menos do que Neuschwanstein, Carlos.
Oberammergau é uma terrinha abençoada pelo turismo que acorre em massa para ver as pinturas exteriores nas fachadas das casas – Lüftlmalerei- mais uma dúzia de letritas, testemunho do passado barroco financeiramente favorecido e catolicamente devoto, comprar uns souvenirs, regra geral, objectos em madeira talhados manualmente – Holzschnitzerei- quinze letras apenas, figuras de caminhantes ou apenas um Edelweiss.
De dez em dez anos, Oberammergau é palco da representação da paixão de Cristo em agradecimento à graça divina concedida com o desaparecimento da peste e do sofrimento causado pela Guerra dos 30 anos. Os actores são todos amadores, os homens, diz-se, não cortam as barbas e cabelos durante muito tempo para serem fisicamente mais fiéis ao tempo que retratam. No ano 2000 teve lugar a 40ª representação, a próxima será portanto em 2010, os preparativos já começaram, e, estima-se, que as barbas a crescer também. Tudo isto pela módica quantia de doze letrinhas apenas:

O B E R A M M E R G A U.

foto: minha

sexta-feira, 20 de julho de 2007

lichtung

manche meinen
lechts und rinks
kann man nicht velwechsern
werch ein illtum


Ernst Jandl

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Ingratos insensíveis

O meu terraço é uma obra de arte. Tem a pincelada vigorosa e espessa de Van Gogh, a violência cromática de Kandinsky, eventualmente com um laivo de Gabriele Münter, uma inclinação que mais parece coisa do Hundertwasser, esporadicamente uma garrafa de cerveja a indiciar que Warhol passou por aqui - a sopa ainda não chegou à construção civil - e a coroar tudo isto uma tira amarela por cima do rodapé que bem podia ter sido da autoria de Piet Mondrian - como odeio aquelas riscas-, isto para não falar nos dias em que até o Botero se celebra no espaço, quando a balzaquiana contempla o feito. E depois ainda há gente que telefona ao vendedor, um tal engenheiro, e reclama, que isto e que aquilo, que só cá põem sapateiros a trabalhar, que aquilo é uma vergonha e é inadmissível e que se se põem ali ao sol, só podem olhar para o céu, que se olham para o pavimento ainda têm uma coisinha má e tal e ainda lhe enviam a conta do psiquiatra e o engenheiro põe-se Ó sodotora para cá, sodotora para lá, e que pronto não sabem de onde vem a infiltração e que fazem o melhor que podem e ela atira-lhe que o melhor é muito mau e que não quer cá mais sapateiros e outros caceteiros metidos a pedreiros e construtores e outros pantomineiros. Anda uma pessoa a esforçar-se por lhes proporcionar acesso directo à arte, apenas com a janela do quarto a separar-se-lhes, e ainda se queixam. Ingratos, é o que é.

terça-feira, 17 de julho de 2007

Da ilegibilidade das cidades

Se o amor acabasse, pensaram saindo do táxi com as malas e partilhando ainda o mesmo guarda-chuva antes de partirem para destinos diferentes, se o amor acabasse, todas as cidades se tornariam ilegíveis.

Teolinda Gersão,(2007), A Mulher que prendeu a chuva, Lisboa, Sudoeste Editora.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

Excursionistas, uni-vos!

Que tinham vindo de Teixoso, de Cabeceiras de Basto. A convite de quem? perguntou-se. Do Partido Socialista, pois. A seguir dois entrevistados. Vieram a Mafra de excursão e depois, antes do regresso ao Alandroal, fizeram um desvio à capital para saudar António Costa. Felizmente não faço excursões e doravante nem me atreverei a pensar em tal. É que os motoristas são uns rapazes voluntariosos e sabe-se lá a quem acabaria a dar vivas.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

Página 161a

Procurei uma citação por motivos estritamente profissionais e deparei-me com a página 161:

No fundo, o dever de educar consiste em ensinar as crianças a ler, iniciando-as na Literatura, em dar-lhes os meios de julgarem correctamente se sentem ou não «a necessidade dos livros». Porque, se se pode perfeitamente admitir que alguém rejeite a literatura, é intolerável que seja – ou julgue ser- rejeitado por ela. Ser excluído dos livros - mesmo daqueles que nos fazem falta-, é uma enorme tristeza, uma solidão dentro da solidão.

Daniel Pennac, Como um Romance.

Página 161

E respondendo a este desafio, cá vai a minha página 161. Hoje o livro que tenho aqui mesmo ao ladinho é Morte em Veneza do Thomas Mann, mas na altura em que a Cenourinha do Lado lançou o desafio, o livro era o Guia American Express da Grã-Bretanha. A Morte em Veneza atinge apenas as 96 páginas e o guia era o que, de facto, aqui estava e continua. Por isso aqui vai:

Os jardins barrocos, com alamedas radiais ladeadas de majestosas tílias, plantas raras e canteiros formais foram cuidadosamente restaurados.

...e isto dizem eles de Hampton Court, um palácio de Henrique VIII, perto de Londres.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Catorze letrinhas apenas


Inteiramente dedicado ao Carlos, com carinho.

As partidas de Mercúrio

Um burburinho constante vindo daquele lado da sala. Não que fosse muito estridente ou sequer perturbador. Indiciava porém alguma impaciência. Com o decorrer do tempo e depois de algumas chamadas de atenção, e também porque partilhávamos o mesmo espaço à mesma hora, fui-me apercebendo de onde vinha a inquietude.
Uma rapariga, não recém-chegada à escola pelo aparente à-vontade com que se deslocava, as calças sempre um palmo abaixo da linha de cintura, amiúde visíveis as réstias de roupa interior, o cabelo ora pelos ombros, ora apanhado e sempre, mas sempre, alguma inquietação e ansiedade na procura do computador disponível que lhe permitisse navegar por esse mundo fora. A impaciência frente a frente com o ecrã era presença habitual nas suas estadias no Centro de Recursos. Inicialmente identifiquei-me com a rapariga Caramba! Tamanha lentidão! Dá para adormecer aqui! Com a passagem do tempo e mesmo em dias em que a net voava pelas auto-estradas virtuais do espaço cibernético, a impaciência da jovem mulher em botão não debandava. O coração, o coração talvez, pensei, que o coração é um bicho matreiro e prega partidas aos prevenidos, quanto mais aos ainda jovens, carecidos de escudo afectivo contra as malvadezas do dito. E como também o coração tem os seus limites, cedo arrumei na estante a hipótese das partidas do órgão sentidor. Não, o coração não era.
Certo dia, quando estava com uma aluna minha, a rapariga voltou aos acessos de intemperança. A amiga a seu lado sorriu e sorriu-me e, dado o à-vontade, perguntou que raio significava aquela palavra. Respondi. A outra suspirou de alívio. Dias e dias à volta com a palavra mas nada de se figurar um sentido, um significado que fosse.
Abeirei-me delas. A rapariga, nos seus dezassete anos, sabia-o agora, tinha dificuldades hercúleas em decifrar vocábulos que lhe apareciam vezes sem conta no ecrã à sua frente. Entabulámos conversa, tocou para a entrada entretanto e cada uma foi à sua vida. Na semana seguinte o mesmo problema e o meu auxílio foi solicitado como tábua de salvação. E se eu não estivesse aqui? A rapariga respondeu Mas está e retorqui E se estivesses em casa sozinha? A rapariga encolheu os ombros, desta vez, resignada com a incapacidade de processar a informação que corria lampeira e sem vergonha no ecrã à sua frente.
Uma ocasião, questionou-me A Setora anda sempre com livros? Quase sempre. Porquê? A rapariga foi lesta na resposta Odeio ler! Como odeias ler? Passas a vida a ler aí no computador! Sim, retorquiu, Mas é diferente. A Setora já viu o camalhaço que são Os Maias? Não só vi, como li, respondi-lhe. Que cena! Disse-me. Aproveitei a deixa Então, mas o teu problema é o tamanho do livro? Até é, não tenho tempo de ler aquilo. Procurei o O nas estantes da literatura lusófona e estendi-lhe Os da minha rua do Ondjaki. Assim está melhor? Ela riu-se Mas isso presta? Tão fininho? Ri-me. Na adolescência raramente nos satisfazemos com algo. Leva e lê.
Para a semana falamos.
Na semana seguinte a rapariga não apareceu. Tinha sido acometida de um catarro forte que a obrigara à reclusão do lar, a acrescer a isto, o Mercúrio estava retrógrado e, portanto, o computador de casa finou-se com um chiar fininho para nunca mais dar conta de si. É sabido que o Mercúrio é um péssimo conselheiro de todas as maquinarias, engenhocas e aparelhagens eléctricas e electrónicas.
Quando regressou, estendeu-me o livro Já li! E então? Questionei É muita louco! Quem é este Ondjaki? Aconselhei Vais à net e fazes uma pesquisa. Ah mas esta malta dos livros não está na net. A Net é muito à frente!!!! disse convicta. Deixei-a sossegada e esperei pela semana seguinte. Veio ter comigo Eh, ganda cena, setora! Já sei quem é o Ondjaki! Boa! respondi. Afinal, estava ou não estava na net? Regressei ao trabalho e perto do toque a rapariga veio ter comigo. Setora? Sim! Há mais livros destes?

sexta-feira, 6 de julho de 2007

Wonder

Nisto do viajar as pessoas distinguem-se como na vida: há os mais entusiastas e excitados, logo no check-in da Portela, há os rabujentos, também evidentes logo no check-in da Portela, e que prolongam as reclamações, reparos e remoques entre o ir e o vir até à recolha de bagagem também na Portela, há os mais recatados e discretos, poucos é certo, os contemplativos, os que querem apenas acrescentar um visto à sua lista de locais a visitar antes da partida definitiva, os que tratam os monumentos e cidades por tu e também aqueles para os quais o local de visita presente é sempre pior do que quase todos os anteriores que visitaram.
Não sei exactamente onde me coloco mas sei que ao visitar um local que me agrada gosto de tirar uma fotografia no dito. Quando se viaja a dois, falta sempre um que tire a fotografia aos dois, portanto há que recorrer à simpatia dos estranhos. Na era das máquinas digitais, a coisa corre bem. Os fotógrafos mais tímidos pedem para ver se a fotografia ficou bem aos fotografados, os mais precavidos avisam apenas Vou tirar outra. A vida facilitou-se imenso com o ocaso das máquinas analógicas e, caso tivesse uma máquina digital daquela vez em que fizemos a travessia de ferry para a Estátua da Liberdade, nada daquilo teria acontecido e hoje podia contemplar a perspectiva perfeita a três, tal como a tinha idealizado.
À medida que deixamos Manhattan e lentamente nos aproximamos de Liberty Island, a Estátua vai adquirindo outra beleza pela proximidade, pela rotação. Acima de tudo, porém, pela imponência que surge de repente ali tão perto, e se vista de terra a estátua é um ponto de exclamação verde contra o azul do rio, estrategicamente colocada tão perto de Ellis Island, a porta de entrada de milhões de imigrantes também em procura da liberdade, a aproximação deixa bem clara a expressão, as vestes e o movimento do corpo, a tão famosa coroa e o facho flamejante. Nesse dia o barco estava carregado como sempre, com particular incidência num gurpo de mulheres asiáticas qu ao ritmo do deslizar mais veloz sobre o rio, se movimentavam como formiguinhas excitadas acorrendo ora de um lado ora de outro, aproveitando vorazmente a fugacidade com que Miss Liberty se oferecia, comportamento absolutamente compreensível por parte das asiáticas, de resto: não é todos os dias que nos encontramos frente a frente com um dos mais famosos ícones do mundo carregado de símbolos, a coroa com sete pontas e vinte e cinco janelas, a luz e a tábua com a data da Independência dos Estados Unidos, a imagem feminina iluminando os recém-chegados, libertados das amarras da velha Europa, pelo trilho da liberdade em sintonia com as palavras que não vemos mas sabemos existir no interior do pedestal. Abeirei-me de uma das turistas asiáticas e pedi-lhe que nos tirasse a fotografia, a tal a que me faz falta ali na estante da sala. A rapariga foi lesta, agarrou na máquina, Smile, Cheese, e outra vez, Smile mais cheese e duas fotos tiradas, agradeci, ela rumou para outro lado do barco e cada uma foi à sua vida. A minha, por exemplo, inclui duas fotografias com dois cromos sorridentes, ela num cantinho com meio rosto mal medido dentro do rectângulo, ele em grande plano e a Estátua da Liberdade a espreitar-lhe sobre o ombro. Mais artístico é impossível.


Se encontrarem uma jovem asiática que tenha feito a travessia de ferry para a Estátua da Liberdade algures pelo fim da manhã num Julho pretérito, já sabem a quem atribuir os créditos da foto.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

Respeitinho

Nestas coisas de máquinas, maquinarias e aparelhos sinto-me um resto, a auto-estima completamente em baixo, o amor-próprio uma lástima e a reputação destruída. É que se há coisa de que uma mulher não gosta é de se sentir ignorada, nem por bichos, homens ou máquinas, e isto porque quando algo não funciona e depois de já ter dado voltas sem fim a avaliar o dito aparelho comatoso, decido-me pelo último dos últimos recursos, assim sendo, e esgotadas todas as hipóteses ao meu alcance, abro a goela e grito HÉLDER!!!!! O Hélder vem, regra geral, tranquilo, pergunta mas afinal o que é se passa? Longe vão os tempos em que à primeira contrariedade a voz me subia galopante. Agora aguento uns tempos, miro os bichos de alto a baixo, dou-lhes umas pancadinhas no lombo, umas afagadelas nas fichas, verifico botões e ligações, solto uns quantos insultos e depois HÉLDER!!!!!!!!!!! O Hélder vem e pergunta mas afinal o que é se passa? A impressora não funciona… volto costas, dou uma olhadela na televisão, petisco mais um fruto destes, e eis que em surdina começo a reconhecer os sons da dita impressora a arrancar pausadamente. Respeitinho é muito bonito mas cá em casa é só para alguns, ao que parece não estou incluída no lote.

Momentos

Para responder a este convite, escolhi este momento.

quinta-feira, 21 de junho de 2007

Minha

A minha Ericeira não é a Ericeira de Agosto. Não é a Ericeira do Verão desenfreado, das tias ostentando o ouro baço, martelado ou branco e marcas da moda pretendendo aparentar sempre uma boa dezena de anos a menos, dos cavalheiros bem falantes de cabelo lambido e olhar pegajoso, como se adivinha o cabelo.
A minha Ericeira não é a Ericeira dos Domingos, das fatiotas domingueiras com rostos domingueiros e perfumes rascas também eles domingueiros. A minha Ericeira não é a Ericeira do marisco do e no início de cada mês, dominical por certo, das gentes que alarvemente se despenham em ruídos entre percebes e sapateiras e exalam, nesse meio tempo, o odor domingueiro das cidades suburbanas, bolorentas.
A minha Ericeira não é a Ericeira dos impessoais monstros de betão. A minha Ericeira não é a Ericeira dos donos dos monstros de betão. A minha Ericeira não é a Ericeira de alguns dos habitantes dos monstros de betão. A minha Ericeira usa chinelo e fala a língua das gentes despretensiosas.
A minha Ericeira é simples, ornamentada com a sua própria beleza natural, enfeitada com a grinalda de espuma das marés violentas. A Ericeira da bruma. A Ericeira do Inverno e da Primavera, apenas a azáfama das suas gentes, sem a gente de Domingo suburbana, muito mais suburbana do que se pensa, mais saloia até, mas nunca jagoza.
Passear a Ericeira numa manhã soalheira, igual em que estação, é uma dádiva dos deuses. Quem sabe se Vénus e Neptuno não terão por aqui se amado com o sentir ardente dos corações arrebatados. Terá nascido esta terra e este mar, o salgadiço no ar, da virilidade ondulante de Neptuno mesclando-se na sensualidade doce de Vénus, apadrinhados por Éolo obstinado? O céu atinge um azul indefinível e a calmaria, apenas a espaços entrecortada por um chinelar vigoroso dos filhos desta terra de mar ou um chamar convicto e forte, constitui uma terapêutica preciosa.
Esta minha Ericeira é a Ericeira do linguajar próprio, sempre rápido, sempre rude, abrupto e desabrido, do perfumado aroma a maresia pelas ruelas alvas, inconfundível e ímpar, como nunca, nunca em outro lugar do mundo senti, do mar bruto e gélido. Também das gotículas que dele saltitam para nos brindar.
Esta minha Ericeira é a Ericeira dos pássaros a chilrear no Jogo da Bola, do fumo das castanhas no Outono, do mar rebelde nas Furnas, do cheiro a peixe grelhado pelas ruas do Norte. A Ericeira dos bolos e batatas fritas na praia do Sul, dos retemperadores finais de tarde na esplanada, estação obrigatória entre a agitação do dia e o bulício da noite vindoura.
Esta minha Ericeira é também a Ericeira da brisa marítima e da neblina, das noites longas e das ondas grandes, das pevides à porta da Igreja. O casario caiado, limpo, puro. Esta minha Ericeira é mulher caprichosa que apenas se mostra quando quer, e que como as mulheres caprichosas e belas, só se deixa sentir quando entende e se entende, como se muitas vezes medíssemos forças, em vão, com a natureza impetuosa para nos fazer sentir, a espaços, o sabor da vitória conquistada, como com as mulheres caprichosas. Mulher caprichosa e bela, egocêntrica também, única filha única do amor desenfreado entre Vénus e Neptuno. E a tua? Como é a tua Ericeira?

Foto: Hélder

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Auf Deutsch


foto: minha

Do que se lê

E a pedido da Pitucha aqui ficam as minhas últimas cinco leituras:

Passageiros em Trânsito de José Eduardo Agualusa
Os da minha Rua de Ondjaki
Ich bin kein Berliner de Wladimir Kaminer
Perseguido de Luiz Alfredo Garcia-Roza
A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho de Mário de Carvalho

...e, pelo meio, poesia de Ondjaki e de Arnaldo Antunes e guias de viagem.

terça-feira, 19 de junho de 2007

No meio da multidão

E foi assim que me apareceu, noutro local, é certo, mas estava algures no meio da multidão, menos sorridente, é bem verdade, mas outra grande verdade é que entrou na minha vida pelo meio dessa multidão desalmada e cá ficou bem juntinho.
A quarta grande verdade é que ele hoje comemora
mais um aniversário.
Aqui fica um beijo
grande
e o desejo que sorria sempre
e me espere sorrindo, do outro lado da ponte, no meio da multidão.

foto: Veneza

segunda-feira, 18 de junho de 2007

O Tibúrcio

O Tibúrcio é um professor responsável. O Tibúrcio cumpre prazos. O Tibúrcio é pontual. O Tibúrcio é recto e corta a direito. O Tibúrcio cumpre programas. O Tibúrcio aparentemente não faz mal a ninguém. O Tibúrcio tem alguns problemas. O Tibúrcio gosta de poleiro. O Tibúrcio gosta de lamber umas quantas botas. O Tibúrcio, debaixo do seu ar de cordeiro obediente, é um ditador. O Tibúrcio gosta de poder, gosta de se sentir grande e para se sentir grande tem de ter coisas, tem de ser coisas e, lambendo algumas botas e esboçando os sorrisos certos nos momentos certos, foi sendo coisas. Essas coisas são agora contabilizadas em pontos. O Tibúrcio tem pontos, portanto, portanto o Tibúrcio é grande e importante. Mas o Tibúrcio, além de ser um déspota na pele de cordeiro, tem outro problema. O problema do Tibúrcio é que, por ele gostar de poder e por ser autoritário, tem alguns problemas com os alunos. Por exemplo, os alunos não o cumprimentam nos corredores da escola, os alunos do Tibúrcio não querem ter mais o Tibúrcio como professor se pudessem escolher, porque o Tibúrcio não se sorri para eles, não chega perto deles, na verdade, parece nem querer saber deles, Xô que me podem pegar coisas, Xô gentalha pequena, Quem é grande, quem é? Quem é grande e bom? e este é o problema do Tibúrcio, mas o Tibúrcio, que é professor, não quer saber disto para nada, porque o Tibúrcio é grande e quer ser director, coordenador, director e coordenador e coordenador e director e administrador e orientador e coordenador e director e gestor e director e presidente porque ser só professor é muito pouco.

sábado, 16 de junho de 2007

Uma marquise em Campo de Ourique

E enquanto o país estava suspenso pela vitória de Cavaco Silva nas presidenciais e se aguardava a reacção do dito, as transmissões televisivas centravam-se na residência sita na capital lusa. Além de ter de digerir um presidente que não assumiu qual o seu escritor preferido, ou o seu vinho de eleição para não ofender os restantes escritores fora do rol do eleito ou os néctares eliminados, a caixinha mágica deu-me ainda uma outra perspectiva do homem de Boliqueime e que se não fosse este excelente post do Pedro Correia, estaria agora ali a estupidificar-me com o jogo dos sub-21 em vez destas afagadelas no teclado e nem me teria lembrado desse episódio triste da história contemporânea. O homem que tinha doravante o destino de todos nós nas mãos tinha uma marquise, uma marquise destas com estores e tudo e a contra-luz desenhava-se a silhueta do casal presidencial. A culpa é da República, pois claro, os reis não têm marquise e não são eleitos, portanto ter-me-iam poupado mais este desgosto. Guardo desde então a crónica de Ricardo Araújo Pereira da "Visão" de 26 de Janeiro de 2006: “Na minha opinião, há determinadas partes da casa que um Presidente da República não devia frequentar. A marquise é uma delas. (…) Quando se lembram da sua rainha, os britânicos, imaginam-na na sala do trono. (…) A mim, quando penso em Cavaco Silva, só me ocorre a imagem do novo Presidente a falar ao telefone na marquise.” Não posso concordar mais. Cavaco Silva cultiva a imagem de homem do povo, diz-se, um self-made-man à algarvia, o pobrezinho sofreu como se sabe aquando da viagem à Índia com a comida picante, passou tão mal o casal presidencial que o que lhe valeu foi o arrozinho branco, benzó deus, mas não precisava de ter uma marquise, precisava?


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quinta-feira, 14 de junho de 2007

Paradeiro



Porque este blogue se tornou também o meu porto de abrigo e o sítio onde comungo as minhas vitórias e tristezas, mágoas e conquistas, onde rio e choro e porque, sem vocês que me visitam, eu seria infinitamente mais pobre e este local não teria sentido, um beijo no dia que passa a todos os que passam no meu paradeiro.


Um agradecimento especial ao Aventino que me apresentou Paradeiro.

quarta-feira, 13 de junho de 2007

À mesa com Pessoa


Tornei minha alma exterior a mim
Fernando Pessoa, Poemas Dramáticos
Esvaziaram-se-me as palavras
e as que encontro servem apenas para dizer o que sinto
e o que sinto é pouco para as palavras.

sábado, 9 de junho de 2007

Toda a felicidade do mundo

Na última vez que foi a uma casamento o padre além de ter dado um raspanete nos presentes, disse algo que muito me chocou. Depois das prelecções mais ou menos habituais perguntou se não estaríamos em situação de desejar aos noivos tanta felicidade como para nós mesmos. Tendo em conta que aquela é a casa de deus e que se se vai a um casamento é porque se travam laços de afectividade com os noivos, a pergunta ofendeu-me. Não sei porque a nossa felicidade ou não tem de ser o alqueire por que se mede a felicidade de quem gostamos.
Por isso, hoje estou aqui para desejar não tanta felicidade como a minha, que interessa a minha?, não mais um bocadinho, não menos um bocadinho, mas a felicidade TODA do mundo à menina das estrelinhas, que é tão especial, e ao seu mais que tudo por este passo no trilho da felicidade em comum.